Arte: editora de Histori-se.

A pele é uma reflexão, a partir da letra da música Na pele : obra da cantora e compositora Pitty, interpretada na voz peculiar de Elza Soares,

A pele

As marcas visíveis e as marcas invisíveis da expressão do sofrimento feminino.

A canção Na pele (2014) uma poderosa expressão estética e metafórica do sofrimento, mas também da capacidade feminina de expressar as experiências de vida.

Mostra que há marcas, não apenas no corpo, mas também na psiquê de um eu-lírico que sofre na pele as agruras de ser e existir no corpo de uma mulher.

A pele é o maior órgão do corpo humano.

Um órgão aparente, sujeito ao sol, ao frio, ao contato físico.
Recobre nosso corpo; é um elemento de conexão com os demais seres.

Quando estamos particularmente tristes, dizemos que nos sentimos sem pele.

O fato de a música ser cantada por uma mulher, com a história de vida de Elza Soares, é bastante significativo.

Elza Soares
Elza Soares

Elza superou a pobreza, o preconceito, a violência doméstica e passou por perdas trágicas de seu filho e do companheiro.
Cantou suas dores e suas alegrias. Entretanto, até o fim de sua vida física, mostrou-se inteira ao público.

Pitty
Pitty

Embora Pitty seja uma mulher mais jovem, reconhece a força do tempo na pele. Na música, convida-nos a reparar bem em seus olhos e nas marcas de seu rosto:

“Olhe dentro dos meus olhos
Olhe bem na minha cara
Você vê que eu vivi muito?
Você pensa que eu nem vi nada

Olhe bem para essa curva
Do meu riso raso e roto
Veja essa boca muda
Disfarçando o desgosto

A vida tem sido água […]”

O mapa

Esse convite é como um olhar-se no espelho de um tempo histórico, convidando a pensar o corpo como um mapa das violências, mas também das vivências das mulheres na vida individual e comunitária.

O corpo feminino como um território de conquista, de demonstração da força da violência masculina, mas também de resistência para a vida.
Uma prova viva da capacidade de existir em pluralidade.

No contexto da canção, o eu-lírico nos questiona e convoca para uma reflexão mais profunda a partir das marcas deixadas pelo tempo: “você vê que eu vivi muito?”

A vivência convocada pela música não é individual, transcende a vida física.
Evoca também as experiências de mulheres que nos antecederam.

A letra também nos convida a meditar sobre o modo como as experiências femininas são tratadas em uma cultura patriarcal. Por isso, o eu-lírico refere “você pensa que eu não vi nada”.

A cara

O pedido para que o interlocutor “olhe bem na minha cara” é quase um pedido de socorro, uma convocação à identificação.

A mulher invisibilizada, anulada social e historicamente, quer ser reconhecida em sua dor de existir e em sua potência de permanecer, mesmo marcada.

É um desafio, afinal é com o olhar que encaramos a vida. Como se fôssemos convidadas a olhar, inclusive para nós mesmas, perceber que seguimos aqui, inteiras, revelando “na pele”, a força dessa insistência na vida.

O léxico “cara” pode remeter à oralidade, mas também ao aspecto animal da expressão: animais têm cara, pessoas têm rosto.

Atentar para a “cara” de alguém é ir além do âmbito do corpo; ir além da dimensão de um animal marcado…é atribuir à mulher o valor da sua subjetividade por meio dos seus desejos e sentidos revelados nas expressões faciais.

Portanto, “a cara” é o significante da alma.

Nos versos seguintes, “o riso raso e a boca muda” tentam disfarçar ou calar o sofrimento que a pele habita, mas que a alma denuncia, conforme se vê a seguir:

“A vida tem sido água, fazendo caminhos esguios
Se abrindo em veios e vales
Na pele, leito de rio […]”

De acordo com o Dicionário de Símbolos, nas águas primordiais originárias encontravam-se também os corpos sólidos, ainda carentes de forma e rigidez, que eram compostos por água no primeiro estágio de transformação.
Por analogia, o corpo fluídico é interpretado pela Psicologia social atual como o símbolo do inconsciente.
Logo, um corpo fluido é simbolicamente um corpo inconsciente, mas, também, a metáfora de um corpo físico esculpido pelas tensões e pelas intempéries da vida, tal como um leito de rio marcado pelo movimento dos caminhos tortuosos e das águas turvas e sinuosas [i].

Neste contexto, podemos pensar nos tantos caminhos pelos quais os corpos femininos e feminilizados foram constrangidos a passar ao longo da história perseguidos, reprimidos em suas existências, em seus direitos, em sua sexualidade e personalidade, marcando profundamente a consciência de sua subjetividade.

Arte: Histori-se

O corpo

Também é possível fazer essa canção dialogar com as filosofias indígenas, sobre o conceito de corpo território.

Sob essa perspectiva, não temos um corpo, mas o habitamos.
Esse corpo é o testemunho histórico de nossas experiências individuais, mas também da cultura, das relações sociais, dos movimentos de opressão e de libertação a que de algum modo estamos conectadas.

O corpo é, portanto, o mapa de nossas experiências individuais e coletivas.

A pele é o registro dessa cartografia.

Um registro que a cultura da eterna juventude nega e oculta, por meio de procedimentos estéticos, por vezes invasivos ou prejudiciais à saúde física e emocional.

O eu-lírico insiste no convite para que as suas rugas, a sua face e o seu olhar sejam contemplados:

“Contemple o desenho fundo, dessas minhas jovens rugas,
Conquistadas a duras penas, entre aventuras e fugas;
Observe a face turva, o olhar tentado e atento.
Se essas são marcas externas, imagine as de dentro.
A vida tem sido água[…]”

As marcas

As marcas externas na pele foram conquistadas “a duras penas, entre aventuras e fugas”, ou seja, desvio do curso das agressões sofridas ao longo da vida, reinvenção de caminhos e afetos.

É a experiência materializada nas rugas que permite um olhar “tentado” (sim, o verbo no particípio sofre a ação…), expressão que convoca o significante da Eva, da mitologia cristã, originária da tentação do homem.

No entanto, na música, a analogia se dá pelo avesso do pecado original: aqui, a mulher sofre a tentação.

Por um lado, a mulher foi tentada historicamente a se submeter ao sistema patriarcal, abrindo mão dos desejos. Por outro, o rosto mostra tentações saciadas nas aventuras e fugas, nas possibilidades de existência para além do lugar social que lhe foi determinado.

O olhar atento sugere (no contexto da análise) que o eu-lírico está sempre à espreita da próxima tensão.

Como vítima dos maus-tratos e abusos, ela vive sob a égide da violência sofrida na pele externa e interna.
A atribuição histórica do cuidado também nos torna atentas ao que ocorre ao redor, às necessidades de nossos afetos, aos afetos dos outros e às tantas demandas do dia-a-dia.

“se essas são as marcas externas, imagine as de dentro”.

Arte: editora de Histori-se.

O convite não é para um olhar superficial, apenas para o reflexo da face marcada pelo tempo, mas para um olhar mais profundo.
A referência à “face turva” remete a um olhar que reconheça todo o sofrimento contido na alma: “se essas são as marcas externas, imagine as de dentro”.

Essa talvez seja a evocação mais significativa da canção, pois nesse momento revela-se o sentido da cartografia que permite uma comunicação entre os corpos.

As rugas não são sintomas de velhice a serem eliminados.
São os registros de uma experiência com a qual podemos aprender.

As marcas de dentro estão refletidas no mapa que o corpo carrega consigo.

A continuidade do refrão “a vida tem sido água” remete ao ciclo constante da roda da vida, que transcende nossas existências físicas, nos antecede e nos supera na transmissão dos saberes alusivos à luta pela liberdade dos nossos corpos e pela perspectiva da superação da violência contra o ser feminino.

Quando a violência histórica contra a mulher terá fim?

As autoras

Valdete Severo. Doutora em direito do trabalho pela USP, professora de direito do trabalho na UFRGS, autora de livros como a Perda do Emprego no Brasil e Contribuições para uma teoria geral do processo do trabalho.
Elizete
Elizete Lacerda é licenciada em Letras, revisora de textos, escritora. Algumas de suas áreas de interesse e atuação: cinema e análise literária (especialmente análise de canções)

Notas: [i] (SIRLOT, 2005, p.62-5).

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