Diadorim
Cinema e Literatura
Este post é continuidade do artigo Notas para uma narrativa: o fio de Ariadne .
EDUCAÇÃO CULTURALIZADA, ESCOLA , DOCÊNCIA
O termo educação culturalizada alerta para o fato de que, nos currículos, há uma falha.
A acepção, oriunda da geologia, foi utilizada por Teixeira Coelho justamente para marcar a ausência de momentos em que o estudante esteja em contato com formas de arte e a falta de carga horária para conteúdos como música, artes plásticas e, acrescento, literatura e cinema.
A preocupação com a formação de sujeitos afeitos às expressões artísticas alcançadas pelo homem e tão caras à compreensão das artes contemporâneas, signatárias de linguagens em que se misturam imagens em movimento com declamação, ou estruturas de engenharia interrompidas por projeções, desvela a leitura de dados que mostram leitores ineficientes, jovens com pouca orientação humanística – ainda uma das bases para a sedimentação de uma visão complexa do ser humano e de seus valores éticos – e uma sociedade que tem abandonado exposições, bibliotecas, museus e salas de cinema.
As escolas, de um modo geral, procuram acompanhar as inovações que surgem a todo o momento.
Docentes agregam ao cotidiano escolar as tecnologias manejadas pelos jovens.
Para o professor, a tecnologia indica novas possibilidades cognitivas, novos modos de aprender.
A existência de uma sala de projeções, de uma televisão e de um laboratório de informática parece, no entanto, não contribuir com o ensino de literatura, cinema, artes plásticas e música.
O TRABALHO COM LINGUAGENS
Na verdade, o que ocorreu foi a veemência em aumentar a falha: esqueceu-se que, trabalhar novas linguagens em intersecção com conceitos oriundos dos séculos XVIII, XIX e XX, por exemplo, requer o profundo conhecimento das linguagens envolvidas no processo.
Fornecidos os materiais, esqueceram-se os conteúdos e as metodologias.
REALIZAR UM FILME!
Realizar um filme traz satisfação a qualquer estudante de Ensino Médio.
Habituados à linguagem visual, porque expostos a todo tipo de filme, propaganda, outdoor, verbi gratia, os estudantes sabem manejar câmeras de celular e programas de computador que os auxiliam a realizar um filme.
E, claro, a reinventar a roda.
Sim, porque, a maioria deles, falta o conhecimento do manejo adequado de linguagens diferentes, como a escrita e a audiovisual.
Falta, ainda, o conhecimento de usos sócio históricos de imagens, de movimentos estéticos no cinema e na literatura, ou seja, de tendências importantes para a contação de histórias com recursos dominantemente verbais e para a contação de histórias com recursos predominantemente visuais.
CINEMA E DOCÊNCIA
O cinema apresenta as condições necessárias para que um docente proponha atividades que, se não forem propiciadoras de ações transdisciplinares, serão, ao menos, pluridisciplinares.
Tematicamente, os filmes problematizam questões históricas,
como o holocausto, os fatos que desencadearam a Coluna Prestes, a situação de velhos e crianças com filhos e pais desaparecidos durante a ditadura militar, a ética em relações entre parentes e colegas de trabalho, a visão de pressupostos da física na época do jovem Einstein e assim por diante.
As possibilidades de reunir para debate de um tema professores de história e física, ou de filosofia e história, ou de literatura e sociologia multiplicam-se.
Esse tipo de procedimento, importante para estimular o aluno a desenvolver relações entre diversas áreas do saber, tem sido bem utilizado na vida escolar.
A consciência concernente aos recursos de linguagem que produzem o assunto em debate, porém, ou fica em segundo plano ou não é sequer cogitado, desperdiçando-se a oportunidade de reflexão sobre as linguagens com o fim de formar sujeitos críticos em relação à produção de discursos.
A cultura e a arte promovem o conhecimento e desenvolvem habilidades ligadas à criatividade, logo, à solução de problemas, à elaboração de alternativas, à comunicação eficaz.
Saul Sosnowski, em artigo intitulado Notas sobre educação e a escorregadia determinante cultura (2011, p. 90), transcreve aptidões que 182 universidades da América Latina elegeram como necessárias a um projeto que contemple a equação cultura-educação-democracia (São Paulo em 1995).
Sosnowski (2011, p.93) apresenta as habilidades que considera necessárias ao projeto, das quais destaco as de número 3, 4 e 5:
- “3. capacidade para procurar, processar e analisar informação proveniente de diversas fontes;
- 4. capacidade crítica e autocrítica;
- 5. capacidade criativa; […]”
A capacidade de procurar, processar e analisar conteúdos de fontes distintas tem uma interface com a criatividade, com a habilidade de encontrar pistas em materiais aparentemente desconectados daquilo que se busca.
Nesse sentido, o mundo dos signos verbais e não verbais estende o tapete de possibilidades de representação e de sentidos, aguça a percepção do leitor.
Quanto ao exercício da crítica e da autocrítica, as redes de tramas que dão complexidade ao mundo real fazem desconfiar do ponto de vista absoluto porque indicam a pluralidade de recortes e de compreensão.
A colocação da capacidade criativa em quinto lugar demonstra sua importância para o desenvolvimento de sujeitos aptos à inserção na economia e na sociedade do século XXI.
A criatividade auxilia na resolução de problemas, na busca por alternativas e na autocrítica.
No entanto, a falha parece apontar para uma direção oposta a essa aptidão.
- Como incentivar a criatividade se as áreas do conhecimento mais afeitas a ela são aquelas que ocupam a menor carga horária dos currículos?
- Como tornar acessíveis discursos muito elaborados a estudantes que nunca foram apresentados à linguagem conotativa, à metáfora, às técnicas que forjam a linguagem audiovisual?
No que tange à arte, lato sensu, a maioria dos estudantes brasileiros encontra-se marginalizada – excluídos no que se refere a uma leitura eficiente e alijados do processo de criação.
A NARRATIVA APROXIMA LITERATURA E CINEMA
No labirinto de relações, a narrativa aproxima literatura e cinema.
Há uma história a ser contada e recursos de linguagem específicos, mas comuns a qualquer boa narrativa.
O uso contínuo de adjetivos, conforme ocorre em Alencar, ou a economia deles, como lemos em Machado de Assis, os parágrafos longos e sem pontuação, como encontramos em Cem anos de solidão (1967), ou os parágrafos curtos com orações que imitam o movimento da câmera, como em Memórias sentimentais de João Miramar (1924) não são mero acaso.
A escolha dos recursos estilísticos está diretamente ligada ao protagonista e ao seu mundo, assim como à perspectiva enfatizada no texto.
O roteiro, em sua forma dramática, traduz uma expressão ficcional que ganhará nova dimensão na tela, ainda que o filme e seu roteiro possam ser lidos de modo independente.
A criação de um argumento ou a viagem de um texto literário para a forma do roteiro, no entanto, embora espelhem a máxima dramática dos homens em ação, mostram que, na esfera audiovisual, a câmera desvela caracteres através de enquadramentos.
O filme é um texto narrativo.
O tempo e o espaço estão a serviço da história, sustentada por recursos técnicos em que se dá a escolha por um plano sequência ou pelo corte seco na montagem, pelo ponto de vista da câmera ou da câmera a serviço do olhar de um personagem, por uma pontuação musical que demarca as entradas em cena e a ação dos personagens, ou pelo som incidental.
A compreensão dessa linguagem permite ao espectador apreender um maior número de sentidos do texto descortinado na tela.
Tanto a linguagem literária quanto a fílmica precisam ser descobertas, apreendidas e compreendidas.
Se o leitor não consegue extrair sentido da linguagem romanesca de Cidade de Deus, de suas sequências verbais com a letra “b”, as quais deslizam, gradualmente, para a letra “p”, de “rapá”, ou de frases que resumem uma vida que se revela rápida, porque as etapas que formaram aqueles meninos adultos foram encurtadas (NAGIB, 97-110), ele perderá a densidade estética da obra de arte produzida mediante escolhas culturalmente determinadas.
Ou seja, ficará alijado da reflexão sobre a produção de cultura por classes menos favorecidas – habitantes da periferia urbana de um grande centro brasileiro –, da relação que uma forma literária como o romance estabelece com a oportunidade de dar voz aos excluídos e, também, deixará de participar de um aprofundamento de questões de ordem sócio histórica e psíquica.
O leitor conhecerá a história, receberá o impacto da narração e, talvez, pressinta algo mais, uma inquietude, uma urgência a perpassar a linguagem.
Do mesmo modo, o espectador que não conseguir ler as cenas do filme Cidade de Deus, que não puder perceber os cortes secos e o índice de realismo advindo dessa opção, sentir-se-á incomodado, claro, pela violência predominante na história, mas perderá a densidade artística do filme e a complexidade do sistema social presente em certas comunidades, o qual escraviza e aniquila aqueles meninos que pretendem libertar-se da vida anônima e miserável que se lhes apresenta.
O realismo conquistado e a relação intrínseca com o livro repousam sobre a excelente adaptação de Braúlio Montovani, o trabalho intenso com os atores e as opções de montagem.
Não se pode restringir a imagem de real conquistada com o naturalismo aliado à origem de boa parte dos atores, oriundos da favela. Esse não seria um recurso suficiente para atingir o realismo alcançado pela ficção.
A literatura e o filme revelam não a História, mas aquilo que poderia acontecer; afinal, não pretendem reproduzir telejornais ou tratados teóricos.
A ficção busca emocionar o leitor para jogá-lo às feras da razão: provocando a consciência no que tange à realidade sociocultural e ao trabalho autoral, a narrativa ficcional recoloca o leitor na sociedade de um modo novo, diferente daquele em que estava quando decidiu entrar no jogo estético.
Nesse momento, ele pode perceber que a maçã de Cézanne o faz encarar a maçã que come de outra maneira
(LIMA, 2000, p. 313-328).
Para o leitor, a representação do mundo violento vivido pelos meninos-homens do romance de Paulo Lins e do filme de Fernando Meirelles coloca algo novo no mundo, algo que medeia a realidade e a torna diferente do que era antes do livro, antes do filme.
O prazer estético forma, conscientiza, abre horizontes.
A AUTORA
Vera Haas
O INÍCIO DESTE ARTIGO:
- Este artigo está apresentado em três posts.
- Acesse a primeira parte deste artigo. Como? Clique no link a seguir: < Educação, arte literária e arte fílmica >.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Augusto de. Linguaviagem. Companhia das Letras: São Paulo, 1897, 1ª edição.
COSTA LIMA, Luiz. Mimesis e modernidade – formas das sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 313-328.
MANGUEL, Alberto. O espectador comum: a imagem como narrativa. IN: _____________. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. Trad. de Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Claudia Strauch. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 25.
NAGIB, Lúcia. A língua da bala. IN: SEDLMAYER, Sabrina; MACIEL, Maria Esther (org.). Textos à flor da tela. Belo Horizonte: Núcleo de Estudos de Crítica Textual/ Faculdade de Letras da UMG, 2004.
COELHO, Teixeira (org.). Cultura e educação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2011. p. 97-110.
SANTOS, Nelson Pereira. Nelson Pereira dos Santos. Os cineastas: conversas com Roberto D’Ávila. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2002. p. 34.
SILVA, Josimey Costa da. Encontros de cinema. IN: GALENO (org.) et al. Brasil em tela: cinema e poéticas do social. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 19.
SOSNOWSKI, Saul. Notas sobre educação e a escorregadia determinante cultural. IN: COELHO, Teixeira (org.). Cultura e educação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2011.
Nota:
[1] Refiro-me aqui à ideia da linguaviagem de Augusto de Campos (próxima ao conceito de transcriação), como se lê em __________. Linguaviagem. Companhia das Letras: São Paulo, 1897, 1ª edição.