De onde vem nossa história (nossa?) e por que nós, mulheres, não estamos lá?Uma conversa.

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Brasileiras. Mulheres. Somos tão diferentes de tantas formas, mas todas nós podemos abrir um livro didático de História e nos enxergarmos sub-representadas na História do Brasil.
História e suas manas

De onde vem nossa história (nossa?) e por que nós, mulheres, não estamos lá? Uma conversa.

Brasileira. Mulher. Segundo os dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) 2019, as mulheres brasileiras são 51,8% da população brasileira.  Somos tão diferentes de tantas formas, mas todas nós podemos abrir um livro didático de História e nos enxergarmos sub-representadas na História do Brasil. Somos minoria nas páginas dos livros de História.

Na verdade, se procurarmos pelas minorias dentro desta minoria, como, por exemplo, pelas mulheres negras e pelas mulheres indígenas, esta sub-representação é quase um vazio total. Uma inexistência nas páginas dessas narrativas da História do Brasil.

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Mas será que não estávamos lá na História? Lá, no passado, há de ter existido mulheres visto que seria impossível não tê-las. Hipótese de inexistência descartada. Então, o que aconteceu? Por que as mulheres não aparecem ou quase não aparecem nas narrativas históricas?

Para responder, preciso te contar a história da escrita da História da Humanidade com outras lentes.

Sim, como as lentes de um par de óculos. Vamos usar óculos novos. Os óculos que os historiadores (no masculino mesmo) usaram já estão bem gastos, tortos, não adequados para serem usados no século XXI. Ou, talvez, nunca tiveram lentes boas o suficiente para enxergarem alguém que não fosse homem. Talvez enxergassem bem, somente, homens brancos pertencentes a determinados grupos.

Imagem de Brigitte  in Pixabay _2021

Há alguns séculos, décadas e anos, indivíduos vêm denunciando que esses óculos estão com problemas; entretanto, somente no século passado essas pessoas conseguiram, com mais sucesso, gritar (sim, elas gritaram) “ei, esses óculos aí estão com problema!”. Mesmo assim, há quem teime em usar esses óculos velhos.  Aqui, vamos conversar usando óculos novos.

Imagem de Ewa Kurowska in Pixabay

MODERNIDADE/COLONIALIDADE

Parte das pessoas que apontaram que a forma de escrever a História da Humanidade estava com problemas, que aqueles óculos estavam com problemas, pertencem ao Grupo Modernidade/Colonialidade.

Dentro desse grupo, há autoras e autores de diferentes países, mas a maioria é da América Latina. De diferentes áreas de conhecimento, elas se juntaram no final da década de 1990* para melhor ajustarem as lentes dos novos óculos. Eu escolhi esse grupo para me ajudar a te explicar porque eu, e todas as mulheres brasileiras, não nos enxergamos nas páginas dos livros didáticos de História. Acontece que a raiz do problema é profunda e eu vou precisar da ajuda desse grupo. Então, vamos lá.

Penso que primeiro é necessário compreender os conceitos de COLONIALISMO  e de COLONIALIDADE.

Aníbal Quijano (2005; 2009) diz que o colonialismo é o ato de uma nação controlar os recursos naturais e de produção, o trabalho e a identidade de outra nação que habita um território diferente. Estabelece-se um controle da autoridade política, mas, nem sempre, se estabelece relações baseadas na diferenciação e hierarquização de raças para isso. Já a colonialidade é uma imposição mais sutil à intersubjetividade humana, mais prolongada e mais enraizada.  Para o autor, o colonialismo é mais antigo, mas a colonialidade adquire uma força tal que não precisa do colonialismo para existir.

Mas por que eu estou falando em colonialismo e colonialidade? Bom, é que falo de mulheres brasileiras. Antes de 1500, estas terras eram Pindorama. O Brasil é fruto de um processo de colonialismo. Aqui, os portugueses chegaram e controlaram os recursos naturais e de produção, o trabalho e as identidades das populações que habitavam Pindorama.

Faz algum tempo, quase 200 anos, que o Brasil gritou “Independência ou morte!”. Bom, na verdade, quem gritou era português e foi a sua família que continuou no poder depois desse grito. Assim como, a maioria dos que possuíam alguma autoridade no Brasil da época. Se não eram portugueses, deles descendiam. Tinham duas características em comum: eram homens e brancos. No Brasil, o colonialismo teve suas relações baseadas na diferenciação e hierarquização de raças**.

Será que mudou? Não é o que observamos***. A colonialidade é mais prolongada e enraizada. Fruto do processo de colonialismo, a colonialidade aqui permaneceu, mesmo após a Independência do Brasil.

Como vimos quem estava no poder continua lá. Agora não mais português, mas homem e branco. Mas o que isso tem a ver com mulheres e livros didáticos?

Tudo. Quando os portugueses chegaram a Pindorama, trouxeram com eles o seu jeito de contar a História da Humanidade. Um jeito moldado no período conhecido como Modernidade. Mas que jeito é esse? Basicamente, o que os colonizadores europeus fizeram foi achar que o seu modo de estar no mundo era o único correto. A partir de sua realidade e modo de entender a vida, eles criaram a régua para medir o mundo.

Os colonizadores, autoritariamente, impuseram a sua forma de viver aos povos que aqui estavam. Chamamos isso de Perspectiva Colonial.[Cuidado: imaginar que outros povos que não os europeus eram menos desenvolvidos é o exemplo perfeito da colonialidade].

As mulheres indígenas e todos que aqui estavam não se pautavam pelo padrão europeu de estar no mundo. As famílias que aqui viviam desconheciam a cultura do pater famílias**** e da família nuclear que dominava na Europa. Além disso, alguns povos originários possuíam outras organizações de gênero e de sexualidade***** que foram condenadas e apagadas à força pelos europeus.

Para os colonizadores, as mulheres pertenciam ao espaço doméstico. E para eles, este espaço era desprovido de poder. Já os homens pertenciam ao espaço público e, mais importante, possuíam poder. Rita Segato, uma antropóloga, explica:

Nesta nova ordem dominante, o espaço público, por sua vez, passa a capturar e monopolizar todas as deliberações e decisões relativas ao bem comum geral, e o espaço doméstico como tal se despolitiza totalmente, tanto porque perde suas formas ancestrais de intervenção nas decisões que se tomavam no espaço público, como também porque se encerra na família nuclear e se isola na privacidade. (SEGATO, 2012, p. 127)

Vamos recapitular: os portugueses chegaram a Pindorama; fundaram o Brasil, tendo como parâmetro sua cultura européia da Modernidade; tudo que era diferente foi combatido; a forma como a sociedade européia lidava com mulheres foi transplantada para o Brasil; isso fez com que mulheres se tornassem figuras da esfera privada, doméstica, e homens da esfera pública.

Para os colonizadores, o espaço público narrava a História da Humanidade. Então a História do Brasil seguiu esse modelo.

Era considerado histórico (e será que ainda não é?) os homens brancos que circulavam na esfera pública e possuíam poder; o que, normalmente, significa dinheiro também. Foram esses personagens que se tornaram históricos. Muitos, mesmo tendo cometido crimes horríveis, foram elevados à figura de heróis, desbravadores, guerreiros, etc.

Mas lembra da minoria dentro da minoria na narrativa histórica?

Acontece que junto com os processos de colonização crescia na Europa a ideia de raças vinculada à cor da pele. Ao se olharem no espelho, os europeus perceberam que eram majoritariamente brancos:

A invenção da ‘raça’ é uma guinada profunda, um giro, já que reorganiza as relações de superioridade e inferioridade estabelecidas por meio da dominação. A humanidade e as relações humanas são reconhecidas por uma ficção em termos biológicos (LUGONES, 2020, p. 63).

Os colonizadores eram brancos, os colonizados não. Até o período da colonização, a escravidão de seres humanos nunca havia sido atribuída a uma cor de pele específica. Assim como nunca teve a escala, de tamanho e de violência, que alcançou nesse período.

Por isso, homens não brancos não usufruíram de privilégios como os homens brancos. Quantos homens negros e indígenas você consegue nomear que participaram de nossa História do Brasil? Talvez, Zumbi dos Palmares, mas Zumbi adentrou a nossa História depois de muitos anos. Graças a muita luta do Movimento Negro.

Essa História de olhar mais amplo, para além da figura do homem branco, é muito recente. Levar essas, e muitas outras, questões em conta faz parte da Perspectiva Decolonial (também chamada de Descolonial). E, infelizmente, mesmo trocando as lentes dos nossos óculos, muitas vezes, nas pesquisas e nas narrativas históricas, nos apoiamos, somente, em padrões que privilegiam pessoas brancas em detrimento das demais.

Já em 1851, Sojourner Truth, na Convenção de Mulheres em Akron, Ohio, leu seu discurso Ain’t I A Woman? . Mulher negra, ela chamava atenção ao fato de que não bastava buscar a libertação das mulheres se estas fossem somente as brancas. O feminismo negro e o feminismo negro afro-latino reverberaram essa e outras análises no século passado.

Imagem de Barbara Bonanno in Pixabay

No entanto, o Feminismo eurocentrado demorou tanto para aceitar quanto para assimilar as críticas. Mesmo o feminismo que bradou por interseccionalidade a partir da década de 1970 no norte geopolítico entre feministas brancas: “Ou seja, não entenderam a si mesmas em termos interseccionais, na intersecção de raça, gênero e outras potentes marcas de sujeição ou dominação” (LUGONES, 2020, p. 83). Precisamos estar atentas para de fato tentar escrever uma nova história. Os óculos precisam ser novos, não apenas uma versão repaginada dos óculos velhos.

Como jogamos fora de vez esses óculos velhos que ainda narram a história enxergando um tipo humano bem específico como o condutor do enredo ou o que mais se assemelha a esse modelo? É preciso comprometimento com um futuro melhor, com um olhar mais crítico ao passado. Sabendo que:

“Certamente o passado jamais passa no sentido que o senso comum entende por passar. A questão fundamental não está em que o passado passe ou não passe, mas na maneira crítica, desperta, com que entendemos a presença do passado em procedimentos do presente. Nesse sentido, o estudo do passado traz à memória de nosso corpo consciente a razão de ser de muitos dos procedimentos do presente e nos pode ajudar, a partir da compreensão do passado, a superar marcas suas. (FREIRE, 2000, p. 34-35)

Foram anos de lutas e de resistências que levaram a mudanças sociais. Permitindo, assim, que a História da Humanidade fosse questionada e ampliada. Serão ainda anos de reivindicações e de lutas para registrarmos uma História mais justa. Que canseira, né? Dá uma desanimada. Mas qual seria a outra opção? Desistir e deixar tudo como estava antes?

Imagina se as mulheres do passado tivessem desistido, onde estaríamos agora? Desistir não é opção. Pelas que se foram, pelas que aqui estão e pelas que virão, a História da Humanidade precisa contar outras histórias.

A AUTORA

Paolla Ungaretti Monteiro
Doutoranda PPG-Educação/PUCRS
Bolsista CAPES
paolla.u.m@gmail.com
NOTAS:

[*] Disponível em: <IBGE_conheça o Brasil > . Acessado em agosto de 2021.
[**] Ofereço uma análise melhor desta questão em: MONTEIRO, Paolla Ungaretti. (In)visibilidade das mulheres brasileiras nos livros didáticos de história do Ensino Médio (PNLD, 2015). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: Programa de Pós-Graduação em Educação. Dissertação de mestrado. 2016.
[***] Disponível em: < Política_eleições >. Acessado em agosto de 2021.
[****] Em Roma o termo designava o homem que possuía terras. Com o tempo, passou a incluir pessoas que de alguma forma estavam sob sua autoridade. Como, por exemplo, a esposa, os filhos e escravizados. Ver: AMUNÁTEGUI PERELL, 2006, p.37 – 143.
[*****] Paula Gunn Allen (1986) conta, por exemplo, da classificação que os yumas utilizavam: “Os yumas tinham uma tradição para designar o gênero que era baseada em sonhos; uma fêmea que sonhava com armas transformava-se em macho para todos os efeitos” (GUNN, 1986, p.196). A mesma autora também mostra como povos originários da América do Norte aceitavam homoafetividades sem o tabu social que temos hoje.

Referências e dicas de leitura:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Editora UNESP: São Paulo, 2000.
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): 320, setembro-dezembro 2014.
_______________. Colonialidade e gênero. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.
________________ . Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Introdução de The darker side of western modernity: global futures, decolonial options (Mignolo, 2011), traduzido por Marco Oliveira. REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS – VOL. 32. 2017 N° 94.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
_________________ Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa & MENESES, Maria Paula (org..). Epistemologias do Sul. Edições Almedina: Coimbra, 2009.
SEGATO, Rita. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. Editora Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra: e-cadernos CES, 18, 2012: 106-131.

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