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A carta foi escrita no começo dos tempos pandêmicos (março de 2020). O que há de atual?
Educação

A CARTA QUE NÃO POSTEI

Cara Mona Lisa,

Escrevo este texto em meados de março do ano de 2020. Quando nos encontrarmos, pode ser que algumas preocupações aqui expostas não se façam relevantes, assim como estejam ausentes considerações essenciais. Prossigo acreditando nos frutos de nossas reflexões, de nossas preocupações e de nossas expectativas compartilhadas.

Uma das consequências vivenciadas, até o momento, foi a suspensão de atividades de ensino presenciais e – em diversas instituições de educação [tanto de nível superior quanto de Educação Básica] – a manutenção das aulas, ou de parte dessas, utilizando as tecnologias digitais de ensino para a oferta de aulas e/ou de atividades didáticas à distância.

Aparentemente, o sistema mais utilizado está sendo a plataforma digital Moodle e, na sequência, a Google Classroom: espaços virtuais onde professores e professoras podem criar ‘salas’ e nestas utilizarem diferentes ferramentas pedagógicas, como exposição de vídeos ou áudios, publicação de textos diversos, recomendação de estudos dirigidos, propostas de fóruns de discussão, busca de solução e/ou análise de questões-problemas sugeridas.

Diante desse contexto, e pensando sobre o ensinar História nos tempos atuais, assim como sobre os processos de aprendizagem e de produção de conhecimento, tanto nos espaços físicos quanto nos virtuais, cabem questionamentos. Apresento exemplos:
  • Como as Tecnologias de Informação e Comunicação [TICs] podem contribuir com o ensino de História na atualidade?
  • Quais as suas limitações e alcances?
  • Como pensamos estas ferramentas enquanto instrumentos pedagógicos e na qualidade de fontes históricas?
  • Como pensamos a produção de conteúdo – por estudantes e por docentes – nas formas digitais?
  • Como as desigualdades sociais implicam nas aulas e/ou atividades propostas remotamente?
  • Ciente que ensino presencial e ensino à distância possuem características/estruturas próprias, quais as implicações do ensino remoto de História no desenvolvimento do pensamento histórico em estudantes da Educação Básica neste período?

Como é complexa, interdisciplinar e desafiadora a dedicação ao ensino de História! Uma práxis que extrapola a noção rudimentar de que o ensino de História corresponderia, apenas, ao ministrar o conhecimento acadêmico nos diferentes níveis e espaços de ensino existentes, a partir de escolhas metodológicas adequadas ao dueto público discente e conteúdo previsto. Neste sentido, lembro Paulo Freire: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou construção [Freire, 1996, p.22]”.

HISTÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA

Na qualidade de disciplina escolar, a História tem a responsabilidade de propiciar o desenvolvimento do saber histórico entendo-o como uma das forças de formação do sujeito. Está em suas searas a contribuição para o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo discente, além do estímulo ao questionamento da realidade e/ou do apresentado como natural ou na ordem do senso comum nas diferentes sociedades.

Quando falamos em metodologias de ensino de História estamos, obrigatoriamente, pensando em quem ensinar – em quais espaços-tempo ensinar – com quais objetivos ensinar. Estamos pensando no significado de ensinar e de aprender. Estamos nos preocupando com os processos que levam à apreensão dos conceitos da História, assim como, com o desenvolvimento de um letramento histórico. Estamos nos preocupando com o que contribui com o processo de ensino-aprendizagem [e com o que pode comprometer] e com os referenciais epistemológicos da História [Caimi, 2009].

O ensinar História é uma ação atravessada por fatores como a cultura escolar das diferentes instituições de ensino, as condições do prédio escolar, o universo sócio – econômico e as necessidades práticas do público discente, as demandas da sociedade, a legislação educacional, a política do governo em questão, os acontecimentos que impactam a comunidade.

A PANDEMIA

Imagem de Frauke Riether in Pixabay (2021)

Um dos acontecimentos que impactam nossa sociedade, neste momento, é a pandemia causada pelo novo coronavírus [Covid-19]. Entre as recomendações para tentar diminuir as vítimas da pandemia e a sobrecarga do sistema de saúde está o isolamento social. Neste momento, pensar o contexto nacional é concordar com Marc Bloch: “A história se encontra desfavorável às certezas”.

Temas como o Sistema Único de Saúde [SUS], o entendimento do acesso ao atendimento médico como parte dos direitos humanos, reflexões sobre valores como igualdade e indulgência, assim como sobre a interdependência global, questões de gênero estão em pauta. Reflexões sobre o isolamento social revestem-se, também, de status classista e nos mostram que, se o vírus não discrimina, nossa sociedade é dotada de instrumentos que o fazem.

Esta pandemia não é a primeira que assola a humanidade. Assim como em outros espaços/tempos, suas implicações não estão restritas ao campo de estudos das ciências biológicas.

Qual o papel das ciências sociais, em especial da História, neste momento?

Como o ensino de História pode contribuir com a compreensão dos efeitos e usos da pandemia nos contextos culturais, econômicos e políticos e sociais? Em que medida o ensino de História está sendo percebido como próximo da experiência humana ou estrangeiro ao cotidiano de homens e mulheres [Ricoeur, 2012] ou, ainda, uma disciplina de curiosidades/de dimensão ficcional? Penso que estas perguntas devam ocupar nossas reflexões, entre outras razões, por estarem relacionadas a questionamentos sobre a finalidade do estudo e do ensino da História e a interesses que o mobilizam ou que o atravessam.

As experiências, por ora, vivenciadas por sujeitos estudantes pautaram os conteúdos selecionados para estudo ou metodologias eleitas?

Responder a esta pergunta é, também, um exercício de pensar o quanto [e como] estamos percebendo os sujeitos para quem preparamos nossas aulas, pensamos conteúdos e metodologias. Neste sentido, entre outras questões, é necessário indagar sobre nossa capacidade de comunicação com o público do ensino de História. Creio que vivenciamos um momento que alardeia a necessidade de pensarmos como está a nossa capacidade de comunicação do conhecimento histórico em diferentes espaços e para seus públicos diversos.

Esta é uma das questões que sempre pautaram as minhas preocupações, ao longo de mais de 25 anos, enquanto professora de História na Educação Básica. Infelizmente, negacionismos históricos e seus desdobramentos confirmam ideias advindas dessas reflexões. Felizmente, esse mesmo fenômeno já rendeu algumas iniciativas em prol da comunicação do conhecimento histórico para além dos recantos acadêmicos.

A comunicação no palco de atuação do ensino de História necessita de um olhar cuidadoso [e profissional] para a narrativa docente do saber histórico. É o fio dessa narrativa histórica o facilitador para o entendimento discente dos processos e dos acontecimentos estudados [Monteiro e Penna, 2011], de conceitos específicos da História e, também, para a atribuição de sentidos aos conteúdos das aulas.

Quando me refiro à narrativa docente do saber histórico não estou, de forma alguma, defendendo destaque às preleções docentes. Pelo contrário, refiro à narrativa docente do saber histórico enquanto força de mediação no processo ensino-aprendizagem [e até de sedução à historiografia]. Neste sentido, o pensamento de Paulo Freire [2005] em relação à importância do silêncio, do escutar e do respeito à leitura de mundo do educando foi uma das bússolas que orientaram parte de minhas reflexões em relação à importância da comunicação do conhecimento histórico [e não apenas]: “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História [Freire, 1996, p.136]”.

O ensino de História opera numa zona de convergência entre os campos da Educação e da historiografia em um espaço que – para além dos territórios escolares [formais ou não] – alcança questões particulares das comunidades de origem da população que compõe a comunidade escolar.

Os cuidados desencadeados em função da pandemia, como já mencionado, levaram muitos educadores a utilizar o Ciberespaço: uma decisão que, para muitos docentes, está representando grande desafio e, também, stress. Importa pensar a produção do conhecimento histórico e metodologias viáveis nesta seara. Importa, também, refletir sobre a complexidade e as condições do trabalho docente e a respeito das fronteiras escolares para além dos seus limites físicos.

Não falta matéria para ocupar nossos pensamentos e, creio, levaremos algum tempo para conseguirmos analisar a complexidade do momento atual. Entretanto, no instante, vivenciamos o adventício e este nos diz que o fazer pedagógico está em mutação nos quesitos: lugares de existir, possibilidades técnicas, tempos e extensão, trabalho docente.

Lembra-nos, também, que temos ideias e práticas que – apesar de esforços reflexivos que os denunciam – continuam permeando a ação de ensinar de História, seus textos, produções e escolhas metodológicas como: ‘invisibilidades’ de diferenças e desigualdades; questões de gênero; preconceitos de classe e étnicos.

Imagem de Zorro_4 disponível in Pixabay (2021).

Uma das questões que me preocupam é a necessidade da aposta em metodologias que propiciem a constituição de um pensar crítico em relação à humanidade, aos problemas que afetam nossa sociedade e ao conhecimento transmitido e produzido.

Metodologias que incentivem o espírito de pesquisar, a arguição de fontes e de fatos e o questionamento de nossos papéis nas realidades que vivenciamos. Metodologias que auxiliem a inferir o significado de cidadania na contemporaneidade, que nos recordem que “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo [Freire, 1996, p.98]”.

Propostas que discutam nos campos da historiografia e – a partir do contributo de outras ciências – aflições atuais como o medo [e a gestão política do medo] que, na atualidade, parece pairar sobre nossos espíritos, conseguindo nos adoecer. Se sempre foi uma necessidade, nos dias atuais, parece uma urgência: “deixar transparecer […] que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo [Freire, 1996, p.28]”.

Se um dos objetivos do ensino da História é contribuir para a expansão do ideário da cidadania enquanto bem comum é urgente, por exemplo, problematizar historicamente, a desvalorização da ação política e a imagem “do cidadão apenas como o contribuinte, o consumidor, o reivindicador de benefícios individuais ou corporativos [Benevides, 1996, p.1]” e refletir sobre como o ensino de História e suas metodologias podem contribuir para uma “educação para a democracia [Benevides, 1996] e para o entendimento da constituição da cidadania na dinâmica das práticas sociais.

Tema covi-19. Imagem de Rafael in Pixabay (2021)
Entre as temáticas circulantes nas redes sociais encontram-se questões relativas ao contexto do isolamento social.

Para o ensino História, representam, entre outras oportunidades, a proposição de questões-problemas envolvendo múltiplas temporalidades; a arguição à historiografia sobre experiências vivenciadas em outros espaços/tempos que possam contribuir para o entendimento do tempo presente e para o exercício de percebermo-nos como seres sociais ativos. Representa uma oportunidade de escuta aos aprendentes e de proposição de exercícios investigativos lembrando que “o verdadeiro ensino sempre pressupõe pesquisa e descobertas […] e a História é uma experiência que deve ser também concretizada no cotidiano [Fenelon, 1981, p.13]”.

Se o combate à pandemia expôs o ensino da História e as preocupações com suas metodologias para o ‘modo on-line’, também, evidenciou a carência do letramento digital (apesar da existência de um mundo megaconectado e da emergência de novos meios e tempos/espaços de aprendizagem).

Evidenciou que o uso do Ciberespaço não significa uma educação inovadora.

Imagem de Markus Winkler in Pixabay (2021).
Neste dias, observo muitos colegas – simpáticos ou não aderentes à multimodalidade e confortáveis ou não com a exploração e a utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação [TIC] nos contextos educativos – cansados.

Muitos pressionados pelas instituições que, alicerçadas em ‘discursos neotecnicistas’, impõem a eles disporem de habilidades que, no momento, não dominam. Esquecemos da complexidade do trabalho docente? Pensar o ensino e suas metodologias [no caso o ensino de História] passa por pensar, também, a docência e a estética da professoralidade [Pereira, 2013].

Professores e professoras, em discursos diversos, são responsabilizados pelas questões da educação. Sem dispensar a ironia e sem desconhecer nossas responsabilidades, procuro nossos super poderes sobre todos os agentes e elementos da educação.

Retomando os dias de hoje  – e as pressões para que na docência modo on-line [expressão que ouso usar para o trabalho docente neste período] cumpram-se currículos pensados antes do mundo pandêmico, realizem – se avaliações  tradicionalmente programadas – lembro que um cotidiano conectado não é sinônimo de condições para aderência [ou possibilidade de usufruto] a práticas pedagógicas e ações de aprendizagem no Ciberespaço. “È uma ideia simplista e equivocada supor que a disponibilidade de acesso às TIC em distintos espaços e tempos e o domínio instrumental dos seus recursos seja suficiente para propiciar um uso significativo [Almeida, 2012, p. 12]”.

Nenhuma teoria e – por consequência – nenhuma eleição metodológica é inocente.

Quando nossa práxis pedagógica se define?  Recordo quando ingressei no mundo da docência no ano de 1989: o ensino da História estava em discussão, mas para mim – recém iniciando  a constituição de minha professoralidade [Pereira, 2012] – havia a comunidade escolar e a escola com a sua cultura e os alunos e as alunas. Um mundo onde eu encontrava com a gravidez na adolescência, o trabalho infantil, a assunção de identidade de fracasso escolar, questões de sexualidade e inteligências e vir – a -ser comprometidos pelas realidades vivenciadas.

Qual o objetivo do ensino da História? Quando a professora aprende e quando ela ensina? Qual o sentido da educação? Era o início de uma reflexão que ainda não teve fim.

Prezada Mona Lisa,

Não encerro esta carta com respostas sobre o ensino de História e suas metodologias no contexto da pandemia de coronavírus no Brasil. Não tenho essa pretensão. Concluo com o convite para compartilharmos nossas experiências e apreensões. Lembro Paulo Freire: a gente se constitui professora e professor na prática e na reflexão sobre a prática [Freire, 1991, p.58]”.

Foto editada. Original in stocksnap_ autor Vintage RS
P.S. Cara Mona Lisa,
Esqueci de postar a carta. Não fique chateada. Já conversamos sobre o conteúdo desta missiva via Skype, Google Meet, Watsapp e até pelo direct do Instagram. Para não perder nosso ‘charme jurássico’ (e não dexar a amiga chateada) enviarei na data de hoje (19 de junho de 2021).

Notas
[1] – Pensar ensino de História e suas metodologias é, concomitantemente, pensar as razões da existência dessa disciplina escolar, a sua relevância social, a sua constituição e os seus desafios ao longo do tempo. Bittencourt [2009, p.41] pontua que “o que mantém a História [e as demais disciplinas] nos currículos escolares são as finalidades a elas atribuídas enquanto disciplina escolar”, o que nos leva a duas questões: a maneira e os sentidos que historiadores [as] e professores [as] entendem o ensino de História e sua importância na grade curricular e os sentidos atribuídos pela sociedade a esta.
[2] – Este texto é um recorte (e uma adaptação) do apresentado na  Mesa de Ensino de História: Teorias e Metodologias no 6 Simpósio Internacional Eletrônico de Ensino de História (maio, 2020) diponível em <Ensino de História em tempos de pandemia de Covid-19 >.

Referências

ALMEIDA, Maria Elizabeth B. de. Prefácio. In: COSTA, Fernando Albuquerque [coord.]. Repensar as TIC na educação. O professor como agente transformador. Lisboa: Santillana, 2012.
AZEVEDO, Crilane  B. e STAMATTO, Maria Inês. Teoria historiográfica e prática padagógica: as correntes de pensamento que influenciaram o ensino de história no Brasil. In: Antíteses, vol 3, n.6, jul-dez de 2018, PP. 703 – 728.
ARROYO Miguel. Educação e exclusão da cidadania. n: BUFFA, Ester; ARROYO, Miguel e NOSELLA, Paolo. Educação e Cidadania quem educa o cidadão? 14 ed. São Paulo:Cortez, 2010 [Coleção questões da nossa época;v.6].
BENEVIDES, Maria Victoria. Educação para a Democracia [versão resumida de conferência proferida no âmbito do concurso para Professor Titular em Sociologia da Educação na FEUSP, 1996].
CAIMI, Flávia E. História escolar e memória coletiva: como se ensina? Como se aprende? In: ROCHA, Helenice e outros [orgs]. A escrita da História Escolar – memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.
FENELON, Dea R. A formação do profissional de história e a realidade do ensino. Caderno Cedes [8]. São Paulo: Cortez, 1985.
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991.
______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 [Coleção Leitura].
MONTEIRO, Ana Maria e PENNA, Fernando de Araújo. Ensino de História: saberes em lugar de fronteira. Educ. Real., Porto Alegre, v. 36, n.1, jan./abr., 2011, p. 197.
PEREIRA, Marcos Villela. Estética da professoralidade: um estudo crítico sobre a formação do professor. Santa Maria: Ed da UFSM, 2013.
RICOEUR, Paul. O passado tinha um futuro. In: MORIN, Edgar [Org.]. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

 

 

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