Imagem de Vera Haas.

 OS RISOS DE FIRMINA

Aos dezessete anos já estava casada. Antes dos dezoito, com a primogênita no colo. Depois viriam mais duas meninas, para alegria dela e do marido, o qual se encantava com as pequenas e nunca reclamara a vinda de um varão.

O início fora difícil.

Saíra de casa enfrentando os pais que não viam com bons olhos aquele rapaz de 22 anos, um pedreiro de profissão mas faz-tudo quando necessário, anos mais velho que a jovem negra, dona de uma farta cabeleira a emoldurar o corpo roliço.

Casaram de papel passado e tudo, com ela já de barriga, quase trazendo a criança ao mundo.

Muito mocinha já fora contratada para trabalhar em casa de família, como falavam à época.
Prosseguiu na profissão, ela e o marido davam duro. Ela explicava – e, nessas ocasiões, estendia o “erre” final:

Eu era faxinera. Não tinha muito estudo, sabe?

Hoje chamam de secretária – enfatizava a última palavra, soltava um muxoxo e ria –, é tudo a mesma coisa!
Eu ia lá pra limpar e arrumar, sempre foi assim, né

Imagem de Vera Haas
A vida emprestara àquela mulher de rosto amplo um riso que explodia fácil.

Em especial, quando falava de si mesma.

Nesses momentos, ria com gosto, tomando um cafezinho e pitando o palheiro.
Claro, só fumava no pátio da casa cuja família atendia. Jamais dentro da residência dos outros!

No apartamento, ia para a sacada. Nem todo mundo gostava – ou suportava – o cheiro de um palheiro.
Aprendera a fazê-lo com o marido, seu companheiro de todas as horas.

Ah, se o apartamento não tivé sacada? Bom, tem janela, né? – e se divertia mostrando a solução para os pequenos vícios, como chamava.

Houve momentos em que ela trabalhara em dois lugares no mesmo dia.

Era uma atucanação!

Viajava de ônibus “dum lado pro outro”, e, às vezes, se dava, ia a pé – “pra economizar, sabe?”.

Saia de manhã e só voltava no fim da tarde. Por esse motivo, costumava deixar o almoço pronto para a família, preparava tudo à noite…

Era chamada para atender as donas de fazendas aos sábados. Então, um pouco sonolenta, “ia pra fora” por volta de cinco da manhã.

Há algum tempo, Firmina mora em uma casa ampla, de material.
Muitas paredes foram levantadas pelo marido em dias de folga, ou quando esteve desempregado. O dinheiro das faxinas fora o amparo da família em tempos difíceis.

Nos fundos do terreno, duas árvores oferecem sombras refrescantes em dias de calor.
Imagem: Vera Haas.
Na frente, um pátio com grande variedade de flores em tons rosa embeleza o lugar.
Dois vira-latas que ela ama extremadamente trazem alegrias ao casal que, agora, divide com os cães uma vida mais pacata.

Sabe, as guria têm a vida delas, a família, né!
Bom, a caçula diz que não pensa em casá, qué estudá mesmo
.– sente orgulho da filha. E preocupa-se. – Quer fazer carreira na Química… Só não pode casar muito tarde. No curso, estudamo os problema duma gravidez depois de 40 ou 50…

A mulher, olhando sob as lentes grossas dos óculos, referia-se ao Curso de Técnico em Enfermagem.
De dia, continuava a limpar e organizar o lar de outras mulheres.
À noite, três vezes na semana, tinha aula. E, claro, trabalhos para fazer, dias de prova etc. etc.
Por vezes, confessou certo atordoamento, era muita coisa! – mas sabia que não conseguiria trabalhar com limpeza toda a vida. Então, permanecia no Curso e ria de si mesma, de sua falta de costume com “os estudo”.

Parecia muito consciente quanto a suas escolhas.

Daqui há uns ano, vou começar a cuidar de idoso. Tem muito aqui. Sabe, os filho vão embora, tentá a vida na cidade grande, em Porto Alegre. Depois, não voltam mais tão seguido, né! Eles chegam no Natal, por exemplo. E aí, quem vai cuidar dos velhinho? Hoje já tem falta de cuidador aqui na cidade – encerrava sorrindo e, claro, já sublinhando os “erres”, um cuidado todo seu.

Atualmente, Firmina já tem os cabelos quase totalmente brancos.

Como ela mesma soubera, não tem mais a mesma agilidade de outrora.
Na pequena cidade, é uma profissional requisitada como cuidadora ou acompanhante de idosos – talvez porque, à excelência profissional, reúna ainda seu incansável bom humor.
A filha caçula é professora da universidade, continua solteira e mora na capital.
As filhas casadas e as netas costumam reunir-se com ela em fins de semana. Moram na mesma cidade que Firmina.

Amanhã vou fazê bolo de chocolate! De tarde, vem as menina da Lia, a minha mais velha – e a alegria explode no riso gostoso, dos lábios e dos olhos.

Sim, agora os olhos de Firmina também dão risadas.

A  AUTORA

Vera Haas

Vera Haas
Vera Haas e Frederico
Notas da autora:
  1. Firmina pronunciava solenemente as vogais “e” e “o” finais, como fazem gaúchas e gaúchos do interior do RS.
  2.  Os avós maternos de Firmina eram originários de Goiás e haviam se estabelecido no interior de São Paulo. Lá a mãe conhecera o marido e, após o matrimônio, o casal viajara para o  Rio Grande do Sul, estado brasileiro, em que já viviam, há tempos, dois irmãos do seu Itamar, o pai de Firmina.
  3. Assim, a apócope do “erre” e o “erre” final espichado ([r] semelhante a uma sequência de três “erres”) formaram família ao sul do Brasil, colorindo ainda mais a variante lingüística do lugar.
  4. Crônica data de abril de 2011.

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