Cris Costi brinda Histori-se com este lindo conto de amor.
Você pode ler e/ou escutar (vídeo) a leitura feita pela Cris Costi.
A autora contou que fez algumas aproximações com a canção de Simone Guimarães cujos versos compõem a epígrafe que abre o texto.
Jardineiro, amante se faz… Aprecie o texto e descubra.
COM TEUS PÉS DE BORBOLETA
“Quando tu passas por mim,
rangendo ao jogo, ajuda o vento”.
(Simone Guimarães)
No dia um do ano um, quando éramos, ambos, tão mais jovens, saíste da tua casa pela porta dos fundos e caminhaste, passos rápidos, direto em minha direção.
Ouvi teu nome, te disse o meu, e ali, na minha frente, me deste as primeiras instruções.
Designaste o que fazer por obrigação: arar, regar, tirar o que houvesse de daninho.
Combinaste hora e salário, inventariaste tuas mudas preferidas, me levaste em direção ao espaço do pomar.
Tu sabias tudo: os meses favoráveis ao plantio, a época de colheita das frutas, o tempo das florações
Desde aquele dia eu te ouvi um teu devoto.
Tinhas me vindo feito uma aparição.
O vestido longo, leve, feito de panos sobrepostos: transparências a chegar sempre um passo atrás de ti.
Os pés descalços, como virias todos os dias, por todos esses anos.
Se não piso a terra, eu não a sinto, me dizias. Eu te entendia – ninguém te entendia mais que eu.
E eu olhava a areia escura que cedia às pegadas dos teus pés de dedos firmes, claros, de marfim.
Nos entendemos tanto que passavas boa parte do tempo a trabalhar junto comigo.
Tantas vezes foram tuas as mãos que abriram espaço às sementes que eu brincava já mal merecer meu pagamento.
Tu rias, e, enquanto pressionavas a terra, eu ouvia, confundido com teu riso, o tilintar das tuas pulseiras fazendo nascerem os gerânios, as acácias, os girassóis.
Tudo em nós nos foi ficando habitual.
Os sucos que me trazias quando as tardes iam lá pela metade, as flores que eu colhia e arrumava, volumosas, quando chegavam as sextas-feiras.
As garrafas de vinho com que me presenteavas a cada fim de ano e que eu sagradamente abria em minhas ceias às vezes divididas com um primo ou com um sobrinho, quase sempre solitárias.
Foi num desses natais que, pela primeira vez, eu te escrevi.
Eu tinha passado a tarde podando as alamedas laterais, e tu custaste a sair de casa, ocupada que estavas com assados, com temperos, especiarias.
Mas então, quando vieste – eu já quase juntando minhas coisas para ir embora -, me pediste dois ramos frescos de alecrim.
Caminhei até o canteiro, me abaixei e os colhi.
Quando ergui o corpo, estavas ali, braço esquerdo estendido à frente na minha direção. E nele, imóvel, pousada, uma borboleta.
Há de ser sorte, me disseste, enquanto a fizeste passar do teu braço ao indicador, a tua unha um trampolim para o bater das asas amarelas, pequeno voo feito de gaze e de cetim.
Eu congelei aquela imagem, eu não quis nunca mais me perder dela.
Por isso, naquela noite, minha casa já vazia, a madrugada já indo alta, os restos de ceia ainda sobre a mesa, eu não podia dormir.
Peguei a caneta e abri um caderno, o primeiro de todos os que viriam a ser teus.
Estão todos aqui.
Para além daquela noite, estão neles as lembranças dos nossos primeiros meses, e dos meses do ano seguinte, e dos anos seguintes, os tantos anos.
Estão neles as tuas gestações, a que murchou e a que vingou, e a força do teu corpo grato empurrando o teu filho no balanço que mandaste construir e que eu ladeei de margaridas.
Estão neles o registro das vezes em que esperaste o teu menino: nas voltas da escola, do intercâmbio.
Do trabalho. Da lua de mel e do outro continente onde ele foi morar.
Estão neles, nos cadernos, a nossa cumplicidade, a nossa amizade ainda além do meu amor.
Esse tempo em que vi nossas mãos envelhecerem lado a lado ao toque familiar da terra úmida.
Em que nunca te chamei – e nem tu me deixarias – de senhora.
Mesmo quando veio o luto, mesmo quando da tua viuvez e do teu recolhimento, teu coração como em um estojo, mesmo então, de ti, eu nada e nunca esperancei.
Segui ali colhendo as tuas flores e os teus frutos, te levando ramalhetes e cestos de maçãs como quem te entregasse ouro e rubis.
Mas hoje, dia cento e vinte do ano trinta e seis,
te escrevo para te dizer, neste caderno, daquilo que ainda não me tiveste coragem de contar: que depois de tanto tempo este tempo já vai quase em seu fim.
Eu soube há dias.
Eu cuidava do canteiro de begônias que plantamos junto à janela da cozinha quando ouvi tua voz falando à Dona Cida que achas que, enfim, chegou a hora.
Que vais ceder aos apelos do teu filho, fechar a casa e ir morar onde ele está.
Foi o ar em suspensão.
Da tua casa até a minha, foi como um dia seco de janeiro.
Como o peso do céu que antecede o temporal.
Aqui, sentado, me doem as costas, e a noite haverá de ser difícil.
Mas amanhã,
quando eu voltar ao teu jardim e quando passares por mim, de um lado ao outro – teus passos já tão lentos quanto os meus –,
amanhã, eu sei,
hei de pensar em uma forma de aterrar um oceano para que possas atravessá-lo
com teus pés de borboleta.