Mãe Rita e Mãe Menininha (usando óculos).
e a ciranda de mulheres.

Muitas mulheres foram responsáveis pela formação do nosso país, da nossa História.

O presente século poderá vir a ser reconhecido como o momento na História do Brasil em que as mulheres simples e anônimas são reconduzidas à fala. E, assim, nossa compreensão deste país se reescreve.

Mulheres pretas têm se destacado na transmissão de narrativas que valorizam a ancestralidade.

Biografias, artigos científicos, contação de histórias e obras de arte analisam, apresentam e homenageiam Mães de Santo que mantiveram vivas a cultura e a religião africana de matizes iorubá, nagô, ketu, por exemplo.

Mãe Menininha e Jorge Amado.

Mãe Menininha e a ciranda de mulheres

Do Gantois, na Bahia, emergiu uma das figuras mais importantes tanto para o reconhecimento das casas de candomblé quanto para a compreensão dos papéis sociais desempenhados por uma Mãe de Santo.

À frente do Ilê Iáomi Axé Iá Massê (Casa da Mãe das Águas), Mãe Menininha orientou a vida espiritual e prática de filhas e filhos.

A música, “Oração de Mãe Menininha”, de 1973, composta por Dorival Caymmi, conquistou o público rapidamente.

Naquele ano, em São Paulo, a Phonogram produziu o show “Phono 73“, o qual reuniu mais de 35 artistas do elenco da gravadora. Na ocasião, Gal Costa e Maria Bethânia interpretaram “Oração de Mãe Menininha“, registrada no LP homônimo.

A canção desvenda a figura da sacerdotisa. Se o estribilho revela o clamor dirigido à Mãe de Santo, as demais estrofes demonstram o afeto e o reconhecimento à ialorixá:

A estrela mais linda, hein
Tá no Gantois
E o Sol mais brilhante, hein
Tá no Gantois

A beleza do mundo, hein
Tá no Gantois
E a mão da doçura, hein
Tá no Gantois

O consolo da gente, ai
Tá no Gantois
A Oxum mais bonita, hein

Tá no Gantois

Os astros do dia e da noite em suas respectivas plenitudes identificam aquela que dirige o terreiro.

A ela cabem tanto a beleza quanto a doçura em superlativos. Trata-se da Mãe que traz o consolo e da “Oxum mais bonita”: nesse trecho, a estrofe conjuga em uma mesma imagem a divindade que embala, que consola, e que se distingue pela aparência bela e sedutora.

Em seguida, o sujeito lírico reconhece que foi “Olorum que mandou essa filha de Oxum \ tomar conta da gente e tudo cuidar”, colocando-se como voz que aceita a determinação do Criador de todas as coisas e a energia recebida através dos orixás, como Oxum.

Olorum é o Criador, o Pai de todos os orixás por meio dos quais transmite sua vontade e suas manifestações.

Oxum, única deusa com acento no conselho dos orixás, aquela que preside aos nascimentos e protege mães e crianças, é também a mulher sedutora e vaidosa.
O sujeito lírico anuncia seu lugar de pertença ao declarar o reconhecimento da força de Olorum em Oxum.
Assim, a homenagem à ialorixá mais querida da Bahia traz, a um só tempo, o reconhecimento de filhos e devotos.

Em 1976, a Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel rendeu sua homenagem ao Gantois e à ialorixá que, apesar da idade, esteve presente no desfile das escolas do Rio de Janeiro.
O samba enredo “Mãe Menininha do Gantois”, do carnavalesco Arlindo Rodrigues, foi interpretado por Elza Soares e pelo puxador Ney Vianna.

O Álbum Obatalá, da Banda Ofá, de 2019, homenageia Mãe Carmen, filha de Mãe Menininha do Gantois.
O trabalho reuniu artistas como Gilberto Gil, Marisa Monte, Alcione, Margarete Meneses, Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Paulinho da Viola, entre outros. Uma das faixas traz à memória a força do Gantois, transmitida de geração em geração entre as mulheres da família.

Considerada uma das maiores ialorixás do Brasil, Maria Escolástica da Conceição Nazaré foi apelidada de Menininha pela avó, Pulchéria da Conceição Nazaré, também ialorixá.

A neta, menina pobre da periferia de Salvador, dava aos bonecos improvisados os nomes das divindades do candomblé: Oxóssi, Ogum, Oxum entre outros. E, desde pequena, gostava de jogar búzios.

Era ainda bisneta de Maria Júlia da Conceição Nazaré, fundadora, em meados do século XIX, do Ilê Iáomi Axé Iá Massê, popularizado como Terreiro do Gantois.

Antes de seu chamado ser confirmado, Menininha trabalhou como costureira. Casou-se com o advogado Álvaro McDowell de Oliveira, descendente de ingleses, com quem teve duas filhas: Cleusa e Carmem. Em 1924, mudou-se definitivamente para o Gantois.

Schumaher e Brazil, no Dicionário Mulheres do Brasil, contam a história do Terreiro e da escolha de Menininha:

 “Maria Júlia, bisavó de Menininha, após acirrada disputa sucessória na Casa de Iá Nassô, desencadeada com a morte de Marcelina da Silva, Obá Tossi, fundou o terreiro no Alto do Gantois, na casa onde sua família já estava instalada desde a década de 1870.

Essa propriedade pertencia anteriormente a uma família francesa, os Gantois, daí a origem do nome.
No Gantois a sucessão foi sempre por via dinástica e herança genética.

Assim, quando Maria Júlia morreu, foi sucedida pela ialorixá Pulquéria da Conceição Nazaré, sua filha natural; anos depois, após a morte desta, assumiu Maria da Glória Nazaré, que dirigiu o templo somente por dois anos.

Com esta perda, Mãe Menininha se afastou dos trabalhos no terreiro, só frequentando algumas poucas cerimônias.

Em uma destas ocasiões, em fevereiro de 1922, quando se celebrava um ritual pela memória de Pulquéria, ela foi designada, pelos orixás, a ocupar a direção do terreiro” .

 Sob a orientação das mulheres da família, Menininha fora iniciada nos segredos da religião africana e preparada para o cargo que assumiria a partir daquela data.

Mãe Menininha do Gantois
A própria ialorixá narra:

“Minha avó, minha tia e os chefes da casa diziam que eu tinha que servir.
Eu não podia dizer que não, mas tinha um medo horroroso da missão (…): passar a vida inteira ouvindo relatos de aflições e ter que ficar calada, guardar tudo para mim, procurar a meditação dos encantados para acabar com o sofrimento” *

E conta como se sentiu quando, aos 28 anos, ocasião em que sua escolha foi confirmada no jogo de búzios, pela manifestação dos orixás Oxóssi, Xangô, Oxum e Obaluaiê:

“Quando os orixás me escolheram, eu não recusei, mas balancei muito para aceitar” **

Sacerdotisa em uma época em que misoginia e preconceitos não tinham obstáculos, enfrentou perseguições e teve que se impor com inteligência e determinação.

Naqueles anos, segundo a lei, as festas religiosas do candomblé só poderiam ser realizadas em determinados horários e mediante uma autorização por escrito.
Isso não impedia, porém, que os policiais invadissem os terreiros usando de violência.

Os anos de opressão só terminaram em 1976 – o governador da Bahia, Roberto Santos, sancionou um decreto liberando as casas de candomblé da obtenção de licença e do pagamento de taxas à delegacia de Jogos e Costumes.

Consciente da importância da liderança que lhe fora atribuída, Mãe Menininha conjugou sabedoria, firmeza e doçura ao longo dos 64 anos em que esteve a frente do Ilê Iáomi Axé Iá Massê.

Durante o período em que foi ialorixá do Gantois, aproximou-se da Igreja Católica e conquistou espaço para que filhas e filhos de santo pudessem usar suas roupas de religião nas igrejas da Bahia.

Ela também abriu as portas de seu Terreiro para outras religiões, tornando realidade uma convivência ecumênica e democrática.

seta

O Terreiro do Gantois foi frequentado por músicos e intérpretes como Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, pelo escritor Jorge Amado e pelo mestre de Capoeira Camafeu de Oxóssi, por artistas plásticos como Calasans Neto, Carybé e Mário Cravo Júnior, e por atletas como Pelé, Roberto Dinamite e Djalma Santos.

Menininha recebeu políticos como Getúlio Vargas, Antônio Carlos Magalhães e João Durval Carneiro.

Na condição de líder espiritual, ela ajudou a tornar mais aceita a religião herdada de seus ancestrais africanos.

Aos intelectuais que a procuraram, forneceu informações para suas pesquisas, contribuindo para a compreensão das religiões de matriz africana no Brasil.

Mãe Rita e Mãe Menininha (usando óculos).
No Rio Grande do Sul

Na capital de Rio Grande do Sul, os jornais precisam ser consultados para fornecer um quadro mais detalhado das Mães de Santo que conduziram e mantêm a orientação espiritual de homens e mulheres, líderes na conservação de uma herança cultural muitas vezes e indevidamente menosprezada.

Mãe Rita, fotografa por Virgílio Calegari.
Mãe Rita, fotografa por Virgílio Calegari.

O Jornal do Centro, em 15 de setembro de 2023, publicou extensa matéria sobre Mãe Rita, fotografa por Virgílio Calegari, cujas fotos podem ser encontradas no acervo do Museu José Joaquim Felizardo.

A matéria de Fernando Gadret destaca:

O candomblé da Mãe Rita, marca indelével da história de Porto Alegre e da contribuição cultural da comunidade negra riograndense.

Entre as diversas frentes da luta antirracista no Brasil está o direito à memória de locais, personagens e caracteres importantes para a história das populações negras”.

Ao longo da reportagem, o autor utiliza textos de Antônio Álvares Pereira Coruja e de Achylles Porto Alegre para descrever a localização do candombe de Mãe Rita e suas atividades.

Por volta de 1830, Mãe Rita era a líder espiritual das populações negras da capital do Estado.

Por sua relevância religiosa e cultural, chegou a ser retratada em foto por Virgílio Calegari, autor de extenso material fotográfico que documenta a cidade de Porto Alegre na passagem do século XIX para o século XX.

Mãe Vera

Já o Jornal da UFRGS (2024), cita Mãe Carmen de Oxalá e Mãe Vera Soares de Oyá (também entrevistada pelo Brasil de fato em 2021), entre outras.

Ao lado de Menininha e Mãe Rita, outras mulheres pretas, herdeiras da força e dos rituais do Candomblé, merecem reconhecimento.

Artigos acadêmicos e pesquisas auxiliam no retrato dessas figuras históricas que forjaram resistência de uma cultura e sua religiosidade no Rio Grande do Sul.

Ari Oro (2022), destaca nomes vindos de tempos distantes como os de Mãe Maria Madalena Aurélio da Silva, de Oxum Epandá Demun e Mãe Palmira Torres dos Santos, de Exum Epandá Olobomi, cabindas, e de Mãe Andrezza Ferreira da Silva, da nação Oyó, por exemplo.

O Dicionário Mulheres do Brasil (2000) distingue também Marcelina da Silva, Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Stella e, claro, Tia Ciata.

Uma roda de mulheres que nos convida a conhecer suas histórias e a cirandar.
Autora: Vera Haas
Cláudio Knierim, Mãe Carmem e Vera Haas
Referências e notas:
  1. Música Oração de Mãe Menininha . Vide: < Letras – Dorival Caymmi >. Acesso: novembro 2024.
  2. Ari Oro (2022). Vide: < Religiões afro-brasileiras no RS: passado e presente >. Acesso: novembro/2024.
  3. ** Carneiro, Edison (1961). Candomblés da Bahia. Bahia: Martins Fontes. p. 400
  4. * Nóbrega, Cida; Echeverria, Regina (2006). Mãe Menininha do Gantois: uma biografia. Rio de Janeiro: Ediouro. p. 279
  5. Schumaher e Brazil. Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade (2000). RJ: Jorge Zahar Ed., p. 353
  6. Matéria Jornal do Centro – Vide O candomblé de Mãe Rita.
  7. Jornal da UFRGS (2024) – Vide: Terreiros de matriz africana em Porto Alegre são invisibilizados pelo racismo religioso e expõem perseguição histórica
  8. Bahia é um dos estados brasileiros.
  9. Rio Grande do Sul é um dos estados brasileiros.
  10. Porto Alegre é a capital do Estado do Rio Grande do Sul.

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