Fotografia Studio Tetê Rodrigues
As dores das Marias e o amor.
 Introdução

O texto Rebeca do Mato é sequência das reflexões construídas a partir da análise da obra composta pelo músico Tom Zé, Estudando o Pagode na opereta SegregaMulher e Amor .

No Ato I, Cena I,Mulher é o mal”, na canção Ave Dor Maria, percebemos que o autor se utiliza das Musas do nosso arcabouço histórico-cultural e as convoca para traçar perfis psicológicos da Mulher julgada, a exemplo da personagem mítico religiosa Mônica-Sol-Musa, que apela à misericórdia da Virgem Maria em favor da acusada.

Leia as edições anteriores na seguinte sequência: < As dores das Marias > e < Mônica-Sol-Musa >.

Nesse post, o pensamento se desdobra para entender como a Mulher vem sendo tratada pelo homem nas relações amorosas. Confira a seguir.

Desenho de Rugendas – século XIX.

ESTÚPIDO RAPAZ

TOM ZÉ SATIRIZA A POLORIZAÇÃO DO CASAL

Diz o dito popular “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”; contudo, o compositor Tom Zé nos convida a participarmos dessa briga histórica entre os gêneros.

Na continuidade do julgamento, na Cena II, O Jegue, canção Estúpido Rapaz, a segunda personagem a entrar em cena é a baiana dona Rebeca do Mato, convocada para depoimento pela advogada sinhá Zélia Bamba.

Rebeca do Mato testemunhou os maus-tratos sofridos pela Mulher e solicita enfaticamente ao homem, que ela adjetivou como “estúpido rapaz”, que deixe de provocar a acusada:

Rapaz, rapaz, rapaz
Estúpido rapaz
Da mulher, mulher, mulher
Deixa de pegar no pé.

OS SIGNIFICANTES DA ESCRAVIDÃO

A personagem Rebeca do Mato é apresentada primeiramente pelo adjetivo “baiana”.
Uma referência possível é quanto ao matriarcado da miséria no Brasil, uma vez que a escravidão iniciou no estado da Bahia; assim como o significante “do Mato” faz alusão ao local para onde os escravos fugiam.

O autor utilizou o substantivo com letra maiúscula, juntamente com a partícula “do”, sugerindo uma conotação de nome próprio; como se viver isolada em casa, no mato, no contexto da época, fosse condicional ao modo de ser e viver da Mulher.
Portanto, o sentido do campo lexical de “baiana” e “do mato” nos remete ao passado da escravidão das mulheres pretas, da submissão ao trabalho doméstico, do confinamento e da servidão sexual.

O substantivo dona significa “aquela que é dona de si” ou “de algo”.
Entretanto, dados os contextos semânticos dos significantes anteriores, “dona” pode ser uma ironia do autor, pois; apesar do pronome de tratamento honroso, as senhoras, donas de escravos (as) eram propriedades de seus maridos.

Desse modo, a própria testemunha dona Rebeca do Mato é também uma vítima das agressões da sociedade patriarcal.

Rebecca - pintura de Giuseppe Molteni
Rebecca – pintura de Giuseppe Molteni

O nome Rebeca nos remete à emblemática personagem bíblica; portanto, é importante revisitar o contexto histórico dessa personagem para traçar paralelos ao tema da segregação.

De acordo com o Dicionário bíblico, Rebeca aparece no Gênesis (Capítulo 24) como a esposa de Isaque.

A jovem soube da corte do futuro esposo através de um escravo que representava o pai do noivo.
As negociações acerca do casamento foram feitas pelo pai dela, assim como eram os costumes envolvendo casamentos naquela época.
Depois do acerto matrimonial, Rebeca partiu imediatamente com seu marido e então proprietário.

O nome judaico-cristão Rebeca é lembrado como símbolo da matriarca submissa à ordem patriarcal.

A relação que se estabelece entre a personagem bíblica e a personagem da opereta, a baiana dona Rebeca do Mato é que todos os significantes “baiana”, “do mato” e “Rebeca” evocam sentido de servidão, submissão e propriedade.

A personagem carrega, no significado do próprio nome, o peso histórico do seu corpo tornado objeto ou mercadoria.

Apesar da “liberdade” e do “empoderamento feminino”, milhares de mulheres continuam sendo agredidas e assassinadas quando decidem terminar seus relacionamentos, pois, ainda são tratadas por seus parceiros como “propriedade”.

Ao longo dos séculos, a Mulher tem sido vítima das demandas do homem em todas as esferas: dogmas religiosos, casamentos arranjados, comercialização e exploração de seus corpos, anulação social, são apenas alguns abusos.

UM POSSÍVEL CONTRATO DE PAZ

Na cena em que há o testemunho de Rebeca do Mato, ela vocaliza e empodera a fala da Mulher, dirigida ao homem:

Se você vem numa boa
Pode vir […]
Eu te boto no colo,
Te dou pão e mingau.
Mas se você vem de cacete,
Pode vir, que eu vou de pedra e pau.

Em interpretação possível, se o homem trouxer paz para a relação, a Mulher se doará e o nutrirá emocionalmente como uma “mãe” faria, conforme os versos: “eu te boto no colo, te dou pão e mingau”.
Novamente, a imagem do estereótipo da Mãe é evocada nessa alegoria.

É essa a relação que a Mulher deseja?
Ou esse é o desejo masculino, na sátira do autor?

A agressividade masculina pode ser inferida nos versos: “mas se você vem de cacete pode vir, que eu vou de pedra e pau”.
A Mulher não tolera mais que agressões e o cerceamento da sociedade patriarcal ameacem a sua liberdade e sexualidade.

A SINHÁ

Embora a personagem sinhá Zélia Bamba não participe ativamente do Primeiro Ato, como advogada, ela introduz a importante testemunha Rebeca do Mato à cena do julgamento.
O substantivo “sinhá” era uma forma de tratamento empregada pelos escravos em lugar de senhora e, à semelhança de “dona”, percebe-se a ambiguidade no tratamento, uma vez que as “sinhás” eram também submissas aos maridos e oprimidas em seus papéis sociais.
Desse modo, essa advogada tem motivos pessoais para se empenhar na defesa da Mulher.

A historiadora Mary del Priore cita o pintor francês Jean Baptiste Debret (que viveu no Brasil entre 1816 e 1831), o qual escreveu em seu diário que as mulheres brasileiras não recebiam educação formal.

Até mesmo as sinhás se mantinham isoladas na escravidão de seus hábitos domésticos, elas pouco saíam de casa, devotavam seu tempo à rotina do lar.
A propósito, eram chamadas de “minha senhora” por seus maridos, mas; apesar da aparente hierarquia de poder sugerida pelo pronome de tratamento, o pronome possessivo “minha” pode ser entendido como “aquela à qual o marido possui”.

AS MUSAS

Ainda conforme referido na edição anterior, a exemplo do significante  Mônica, o nome Zélia pode ser também uma homenagem de Tom Zé às Musas da MPB, não só apenas como Musas inspiradoras, mas também, como Musas criadoras, respectivamente, Mônica Salmaso, Zélia Ducan e Vanessa Damata ( trocadilho “do mato”).

A VOZ DAS MULHERES BAMBAS

A autoridade e competência de Zélia Bamba como advogada da Mulher pode ser inferida pelo significado do nome “Bamba”, que de acordo com o Dicionário de etimologia quer dizer “valentão” ou “aquele [a] que é autoridade em determinado assunto”.

Ela possui uma característica que se convencionou chamar de qualidade masculina: a valentia.

Desenho de Esperança Garcia presente no site do Instituto Esperança Garcia.
Desenho  no site do Instituto Esperança Garcia.

Em 1979, o historiador Luiz Mott descobriu no Arquivo Público do Piauí, uma valiosa carta de uma jovem escrava chamada Esperança Garcia (1770).

Tratava-se de uma carta denúncia, endereçada ao governador do Piauí.
Esse fato demonstrava uma coragem que não era comum às mulheres naquela época, muito menos em situação de escravidão.

Na petição, ela denunciava os maus-tratos e abusos que ela e outras escravas vinham sofrendo por seu senhor.

Em ação de reparação histórica (após 253 anos), a OAB reconheceu em 25 de novembro de 2022, a escrava Esperança como advogada, lhe concedendo o título de a Primeira Advogada Brasileira!

A advocacia era originalmente uma profissão masculina, porém, Zélia é bamba e advogada, por isso, não cala, como as sinhás, ou as outras escravas; mas a exemplo da escrava Esperança Garcia, ergue a voz e defende a si e as mulheres.

Após a chamada Revolução feminista (séc. XIX no Brasil), as mulheres vêm erguendo a voz e conquistando seus lugares na esfera pública e privada. Aos poucos, e com muitas lutas, conquistamos muitos espaços, como em profissões ditas masculinas, como no Congresso!
Lutamos pelo direito à voz e conquistamos poder de representatividade na sociedade, na política, nos cargos de poder… Estamos lutando para conquistarmos mais espaços de poder, mais liberdade sobre nossos corpos, sobre nossa sexualidade e para escolhermos nossos parceiros, parceiras ou – até – de não escolher ninguém.

PROPOSTA DE AMOR

O homem encenado na opereta reconhece que age mal ao maltratar a Mulher. Ele sabe que, se ela deixar de confiar nele, acabará sozinho:

Se a mulher
deixar de
confiar em mim
Eu vou parar
Onde não dá pra parar

Propositalmente, é no Jardim de Afrodite, a deusa do Amor, que o homem se declara e oferece à Mulher um novo tipo de amor:

Ó garota,
Eu te convido para um novo tipo de amor,
Menos novela, muito mais solidário será,
A renovada confiança de ser
Que a mulher há de ter...

Na próxima edição, convidamos os leitores e as leitoras a descobrirem se a Mulher aceitará a proposta de amor feita pelo homem e o significado da fada Adriana Bem-Ciel e demais personagens que convergem ao subtema da proposta de amor que o homem faz à Mulher.

Será que essa nova Mulher irá aceitar o contrato, depois de tantos maus-tratos e desilusões?
Você aceitaria?

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Leia o próximo capítulo. Clique no link a seguir: <As dores das Marias e a Proposta de Amor  >.

 A  AUTORA

ELIZETE LACERDA

Elizete
Elizete Lacerda é licenciada em Letras, revisora de textos, escritora. Algumas de suas áreas de interesse e atuação: cinema e análise literária (especialmente análise de canções)

Notas:

Imagens:
  • Rebecca, pintura de Giuseppe Molteni. Imagem de domínio público. Fonte: <File: Giuseppe_ Molteni_ Rebecca  >.
  • Desenho de Rugendas – Johann Moritz Rugendas – Recorte de parte da gravura  “Escravos criolos” . Obra de domínio público. Fonte: <  Rugendas >.
  • Esperança Garcia – Desenho representando Esperança Garcia disponível no site do <Instituto Esperança Garcia  >.
Referências:
  • JUNIOR, Caio Prado. História econômica do Brasil. São Paulo: Editora brasiliense, 1993.
  • MACKENZIE, John L. Dicionário bíblico. SP: Edições Paulinas.1983.
  • LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil (0rg.). São Paulo:Contexto,2004.
  • OAB – Ordem dos Advogados do Brasil.

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