Giz_imagem (editada) de mijung Park por Pixabay
Brasil e da Bolívia: um estudo comparativo.
Educação
Mapa América do Sul.
È possível observar as fronteiras entre o Brasil e a Bolívia
Mapa_ Fonte:IBGE

Bases curriculares nacionais do Brasil e da Bolívia: a questão de gênero e a colonização num estudo comparativo.

A base curricular nacional de uma nação é o projeto de nação, de futuro, que se deseja que exista.

Esse futuro está conectado ao passado e ao presente, pois é o resultado de como uma nação enxerga seu presente conectado ao seu passado, sua história.

Pode ser, por exemplo, que se deseje superar problemas histórico-sociais específicos ou apenas continuar fortalecendo uma posição que se considera correta para o futuro.
Porém, sempre haverá uma reflexão sobre o passado, presente e projeto de futuro conectados à escolha de uma base curricular nacional.

Imagem de Erwin Funes in Pixabay_ 2021

 No entanto, entendimentos sobre o passado, presente e o projeto de um futuro são comumente divergentes dentro da própria nação.

Sendo a base curricular palco de disputas e reformulações que refletem embates sociais e grupos que estão no poder, alguns destes nem sempre comprometidos com a democracia participativa.

Na seleção de pedagogias e conteúdos disciplinares considerados adequados e relevantes está a forma como cada governo enxerga a função da educação dependendo de sua ideologia política, social e econômica (nem sempre coerentes entre si): preparar para o mercado de trabalho com competências numa sociedade capitalista, preparar para um pensamento crítico e melhoria social, e etc.

Imagem in Pixabay_2021.

Mas de forma geral, há o entendimento de que a educação trata – também – de decidir os perfis de pessoas que se deseja formar – através da escolarização – para uma sociedade, estado, país, etc.

Assim, a formulação de uma base curricular é, também, a intenção de formar certas subjetividades, identidades, ao invés de outras. 

Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade.
(SILVA, 2001,p.15).

Ao pensar sobre a colonização e as questões de gênero podemos entender melhor como as visões históricas, os debates no presente e os projetos de futuro de uma nação estão imbricados nesse processo educativo. Principalmente nas subjetividades que se deseja formar.

Obra de Tarsila do Amaral. Artista brasileira.

Para explanar sobre essas questões, irei comparar a  < BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR – BNCC  > do Ministério da Educação (MEC) brasileiro e o Currículo Base del Sistema Plurinacional – CBSP ( CURRICULO BASE ), do Ministerio de Educación do Estado Plurinacional de Bolivia, no tocante a como esses documentos abordam a colonização e as questões de gênero.

 UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

Imagem R. Zabaleta in Pixabay

Abordarei o tema sob uma perspectiva decolonial, pois o resultado das desigualdades de gênero em nossas sociedades latinas (boliviana e brasileira neste estudo), são consequências dos processos de colonização.

Compreender como cada base curricular nacional lida com esse processo histórico e com o tema gênero nos revela seu entendimento sobre as raízes dessas desigualdades de gênero e, também, projetos futuros para superá-las.

Compreendo que sem encarar esse passado colonial e suas consequências não haverá projeto educacional possível de fomentar a construção de sociedades mais igualitárias.

Descolonizar o gênero é “decretar uma crítica da opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada visando uma transformação vivida do social‘.
‘ (LUGONES, 2014, p. 940).

Colonização e Colonialidade e a questão de gênero

Para analisar como os textos das bases nacionais curriculares brasileira e boliviana abordam as questões de gênero, é necessário pensar em como essas lidam com a colonização e a colonialidade.

Seja sob o Império Espanhol ou o Português, com suas intrusões nos territórios hoje conhecidos como Bolívia e Brasil, ambos no século XVI, houve alterações nos sistemas de poder para os povos originários do continente americano.

Os sistemas de gênero que existiam nessas sociedades foram anulados e os colonizadores implementaram a força o sistema europeu binário e hierarquizado.

Implementando um patriarcado de alta intensidade que ocasionou a maioria das desigualdades de gênero que os Estados atuais, derivados da intrusão, tentam solucionar com a criação de leis em prol de igualdade nos países da América Latina (SEGATO, 2012).

lmagem de Hermann Kollinger in Pixabay – 2021.

Assim, pensar como essas bases nacionais enxergam a colonização e gênero é:

Em meio a esta nova situação (nova e progressiva para muitos povos expostos a um permanente e diário processo de conquista e colonização), as lutas por direitos e políticas públicas inclusivas e inclinadas à equidade são próprias do mundo moderno, naturalmente, e não se trata de nos opormos a elas, mas sim de compreender a que paradigma pertencem e, especialmente, entender que viver de forma descolonial é tentar procurar brechas em um território totalizado pelo esquema binário, que consiste possivelmente no instrumento mais eficiente de poder.
(SEGATO, 2012, p. 126)

É preciso compreender as modificações ocasionadas com as intrusões europeias de forma crítica

Sabendo que esta hierarquização binária entre os gêneros não é natural, e sim fruto de um sistema aqui implementado à força e que contribuiu para gerar os cenários atuais, se pode compreender que para solucionar os problemas de gênero é também necessário pensar a colonialidade. Por esta razão, o discurso sobre colonização e gênero estão diretamente ligados e se faz necessário analisar ambos.

Currículo Base del Sistema Educativo Plurinacional (CBSP)

No Currículo Base del Sistema Educativo Plurinacional (CBSP) há uma preocupação com a contextualização histórica da educação boliviana desde os tempos de pré-colonização europeia até o presente ano de 2012, data em que foi implementado o CBSP.

Destaca-se a importância que se dá aos povos nativos nesta historicização, representados como povos capazes, ricos em culturas e organizados que possuíam suas formas particulares de processos educativos que eram intrínsecos a vida cotidiana desses povos.

Se desafia a visão colonial que os percebia, e ainda percebe, como incivilizados: “de acordo com essa perspectiva, a modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos exclusivamente europeus” (QUIJANO, 2005, p.122).

Há um reconhecimento da educação como processo complexo e que não se limita aos espaços formais de educação, escolas, e seus métodos criados com a chegada dos colonizadores.

Mostra-se como os processos educativos podem ser utilizados para a garantia de poder.
Neste caso, como os colonizadores espanhóis utilizaram de diferentes formas pedagógicas para assegurar seu domínio na região através da eliminação dos conhecimentos que existiam antes:

A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo dominado pela Europa, significou para esse mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à articulação de todas as formas de controle do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo mundial.

Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia européia ou ocidental.

Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005, p. 121)

Apesar do esforço colonizador para apagar as culturas locais, o documento deixa claro que houve resistência dos povos nativos para preservar suas culturas. Mesmo com instituições como a Igreja, a escola e as forças militares, não houve o apagamento da identidade desses povos.

Houve resistência através da educação subalterna que era passada de forma informal. Destacam-se alguns eventos históricos como a influência do pensamento de Simón Bolívar e Simón Rodríguez na educação boliviana e a Escola Ayllu de Warisata, já com uma crítica anticolonial. Escola referência para o CBSP, pois:

Warisata foi uma experiência que estabeleceu uma verdadeira educação integral, que não reduziu a educação à alfabetização, mas a compreendeu a partir do trabalho na sala de aula, nas oficinas e na terra. Warisata não reduziu a escola ao seu espaço auto-referencial, mas abriu-se aos problemas do ayllu, de forma que ela participou inclusive da administração da justiça e da defesa dos indígenas dos abusos dos proprietários de terras.

A escola, de fato, se tornou um centro irradiador para o desenvolvimento da comunidade, como responsável por movimentar a própria economia regional, baseada na indústria familiar e na agricultura.

Organizacionalmente, foi um exemplo da incorporação de instituições indígenas milenares, cooperativas e recíprocas, para resolver problemas do presente.
(PÉREZ, 2015, p.12. Tradução própria)

Também se fala de algumas leis e reformas que impactaram na educação do país com consequências recentes:

  • como a Revolução de 1952, que legitimou os direitos dos cidadãos da população marginalizada ao tentar incluí-los sob o guarda-chuva de um projeto “nação mestiça”.
  • E, em 1992,  quando pela primeira vez por iniciativa do Estado realizou-se o Primeiro Congresso Nacional de Educação, no qual participaram as instituições do campo educacional e dos setores operário e indígena.
  • E de projetos com impactos negativos, como a Reforma Educacional, de 1994, que foi parte de um pacote de medidas neoliberais que não obteve sucesso para uma mudança estrutural na educação.

 Sobre a Reforma Educacional de 1994:

O documento aponta esta Reforma como responsável por escancarar os objetivos liberais na educação da sociedade capitalista na Bolívia.
Pois, privilegiou o desenvolvimento de uma educação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem e o desenvolvimento de um currículo baseado em competências e competitividade individualizada na aprendizagem.
Promovendo a formação de uma força de trabalho barata para as indústrias, fábricas e corporações transnacionais privatizadas pelo Estado, respondendo às políticas econômicas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.

O SISTEMA DE EDUCAÇÃO DA BOLÍVIA A PARTIR DE 2004

Somente em 2004, após as ações transformadoras dos movimentos sociais, foram criadas as condições necessárias para promover um processo de mudança no Sistema Nacional de Educação.

Ao mesmo tempo, as organizações dos povos indígenas e camponeses originais se encontraram no que culminou no Congresso Nacional de Educação de Povos Indígenas.

Em 2006, já com o governo de Evo Morales, foram promovidas medidas que levaram ao início da Revolução Educacional: foi criada a Comissão Nacional do Novo Direito Educativo da Bolívia, que substituiu o Conselho Nacional de Educação, e ocorreu o II Congresso Nacional de Educação, onde participaram 33 organizações e instituições nacionais da sociedade civil.

Ambas as ações contaram pela primeira vez com a participação de representantes dos povos indígenas e de setores, geralmente, excluídos, dando origem ao projeto de lei de Educação “Avelino Siñani – Elizardo Pérez“.

A Revolução Democrática e Cultural promovida pelo Estado tornou possível para a Assembleia Constituinte dar curso à nova Constituição Política do Estado e, por meio dela, a Revolução Educacional em todos seus níveis e modalidades.

Na segunda parte analisada da Base, podemos compreender melhor o que esse governo entendia como problemáticas dos governos anteriores que deveriam ser modificadas relacionadas à educação.

Ou seja, quais eram suas bases suleadoras para a construção do novo currículo. Seu projeto de nação. Elenca-se quatro problemáticas que foram esquecidas pelos governos anteriores na educação:

  • a condição colonial e neocolonial da educação boliviana,
  • a pouca articulação entre educação e medidas para sair da crise econômica,
  • a revalorização e reconstrução dos saberes e conhecimentos indígenas originários e
  • o caráter cognitivo e desconectado da realidade boliviana da educação no país.
Ao falar sobre a primeira problemática, a condição colonial e neocolonial da educação boliviana, deixa-se clara as consequências da colonização a longo prazo.

Fala-se em neocolonialismo para mostrar que, apesar de funcionar de diferente forma, a colonização das sociedades tidas como subalternas ainda não se encerrou. Neocolonialismo tendo o mesmo significado de Colonialidade.

A colonização continuou na mentalidade das pessoas e a sua desestruturação não fazia parte das propostas educacionais anteriores.

As consequências para a educação – e da educação para a sociedade como um todo, não sendo possível uma mão única de influências – foram a incoerência entre modelos educacionais e propostas pedagógicas baseadas na realidade dos povos nativos, o desprezo pelas próprias culturas, exclusão e discriminação.

Na segunda problemática, a pouca articulação entre educação e medidas para sair da crise econômica, mostram-se as consequências econômicas das propostas educacionais passadas na sociedade boliviana.

Propostas que, segundo a narrativa, estavam guiadas pela mentalidade colonial.

Há uma crítica em como as sociedades capitalistas priorizam o trabalho intelectual desconectado da realidade local sob o trabalho técnico. Defende-se que a educação tenha uma articulação do trabalho manual e intelectual e que haja incentivo econômico para gerar melhores condições de formação técnica como saídas da crise econômica.

Na terceira problemática, revalorização e reconstituição dos saberes e conhecimentos dos povos indígenas, fala-se de como os saberes e conhecimentos dos povos nativos bolivianos foram considerados inferiores ao chamado conhecimento “universal”.

A educação no país considerou estes saberes e conhecimentos indígenas superados e locais, isto é, adequados e pertinentes a culturas muito particulares.
O resultado foi um escanteamento e até esquecimento desses saberes e conhecimentos.

A nova proposta educacional fala em resgatar esses saberes e conhecimentos e de que estes também podem ser universalizados e contribuirem para a transformação das consequências negativas do capitalismo. Se coloca em cheque a estrutura de pensamento da colonial/modernidade de Matriz Colonial de Poder
(MCP – QUIJANO, 2007 -MIGNOLO, 2004).

A quarta e última problemática, o caráter cognitivista e desenraizado da educação, faz uma crítica à educação guiada por modelos estrangeiros preocupados somente com a instrução de conteúdos que resultou em uma educação imobilizadora e colonizadora da realidade.

Ou seja, a educação não estava comprometida com sua realidade, não era relevante, não afetava na transformação dos contextos locais e, portanto, reproduziu as condições de privação, exclusão e desigualdade.
Defende-se uma educação comprometida com sua realidade, para além da simples aquisição de conteúdos, um novo modelo educacional adaptado às demandas do Estado Plurinacional e comprometido com a transformação social.

Gênero e Colonialidade no Currículo Base del Sistema Educativo Plurinacional (CBSP)

As questões de gênero estão presentes no Currículo Base del Sistema Educativo Plurinacional, aparecendo diretamente citadas oito vezes.

Em diferentes tópicos, a maioria fala sobre a necessidade de garantir e estimular a equidade de gênero na sociedade boliviana. Há também o reconhecimento da questão de identidades de gênero:

Promove o reconhecimento e o fortalecimento das identidades linguística, étnica, sócio-trabalhista e de gênero na equidade social, no exercício e na exigibilidade de direitos e deveres, facilitando que os atores educacionais assumam protagonismo na construção de sua própria história
(CBSP, 2012 , p.53. Tradução própria)

Há o reconhecimento da colonialidade de gênero e a necessidade de superá-la juntamente com o processo de descolonização. O tema é abordado ao falar sobre o currículo de Ciências Sociais:

As Ciências Sociais promovem a análise crítica da realidade boliviana, articulando, reelaborando e produzindo conhecimentos pertinentes.

As ciências sociais não devem servir apenas para descrever e estudar a realidade boliviana, mas fundamentalmente para transformá-la, fortalecendo as identidades culturais da plurinacionalidade, desenvolvendo processos de autodeterminação e despatriarcalização como parte da descolonização. (CBSP, 2012, p.32. Tradução própria)

Mostrando que há o entendimento de uma conexão entre colonização e patriarcalização da sociedade boliviana. Fazendo da descolonização juntamente com a despatriarcalização objetivos a serem alcançados através da educação.

Apesar dessas citações e entendimentos sobre colonização e a conexão com a patriarcalização da sociedade boliviana, não há menção a diferentes sexualidades e/ou a necessidade de uma educação inclusiva para além da heteronormatividade instaurada na intrusão. Sendo este um ponto também essencial a ser incluído nos currículos bases nacionais e estando também diretamente ligado ao processo de colonização e colonialidade.

Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Imagem disponibilizada in Pixabay_2021.

O texto final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), feita pelo Ministério da Educação (MEC), foi entregue ao Conselho Nacional de Educação (CNE) em abril de 2017.

O CNE teria como função formular um parecer e projeto de resolução sobre a BNCC. Como explica Márcia Aguiar (2019), após o impeachment, com um novo quadro de comando do MEC, que refletia um entendimento diferente sobre educação, houve embates sobre o texto da BNCC:

Por fim, foi apresentado voto contrário à aprovação intempestiva do Parecer, seu Projeto de Resolução e anexos, considerando a sua incompletude e limitações e, portanto, a necessidade de ampliar o diálogo democrático para assegurar a qualidade da educação básica no país.

Todavia, a despeito dos três votos contrários, a Resolução CNE/CP No 2, de 22 de dezembro de 2017, foi aprovada pelo CNE e homologada pelo Ministro da Educação Mendonça Filho.
(AGUIAR, 2019, p.9)

Esse embate é um exemplo dos debates e questões que surgiram, mesmo dentro do Governo. Aqui representando dois projetos de nação que ocorreram e se chocaram na transição de um governo para o outro.

No que se refere a gênero, o Ministério da Educação (MEC) suprimiu da terceira versão os termos “gênero” e “orientação sexual”. Até a segunda versão da BNCC, em diferentes tópicos voltados para explicar direitos à aprendizagem, era possível ler passagens como essa:

ao respeito e ao acolhimento na sua diversidade, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, orientação sexual, idade, convicção religiosa ou quaisquer outras formas de discriminação, bem como terem valorizados seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual devem se comprometer.
(BNCC 2ª versão, 2016, p.34)

Na terceira versão da BNCC, versão final que incluiu o Ensino Médio, aprovada em 2018, “gênero” aparece 499 vezes em 600 páginas.

Nenhuma delas se refere à gênero para falar das questões de gênero, como identidade e sexualidade. Aparecem apenas para se referirem a gêneros textuais.

Parcela do CNE se manifestou contra, mas o CNE acatou a sugestão do MEC de retirar as questões de gênero do texto final e prometeu soltar, posteriormente, um documento com orientações sobre o tema. O que ainda não aconteceu.

Essa caça ao gênero na BNCC começou desde a formulação do Plano Nacional de Educação 2014-2021, que determina diretrizes, metas e estratégias para a política educacional nesse período:

uma das polêmicas suscitadas foi acerca da promoção das equidades de gênero […]que acabou excluída do texto do projeto”.
(MANHAS, 2016, p. 16)

Entretanto, apesar de não contemplar gênero diretamente na BNCC, já que não nomeia e se refere especificamente às questões de gênero, o texto pode ser utilizado para abranger as questões. Como?

Através de uma espécie de malabarismo, podemos utilizar a competência 7, 8 e 9 da BNCC, por exemplo, que se referem a garantia dos direitos humanos e respeito à diversidade, para  embasar o trabalho em sala de aula em prol da igualdade de gênero.

A necessidade desse malabarismo fala sobre o que se deseja calar e/ou dificultar, sobre um projeto de nação.

A questão da inclusão ou não das questões de gênero na BNCC está diretamente ligada aos grupos conservadores e fundamentalistas que dizem combater a “ideologia de gênero”.

Já na formulação do PNE 2014-2024 estavam presentes e conseguiram modificar o texto do projeto e influenciar em estados e municípios. Por consequência, isso influenciou a tramitação dos planos estaduais e municipais, que também sucumbiram ao lobby conservador, fundamentalista e refutaram qualquer menção a gênero, por exemplo, difundindo a falsa tese intitulada “ideologia de gênero”.
(MANHAS, 2016, p.16).

O texto da BNCC também sofreu as consequências desse lobby.

Essa chamada “ideologia de gênero” é uma narrativa criada no interior da Igreja Católica e dos chamados Movimento Pró-Vida e Pró-Família (UBIETA et al., 2018).

Essa narrativa tem como objetivo retroceder as mudanças sociais e aprovações de leis baseadas no conceito de gênero, especialmente criadas para conquistar e/ou garantir direitos das mulheres e populações LGBTQ+, na busca por igualdade social.

Causando, comumente, uso incorreto de terminologias e pautas importantes para a equidade de gênero com o intuito de causar confusão e pânico na população (FURLANI, 2017).

No Brasil, essa narrativa ganhou mais força e foi disseminada principalmente pelo Movimento Escola Sem Partido.
Uma busca no website do Movimento < escola sem partido > fornece exemplos de como o assunto era tratado.

Há casos de “ideologia de gênero” em escolas e universidades relatados, processos jurídicos com o apoio do Movimento contra professoras(es) e escolas, verdadeiros tratados sobre o que seria igualdade de gênero no entendimento deste Movimento, etc.

Apesar de o Movimento Escola Sem Partido ter saído de cena oficialmente em 22 de agosto de 2020, quando se encerrou as batalhas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que começaram em 2004, há consequências ainda presentes.

A “ideologia de gênero” é uma delas, que apesar de não ter sido criada pelo Movimento foi uma de suas bandeiras mais fortes e que deu maior destaque ao grupo.
(XIMENES, 2016).

Foram diversas as tentativas de criminalizar a “ideologia de gênero” em sala de aula.

A primeira proposta apresentada foi no Rio de Janeiro, pelo então deputado Flávio Bolsonaro. A segunda vez foi no município do Rio de Janeiro, pelo então vereador Carlos Bolsonaro. Ambos filhos do atual presidente Jair Bolsonaro, o que diz muito sobre a atual postura do governo para tratar das questões de gênero em sala de aula.

Imagem_ MEC

Assim, o que o texto da BNCC, ao excluir gênero e suas questões, mostra é o reflexo de uma agenda conservadora e fundamentalista que cresceu e ganhou lugar nos órgãos governamentais.

Não só neles, mas também na sociedade que acabou por eleger como presidente a figura que sintetiza bem essa agenda.

Outra característica do texto da BNCC é que, apesar de esse documento ser um reflexo da transição de um governo, mais progressista, para outro, que ocorreu através de um golpe parlamentar, não há no texto uma pontuação sobre o assunto.

Não se fala sobre o momento político e governos anteriores, como fez a base boliviana.

Na BNCC a apresentação é focada em falar da conformidade da Base com outras leis responsáveis por gerir a Educação no país.

Gênero e Colonialidade na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

BNCC – Imagem autoria nã conhecida.
A questão da Colonização na BNCC aparece nos componentes de Inglês e História.

Ao falar sobre o ensino da língua inglesa, se ressalta a importância de debater sobre a expansão do ensino da língua em função dos processos de colonização nas Américas, África, Ásia e Oceania. Já no componente de História se pode ler:

Problematizando a ideia de um “Outro”, convém observar a presença de uma percepção estereotipada naturalizada de diferença, ao se tratar de indígenas e africanos.

Essa problemática está associada à produção de uma história brasileira marcada pela imagem de nação constituída nos moldes da colonização europeia. (BNCC, 2018, p. 401)

Essa é a passagem que debate o tema de forma mais crítica. Mostrando as consequências da colonização e a presença ainda da colonialidade em nossa sociedade.

Desenho  deCândido Portinari para Biblioteca do Congresso dos EUA (1941): Divisão hispânica.

As outras passagens falam em valorizar as diferentes culturas de forma igualitária, como a européias, a africana e a indígena.

Se percebe maior criticidade ao falar sobre as habilidades, se pode ler que se deve:

  • debater a ideia de “Novo Mundo” trazida com a intrusão na América Latina;
  • analisar os diferentes impactos da conquista européia da América para as populações ameríndias e
  • identificar as formas de resistência.

No entanto, não há maior conexão entre colonização e disparidades sociais atuais.
Também não há, como há no caso boliviano, um entendimento da necessidade de superação das colonialidades presentes.

Mesmo quando se fala no papel fundamental da BNCC em desenvolver igualdade e equidade para os povos marginalizados (o texto cita como exemplo os povos indígenas e as populações das comunidades remanescentes de quilombos e demais afrodescendentes) não há uma conexão do presente com o passado.

A colonização e colonialidade não são abordados para se pensar as razões históricas dessas marginalizações.

Não há no texto da BNCC o objetivo de superar as colonialidades.

CONCLUSÃO

O Currículo Base del Sistema Educativo Plurinacional (CBSP) de forma geral e também no recorte de gênero abre uma brecha descolonial (SEGATO, 2012), onde há a fomentação através do Estado da Devolução Histórica (SEGATO, 2012):

uma restituição da capacidade de tecer seu próprio caminho histórico, retomando o tramado das figuras interrompidas, tecendo-as até ao presente da urdidura, projetando-as em direção ao futuro(SEGATO, 2012, p. 112).

Ou seja, “da capacidade de cada povo de implementar seu próprio projeto histórico” (IDEM). Esse entendimento não estava somente no CBSP, estava se construindo no Governo de Evo Morales de forma ampla.

Com a retomada da democracia na Bolívia, após o golpe de 2019, os projetos vêm sendo retomados pelo então presidente Luis Arce.  Também é o caso do projeto de despatriarcalização e descolonização.

O Ministerio de Culturas, Descolonización y Despatriarcalización foi criado em 20 de novembro de 2020. Este Ministério compreende que:

Descolonizar e despatriarcalizar é reverter essa desigualdade entre nacionalidades, assim como entre homens e mulheres, é romper a hegemonia de uma cosmovisão unívoca que subordina um ao outro, que subordina como diferentes cosmovisões; é aceitar a diversidade para gerar inter-relações baseadas na aceitação mútua de igual importância .
Vide em < comunicacion_Bol >.
(tradução própria)

O projeto de futuro de nação plurinacional da Bolívia enxerga a conexão entre patriarcado de alta intensidade e colonização; a presença da colonialidade de gênero. Bem como, enxerga a necessidade de superar essa colonialidade de gênero.

Esse entendimento já estava presente desde o Currículo Base del Sistema Educativo Plurinacional de 2012 e há – agora – a continuação de um projeto de nação plurinacional pela igualdade de gênero.

Já o texto da Base Nacional Comum Curricular do Brasil (BNCC) caminha na contramão do caso boliviano.

O texto final da terceira versão da BNCC nos mostra um reflexo do conservadorismo e fundamentalismo de grupos e pessoas de destaque dentro do Ministério da Educação (MEC) e outros órgãos de poder.

Conservadorismo e fundamentalismo que com grande influência foram capazes de retirar menções a “gênero” e “orientação sexuais” do texto final, mesmo havendo um entendimento de que os assuntos são peças importantes dentro da educação – ou estes não estariam presentes nas versões anteriores do texto da BNCC.

Há situações e narrativas que demonstram que essas pautas existem e tem reais necessidades de serem tratadas em sala de aula para a fomentação de uma sociedade mais justa e democrática.

O que ocorreu foi a vitória desses grupos conservadores e fundamentalistas no embate do projeto de futuro da nação brasileira.

A influência passada de governos e de pessoas com projetos de futuros mais progressistas não foi suficiente para manter no texto final as questões nomeadas.

Sendo agora necessário um malabarismo para garantir o direito de abordar as questões de gênero em sala de aula.

Além da ausência de um apoio explícito no texto da BNCC, também há preconceitos e desinformações decorrentes, entre outros fatores, da  propagação do lobby da “ideologia de gênero”.

 A  AUTORA

Paolla Ungaretti Monteiro. Doutoranda PPG-Educação/PUCRS
Bolsista CAPES. 

  REFERÊNCIAS:

AGUIAR, Márcia Angela da S. Relato da resistência à instituição da BNCC pelo Conselho Nacional de Educação mediante pedido de vista e declarações de votos. In: Márcia Angela da S. Aguiar e Luiz Fernandes Dourado (orgs.). A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. [Livro Eletrônico]. – Recife: ANPAE, 2018.

FURLANI, Jimena. “Ideologia de Gênero”? Explicando as confusões teóricas presentes no Flyer. 2017. Florianópolis: FAED, UDESC. NAPE – Núcleo de Apoio Pedagógico / Grupo de Pesquisa CNPq: Didática e Formação Docente, 07pp, 2017. Disponível em:<jimena.furlani/posts/4457213954400248  > .

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): 320, setembro-dezembro 2014.

MANHAS, Cleomar. Nada mais ideológico que “Escola sem Partido” In: A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Org.). — São Paulo : Ação Educativa, 2016.

MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.

PÉREZ, Elizardo. Warisata: La escuela Ayllu. Serie clásicos:Colección Pedagógica Plurinacional. La Paz: Bolívia, 2015.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.

_______________ Colonialidad el Poder y Clasificación Social. In: S. Castro-Gómez y R. Grosfoguel (org.). El Giro Decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Pontificia Universidad Javeriana: Siglo del Hombre Editores, Bogotá: 2007.

SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. Editora Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra: e-cadernos CES, 18, 2012: 106-131.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias de currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

UBIETA, Carmen Bernabé, HENRIQUES, Fernanda e TOLDY, Teresa. A «Ideologia de gênero» da Igreja Católica. Ex æquo, n.o 37, 2018, pp. 9-17. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2018.37.01

XIMENES, Salomão. O que o direito à educação tem a dizer sobre “Escola sem Partido?”. In: A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Org.). — São Paulo : Ação Educativa, 2016.

Observações:

[1] No original: Promueve el reconocimiento y fortalecimiento de las identidades lingüística, étnica, sociolaboral y de género en equidad social, en ejercicio y exigibilidad de los derechos y deberes, facilitando que los actores educativos asuman un rol protagónico en la construcción de su propia historia.(CBSP, 2012, p.53).

[2] No original: Warisata fue una experiencia que estableció una genuina educación integral, que no reducía la educación a la alfabetización, sino que la entendía a partir del trabajo en el aula, los talleres y la chacra. Warisata no redujo la escuela a su propio espacio autoreferencial, sino que se abrió a los problemas del ayllu, de modo que hasta participaba de la administración de justicia y de la defensa de los indígenas de los abusos de los hacendados. La escuela, de hecho, debía convertirse en un centro irradiador del desarrollo de la comunidad, como la encargada de activar la propia economía regional, a partir de la industria familiar y la agricultura. Organizativamente, fue un ejemplo de incorporación de instituciones indígenas milenarias, cooperativas y recíprocas, para resolver problemas del presente.(PÉREZ, 2015, p.12).

[3] No original: Las Ciencias Sociales promueven el análisis crítico de la realidad boliviana articulando, reelaborando y produciendo conocimientos pertinentes. Las ciencias sociales no deben servir sólo para describir y estudiar la realidad boliviana, sino fundamentalmente para transformarla, fortaleciendo las identidades culturales de la plurinacionalidad, desarrollando procesos de autodeterminación y despatriarcalización como parte de la descolonización. (CBSP, 2012, p.32)

[4] No original: Descolonizar y despatriarcalizar es revertir esa desigualdad entre nacionalidades, así como entre hombres y mujeres, es romper la hegemonía de una cosmovisión unívoca que subordina una a la otra, que subordina como cosmovisiones distintas; es aceptar la diversidad para generar interrelaciones basadas en la mutua aceptación en igualdad de importancia.

 

Written By
More from Históricas
O canto
de dor das Marias.
Read More