selo estampado Madalena Caramuru - educação feminina
Selo instrução feminina no Brasil.
Históricas
Janela dos tempos
Imagem ilustrando sinais da janela dos tempos
Imagem 1

Era domingo e lá estava eu dormitando na rede quando algo me despertou. Pensei ser o barulho dos passarinhos que fazem bagunça no meu quintal.

Pouco depois, percebi as cores e luzes suaves da janela dos tempos.

  Pela sacada, admirava a sua abertura frente à porta de minha casa.

Tinha visita!

Lavei o rosto, ajeitei os cabelos e desci as escadas com um misto de curiosidade e felicidade. Quem seria?

A campainha soou.
Prendi a respiração e abri a porta.

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___ Patrícia? De Histori-se?

___ Sim.

___ Sou Madalena. Ando viajando pelos tempos. Já estive na cidade de Salvador, na Bahia do ano de 2025.
Agora, antes de voltar para meu tempo, parei um pouco aqui.

Convidei a mulher de longos cabelos negros, vestido cor de algodão, ar sereno e semblante sério para entrar.

Eu sabia que a receberia, só não sabia quando, exatamente, seria a sua visita. Como eu sabia?

Ué! Você não imagina? Vou contar.

Madalena Caramuru, nas suas andanças pelos tempos, conheceu uma colaboradora de Histori-se e ai… Uma conversa ali, outra aqui e fomos apresentadas. Como isso foi possível?

Isso só foi possível, pois nós três conhecemos a janela dos tempos.

Já expliquei que esse fenômeno tem suas normas e que muitas delas eu, ainda, estou aprendendo.

A visita de minha nova amiga

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___ Tenho pouco tempo. Pelo jeito, logo a Janela dos Tempos irá se apresentar novamente. 

___ Fico feliz que tenha conseguido passar por aqui. A gente nunca sabe direito como serão nossas viagens pelos tempos.

___Conheci a Janela dos Tempos muito tempo atrás, no meu tempo… 

Rimos juntas. A frase já estava ficando cheia da palavra tempo. Madalena queria dizer que já havia feito várias viagens através da Janela dos Tempos. Conhecia melhor do eu este fabuloso fenômeno.

___ Assei um bolo hoje. Aceita?

___Sim. Conversamos enquanto comemos.

Servi suco de frutas e bolo. Enquanto ajeitava a mesa, Madalena observava minha casa.

imagem de bolos
Imagem 2

___Consegui perceber um pouco das realidades que vivem muitos descendentes dos povos que estavam nessa terra,  antes da chegada dos que vieram do mundo de meu pai. [pausa]. Sinto tristeza.

Eu acenei com a cabeça demonstrando que a entendia. Ela continuou:

____ Vivendo no meu tempo, antes de saber do futuro, eu percebi que o futuro não seria fácil nem para os do povo de minha mãe, nem para os outros povos que, hoje, vocês chamam de pré-colombianos.

Eu queria dizer algo. Mas não tinha muito que poderia dizer nem de consolo e nem discordando. Fiquei em silêncio.
Ela exclamou com os olhos rasos d’água e com forte indignação:

___Pré-colombianos? O mundo? O tempo? Tudo dividido em antes ou depois de um europeu! É muito arrogante.

Ficamos instantes em um silêncio por ela quebrado:

___ Desculpe. Isso estava me entalando. Precisava colocar para fora. Vamos para nossa entrevista e ao bolo.

___Fez bem em falar. Estou feliz em tê-la aqui. É verdade que você é a primeira brasileira que aprendeu a ler e a escrever?

Madalena riu.

____Tenho três perguntas.
Primeira: eu sou brasileira porque nasci na terra que o Império Português tomou como sua colônia?
Segunda: não pertenço ao povo de minha mãe?
Terceira: o Brasil era um país ou reino antes da Proclamação de sua Independência?

___ Vamos considerar quem nasceu nas terras que viriam ser o Brasil atual. [pausa].
Melhor, vamos considerar quem nasceu nas terras que os portugueses julgavam suas na sua época.

Madalena continuou com um sorriso sapeca:

___ Eu não sei se fui a primeira mulher – nas terras e época onde moro – a aprender a ler e a escrever.
Parece que não sou a única que sabe ler e nem a única que sabe ler e escrever. Mas, quase todas as mulheres, mesmo as de famílias de posses, não aprendem nem uma coisa e nem outra.

___Seu pai é Caramuru? Ele te ensinou as letras?

___ Sim, meu pai era chamado de Caramuru.
Não, ele não me instruiu. Acho que, em 1534, casaram-me com um português, o Afonso Rodrigues.
Meu marido me ensinou a ler e a escrever.

___ Ele lhe ensinou. Por quê?

___ Quando menina, nem eu, nem outras pessoas do povo de minha mãe entendiam porque os padres ensinavam algumas coisas para os meninos e não para as meninas. Como ler e contar.
Quando casei, via meu esposo lendo e escrevendo.
Eu disse que queria aprender. Ele me ensinou.

____ Dizem que é de sua autoria uma carta [datada de 1561] pedindo ao Bispo de Salvador pelas crianças escravizadas.

___ Não sei qual carta é essa. Sei que [suspiro] presenciei o tratamento que era dado para as pessoas escravizadas.
Além de escravizarem gente nascida nessas terras, começaram a trazer gente de um continente chamado africano. Muitas crianças chegavam…
[olhos marejam]. Tentei livrar pelo menos os pequeninos!!
Escrevi cartas para as autoridades, falei pessoalmente.
Poucos eu consegui salvar!
[faz um gesto de impaciência]. Só consegui salvar os que pude comprar.
As autoridades não me deram ouvidos.

___ Acho que a carta pode ser uma das que redigiu.
Tome um pouco de suco. Desculpe trazer assunto tão doloroso. Sinto muito.

___Não peça desculpas. Sei que entende que não consigo deixar de me indignar. Já estou mais calma. 

___  Hoje, pouco sabemos sobre as mulheres dos povos que viviam nessas terras quando chegaram os portugueses.

___ As sociedades eram ágrafas e, mesmo as mulheres que viveram na sociedade do colonizador, na sua grande maioria, não liam ou escreviam.
Das que escreviam, eu penso: quem acharia que deveria guardar escritos das mulheres?

___ Chegaram algumas notícias de mulheres do seu tempo através de relatos de homens letrados; porém, em geral, essas histórias, são compartilhadas justificando uma ideia de união de duas das raças formadoras do povo brasileiro.
São mulheres que, de acordo com as narrativas, por opção ou decisão de outros, teriam vivido com homens europeus de acordo com os valores culturais desses.

___ Imagino que, também, não dizem muito sobre não serem as únicas mulheres desses [sorri de modo irônico ]. Caramuru, meu pai, por exemplo, teve várias mulheres. [pausa].

___Os padres ficam pedindo para o rei de Portugal enviar mulheres brancas. Muitas delas, meninas, órfãs. Pobrezinhas! Mandadas para uma terra que nunca conheceram, para casarem e terem filhos com colonos a quem nunca viram.

____ Você é religiosa?

___ Eu entendi que teria que ser para viver onde e quando vivo. Fui catequizada ainda menina.

___Mas e a cultura do povo de sua mãe?

___Trago comigo também.

Sorrimos. Lembrei-me de uma frase da escritora Bernadette Lyra:

A vida de uma mulher é feita de três vidas: aquela que se diz que ela teve; aquela que ela bem poderia ter tido; aquela que ela teve, de fato, e não será conhecida jamais”.

___ Caramuru existiu? Digo, assim como é contado? [contei a história de Caramuru como, geralmente, é narrada].

___Será? [respondeu Madalena com ironia].
Pense, Patrícia. Existiu meu pai, que ficou conhecido como Caramuru, mas faz sentido todos esses feitos como contou? Como vocês dizem [continuou ela enigmática e um tanto zombeteira]: quem conta um conto aumenta um ponto.

___Lembrei! Quero lhe mostrar uma coisa.

Mostrei para ela a imagem de um selo lançado no ano de 2001 referindo-se à luta pela alfabetização feminina no Brasil.
Esse selo traz estampada uma imagem identificada como Madalena Caramuru.

selo estampado Madalena Caramuru - educação feminina
Selo alfabetização de mulheres

____Estou emocionada. Não me importa ser a primeira ou a segunda ou a milésima mulher alfabetizada nessas terras. Mas fico feliz de minha pessoa ser lembrada para uma causa tão nobre como a instrução.

Prosa e roseiras

Passamos o tempo conversando sobre nossas experiências de mulheres de mundos tão diferentes.
Madalena gostou de minhas roseiras e contou que conhecia esta flor dos jardins da casa dos padres jesuítas.

Rosa - roseira cor de rosa
Roseira – imagem de Jackie Lou in Pixabay – 2022

Segundo minha amiga, não havia roseiras no Brasil antes dos padres trazerem algumas mudas da Europa. Já jabuticabeira, como minha Maria Januária, havia; contudo, ela ainda não havia visto uma tão linda e nem plantada em um vaso.

Quando vimos, já era noite e – enquanto eu preparava uma cama – para Maria Madalena descansar, ela me chamou a atenção para um movimento dos galhos das árvores do lote vizinho.

O que seria?

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Eram sinais indicando que a janela dos tempos, em breve, seria aberta.

Nos dirigimos para o local indicado. Despedimo-nos com vontade de nos reencontramos.

Maria Madalena deixou umas dicas de plantas para a produção de tintas naturais.
Um presente para minha prima Iara.

Ainda contarei mais sobre o que conversamos; por hora, fico por aqui.
Adivinha quem está chegando ‘mega’ curiosa aqui em casa?

marca Histori-se

Notas:
Imagem 1: Autoria de Dmitri Posudin in Pixabay_2021
Imagem 2: Autoria de Aline Ponce por Pixabay_2022

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