Diadorim
A experiência leitora de uma menina
Lembro que um de meus maiores desejos era aprender a ler. E, depois que aprendi, descobri que havia muitos livros de aventura – normalmente destinados aos meninos – e a Condessa de Ségur – para as meninas.
Tive sorte: minha mãe me deixava ler tudo o que eu quisesse.
E fazia coleções de livros que eu devorava.
Bem, ter lido a Condessa de Ségur me revelou o quanto um personagem antagonista, ou secundário, pode se tornar o personagem principal quando traduzimos o universo simbólico ao que vivemos efetivamente.
Para uma criança leitora (quer letrada, quer ouvinte de narrativas), os personagens sempre trarão imagens cujos desdobramentos percorrerão a vida adulta.
Reconhecê-los é sinônimo de um autoconhecimento que mantém, por meio de leituras, um diálogo inesgotável com nossos afetos, com nossas fragilidades, com nossa condição humana.
Jacques e Simplício ou Lembranças da Condessa de Ségur
Os livros da Condessa de Ségur falavam-me de solidão, de um estar só no mundo.
Assim era com Jacques e Simplício: um vivia a orfandade, o outro, uma mente infantil em um corpo adulto.
Nenhum dos dois se encaixava, ambos estavam do lado de fora da sociedade bem organizada e centrada em justos valores. No entanto, a bondade e o cuidado de Jacques para com o irmão menor angariam o favor de adultos generosos e capazes de se compadecerem com a situação dos órfãos.
Já a alegria e a bondade do Simplício só podem encontrar solução na morte, um alívio para a equilibrada protagonista, a irmã do Simplício.
A jovem Carolina, conquanto sempre tratasse o irmão de modo amoroso, sofria humilhações constantes graças ou à boa conduta daqueles que aplicam sem piedade a ética de uma sociedade ciosa de valores bem ajustados, ou às ações nem sempre explicáveis do Simplício – não havia espaço para a convivência daquela com o rapaz.
Para a leitora, fica claro que a morte do Simplício é, sim, a salvação de Carolina.
Outra vez Jacques e Simplício ou Lembranças da Condessa de Ségur
Desde que li a história de Jacques, apossou-se de mim uma profunda simpatia pelo menino. Era eu, também, uma menina.
Doíam-me os esforços empreendidos por Jacques e a sua extrema solidão, essa já presente na cena que abria o livro, em que encontrei Jacques sob uma árvore, mal se protegendo e ao irmão de uma chuva fina e fria.
O menino – que não era mais um menino, mesmo que a narrativa quisesse nos convencer disso – não contava com alguém com quem pudesse dividir seus problemas. Claro, ao fim da história, Jacques e seu irmão têm, inclusive, uma família.
Apesar disso, o jovem Jacques parecia soprar-me, ainda, uma funda tristeza, marcas de dor que ficariam para sempre impressas em seu coração, apesar daquele final feliz.
Com o Simplício, simpatizei desde a capa, em que o jovem aparecia sorridente e ágil.
Em sua infantilidade tardia, ele estava sempre alegre, disposto a ver tudo de um modo simples. Essa disposição, essa não complexidade que nos surpreende, iria deixá-lo só. Afinal, ver as coisas e o mundo sob uma perspectiva não alinhada ao senso comum significa estar fora do grupo, fora do socialmente aceitável.
E eu lia em Simplício a compreensão doída de quem não se adequava e um imenso esforço em tornar feliz a irmã que tanto amava.
Para a irmã, Simplício oferecia o seu melhor inesgotavelmente. E ofereceu também a sua morte, contrária a sua alegria de vida, mas a única saída para quem ama abertamente e tão sem pudores.
Anos mais tarde eu conheceria o Alegria.
Estar em Taquari significava rever o sorriso e os olhos brilhantes de um homem que era simples como uma criança, mas isso não nos perturbava.
Aprendíamos com ele o bem imenso de simplesmente estarmos juntos, lado a lado, trocando eventuais sorrisos. Para mim, Alegria era a encarnação de um Simplício a quem fora dada a chance de conviver e viver.
E a quem foram dados muitos amigos de verão, todos jovens, companheiros que o aguardavam como ele a nós, a cada mês de fevereiro.
Alegria deixava-me duplamente feliz.
Vera Haas. Texto escrito no ano de 2006, Porto Alegre (RS – Brasil).
Vera Haas & Histori-se
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