Jacques e Simplício ou Lembranças da Condessa de Ségur

Condessa-de-Segur _ Domínio-Publico
Condessa-de-Segur. Imagem de Domínio Público.
Pelos olhos de Vera Haas: Jacques e Simplício.

Diadorim

A experiência leitora de uma menina

Lembro que um de meus maiores desejos era aprender a ler. E, depois que aprendi, descobri que havia muitos livros de aventura – normalmente destinados aos meninos – e a Condessa de Ségur – para as meninas.

Tive sorte: minha mãe me deixava ler tudo o que eu quisesse.
E fazia coleções de livros que eu devorava.

Menina lendo_Imagem disponível em pexels 2022
Imagem in Pexel_Pixabay_2022

Bem, ter lido a Condessa de Ségur me revelou o quanto um personagem antagonista, ou secundário, pode se tornar o personagem principal quando traduzimos o universo simbólico ao que vivemos efetivamente.

Para uma criança leitora (quer letrada, quer ouvinte de narrativas), os personagens sempre trarão imagens cujos desdobramentos percorrerão a vida adulta.

Reconhecê-los é sinônimo de um autoconhecimento que mantém, por meio de leituras, um diálogo inesgotável com nossos afetos, com nossas fragilidades, com nossa condição humana.

seta

Jacques e Simplício ou Lembranças da Condessa de Ségur 

Os livros da Condessa de Ségur falavam-me de solidão, de um estar só no mundo.

Assim era com Jacques e Simplício: um vivia a orfandade, o outro, uma mente infantil em um corpo adulto.

Nenhum dos dois se encaixava, ambos estavam do lado de fora da sociedade bem organizada e centrada em justos valores. No entanto, a bondade e o cuidado de Jacques para com o irmão menor angariam o favor de adultos generosos e capazes de se compadecerem com a situação dos órfãos.

Já a alegria e a bondade do Simplício só podem encontrar solução na morte, um alívio para a equilibrada protagonista, a irmã do Simplício.

A jovem Carolina, conquanto sempre tratasse o irmão de modo amoroso, sofria humilhações constantes graças ou à boa conduta daqueles que aplicam sem piedade a ética de uma sociedade ciosa de valores bem ajustados, ou às ações nem sempre explicáveis do Simplício – não havia espaço para a convivência daquela com o rapaz.

Para a leitora, fica claro que a morte do Simplício é, sim, a salvação de Carolina.

seta

Outra vez Jacques e Simplício ou Lembranças da Condessa de Ségur 

Desde que li a história de Jacques, apossou-se de mim uma profunda simpatia pelo menino. Era eu, também, uma menina.

Doíam-me os esforços empreendidos por Jacques e a sua extrema solidão, essa já presente na cena que abria o livro, em que encontrei Jacques sob uma árvore, mal se protegendo e ao irmão de uma chuva fina e fria.

O menino – que não era mais um menino, mesmo que a narrativa quisesse nos convencer disso – não contava com alguém com quem pudesse dividir seus problemas. Claro, ao fim da história, Jacques e seu irmão têm, inclusive, uma família.

Apesar disso, o jovem Jacques parecia soprar-me, ainda, uma funda tristeza, marcas de dor que ficariam para sempre impressas em seu coração, apesar daquele final feliz.

Capa livro "A irmã de Simplício".
Capa do livro “A irmã de Simplício”.

Com o Simplício, simpatizei desde a capa, em que o jovem aparecia sorridente e ágil.

Em sua infantilidade tardia, ele estava sempre alegre, disposto a ver tudo de um modo simples. Essa disposição, essa não complexidade que nos surpreende, iria deixá-lo só. Afinal, ver as coisas e o mundo sob uma perspectiva não alinhada ao senso comum significa estar fora do grupo, fora do socialmente aceitável.

E eu lia em Simplício a compreensão doída de quem não se adequava e um imenso esforço em tornar feliz a irmã que tanto amava.

Para a irmã, Simplício oferecia o seu melhor inesgotavelmente. E ofereceu também a sua morte, contrária a sua alegria de vida, mas a única saída para quem ama abertamente e tão sem pudores.

Anos mais tarde eu conheceria o Alegria.

Estar em Taquari significava rever o sorriso e os olhos brilhantes de um homem que era simples como uma criança, mas isso não nos perturbava.

Aprendíamos com ele o bem imenso de simplesmente estarmos juntos, lado a lado, trocando eventuais sorrisos. Para mim, Alegria era a encarnação de um Simplício a quem fora dada a chance de conviver e viver.

E a quem foram dados muitos amigos de verão, todos jovens, companheiros que o aguardavam como ele a nós, a cada mês de fevereiro.
Alegria deixava-me duplamente feliz.

Vera Haas. Texto escrito no ano de 2006, Porto Alegre (RS – Brasil).

marca Histori-se

Vera Haas & Histori-se

Vovó Vera e neta Kiara
Vera Haas e sua neta.

marca Histori-se

Written By
More from Vera Haas
O LÉXICO AFRICANO NA LINGUAGEM GAUCHESCA
Parte II do texto: " A Presença do negro na literatura riograndense:...
Read More