História e suas manas
História das mulheres
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MARIA QUITÉRIA
Há dúvidas em relação à data de nascimento de Maria Quitéria de Jesus Medeiros…
Estima-se que ela nasceu no ano de 1792, em lugar que pertence, atualmente, ao município baiano de Feira de Santana.
Corria o ano de 1822 e a Bahia já se encontrava envolta no cenário da guerra pela independência brasileira.
Guerra?
Sim…
Se você aprendeu que o processo de independência brasileira foi sem violência e sem derramamento de sangue, informo que não foi um processo pacífico.
Voltando à Maria Quitéria, que chegou famosa aos nossos tempos por apresentar-se como voluntária para lutar pela independência.
Aceitavam mulheres?
Creio que não recusavam esforços…
Maria Quitéria não foi a única mulher a lutar na guerra de independência; contudo, ela apresentou-se como se fosse homem: vestes, cabelo e nome.
SOLDADO MEDEIROS
Segundo narrativas, o ‘soldado Medeiros’ era hábil com as armas, disciplinado, sagaz e corajoso e…
Mulher de nome Maria Quitéria.
Para apresentar-se às fileiras de combatentes, fugiu de casa com a conivência de uma irmã casada com o verdadeiro Medeiros.
Dizem alguns relatos que sua identidade foi descoberta quando seu pai foi resgatá-la no acampamento militar dos que lutavam contra as forças portuguesas.
Outros, falam que foi o seu porte físico que a denunciou.
Parece que Maria foi Medeiros por cerca de quinze dias.
Reconhecida, ela conseguiu continuar na guerra usando uma saia sobre a calça.
QUITÉRIAS ANÔNIMAS
Maria Quitéria tornou-se reconhecida enquanto guerreira da Independência do Brasil. Foi a única?
Mesmo versões que a trazem como uma exceção ao aceitável na época, mencionam várias outras mulheres de arma em punho contra forças de Portugal. Exemplo?
Maria Quitéria liderou várias mulheres em batalhas, como a do rio Paraguaçu.
Dom Pedro I ficou sabendo sobre a soldado baiana e a condecorou com o título de Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro.
Nessas guerras pela Independência que encharcaram de sangue solos de várias regiões do Brasil, a narrativa histórica oficial – de forma muito tênue – só registrou duas mulheres:
Maria Quitéria, ouso dizer, quase como musa numa versão amazônica e
Soror Angélica, essa na qualidade de mártir.
Mas a história, também, é feita de perguntas.
Sugiro algumas:
- Havia outras mulheres?
- Quem eram as mulheres que lutaram ao lado de Maria Quitéria?
- Como e por qual razão foram aceitas nas fileiras de luta?
- Como era a reação da população das cidades às forças portuguesas ou aos partidários da continuidade sob o poder metropolitano?
Graças a novas perguntas e a novos olhares sobre a documentação, há hoje a certeza de que várias mulheres se envolveram de forma atuante nas guerras pela independência:
algumas por vontade própria diante das circunstâncias vividas e
outras impelidas pelos acontecimentos que as alcançaram em seus cotidianos.
O tempo passou…. As guerras pela independência terminaram.
Maria Quitéria e as demais mulheres envolvidas nessas seguiram com suas vidas.
Acredita-se que Maria Quitéria tinha 61 anos quando faleceu, em agosto de 1853.
MAIS DE CEM ANOS DEPOIS…
Maria Quitéria tornou-se reconhecida como Heroína das Guerras pela Independência.
No ano de 1953, por ordem do governo brasileiro, o seu retrato foi inaugurado em estabelecimentos do Exército.
O acesso feminino aos quartéis na qualidade de combatente teve início e – por muito tempo esteve restrito – a um retrato.
Estranho pensar que as mulheres, apenas, a partir do ano de 2018 foram admitidas na Academia Militar das Agulhas Negras para serem formadas combatentes do Exército Brasileiro.
Ainda hoje (2022) – apesar de já haver mulheres militares – ainda não há (e é forte o debate que desaconselha) mulheres na qualidade de combatentes em todas as armas da Força Terrestre.
UMA TRANSGRESSORA JUSTIFICADA
Quitérias, Anitas, Marias Firminas …
Muitas mulheres transgrediram o status previsto para o seu sexo.
Foram bem-vistas? Foram faladas?
Maria Quitéria representou uma transgressão ao entendido próprio e desejado das mulheres de sua época.
Transgressão justificada, nas narrativas históricas, pelo patriotismo.
Valor exaltado com o advento da República Brasileira.
Entretanto, a historiografia também, em seus registros, em geral, ressalta sua redenção ao papel dela esperado enquanto mulher de sua época – e de outros tempos.
Maria Quitéria não ocupa grandes espaços nos manuais de História: está em breves notas ou em pequenos quadros dispensáveis para o texto principal, ou ainda, a encontramos como apêndices.
Em geral, resume-se a algo como:
‘Maria Quitéria, fugiu de casa para lutar na Guerra de Independência do Brasil, na Bahia. Ao término dos conflitos, foi condecorada por Dom Pedro I, perdoada pelo pai, abandonou as armas, casou e teve uma filha‘.
Cumpre, ela, portanto, a sina das mulheres, o destino comum às mulheres da sua época e de tantas gerações futuras.
A narrativa final das aventuras de Maria Quitéria – seu reconhecimento pelo Imperador, seu retorno ao lar de origem e assunção dos papeis dela esperados pelo senso comum – reforça a imagem de pertencimento da mulher à esfera privada e daquela que devia obediência à ordem patriarcal vigente.
Em várias narrativas de sua biografia, é recorrente observação sobre sua qualidade de vida quando faleceu.
Como, por exemplo: “Morreu pobre e cega” (FLORES, 2008, p.489).
Não defendo a ideia de ocultar dados biográficos, mas o que chama a minha atenção está na diferença entre o ‘epílogo biográfico’ destacado entre diversas narrativas biográficas de Maria Quitéria e as de outros vultos heroicos do sexo masculino.
Há a ideia de castigo?
Há a ideia da não valorização de seus atos em prol do Brasil?
Creio que podemos identificar ambas as ideias.
Ao longo da história, como personagens da literatura ou como pessoas reais, encontramos exemplos de mulheres que transgrediram o papel a elas previsto nas suas sociedades.
As narrativas deixam claro o castigo sofrido, o mal causado, o inadequado, mas, neste rol de mulheres, há exceções.
Há as transgressoras redimidas pela causa que as levaram a transgredir: Maria Quitéria é uma das transgressoras redimidas.
A palavra transgressão, que utilizam para adjetivar os atos de Maria Quitéria e de outras heroínas, reforça a ideia de que elas desobedeceram ao tido como correto.
Afinal, transgressão vem do verbo transgredir, que significa, segundo o dicionário Houaiss (2009), “não cumprir, não observar (ordem, lei, regulamento, etc.); infringir, violar”.
Neste sentido, as narrativas de suas façanhas, podem, mesmo inadvertidamente, reforçarem uma ideia de hegemonia masculina.
Ao cometerem suas transgressões, essas mulheres assumiram valores e atitudes caros ao ideal masculino.
A narrativa reforça a tolerância às suas ações justificada pela junção desses valores com a necessidade do momento.
No caso de Maria Quitéria, a necessidade era a defesa da Pátria.
BIOGRAFIAS DE MARIA QUITÉRIA
Nos textos, em geral, podemos identificar os seguintes aspectos:
- a transgressão ao papel esperado das mulheres da época;
- a ação em prol de bem maior (no caso a independência brasileira, o patriotismo) e,
- com a conclusão da missão, o retorno ao doméstico, à esfera privada.
Além dos valores credenciados ao masculino – como força, audácia, coragem – a heroína é uma pessoa diferenciada, ela tem uma justificativa honrada (patriotismo) e sempre há o reforço da sua condição feminina frente aos pares homens (saiote, corpo mais frágil).
No caso de Maria Quitéria, encontramos – também – enfatizados o reforço de valores caros ao exército (mérito e reconhecimento pelo mérito, disciplina, coragem, hierarquia, sentimento de missão).
OUTRAS APROPRIAÇÕES
MARIA QUITÉRIA FORA DA CASERNA
Mas a história de Maria Quitéria não é contada apenas por quem escreve manuais didáticos ou textos institucionais.
Outras pessoas ou grupos, também, ressignificam e se apropriam da biografia de Maria Quitéria e até dos sentidos a ela atribuídos pelas instituições oficiais.
A seguir, apresento um exemplo datado da década de 1970.
MADRINHA DO MOVIMENTO FEMININO PELA ANISTA ?
Maria Quitéria colaborou com uma organização de mulheres que se mobilizaram em prol da anistia: o Movimento Feminino pela Anistia de São Paulo, criado no ano de 1975.
COMO?
O movimento de mulheres queria a Anistia ampla, geral e irrestrita para todos os presos e os exiliados políticos e a redemocratização do Brasil.
Maria Quitéria foi a personalidade escolhida para nomear o boletim por elas publicado em quatro edições (1977 – 1979).
Naqueles tempos… A personalidade baiana foi lembrada como a madrinha ideal pela sua coragem e por sua imagem ligada ao patriotismo: o adjetivo era uma necessidade e uma inspiração.
O respeito da caserna à heroína uma, ainda que frágil, sensação de segurança.
EMPODERADA
Maria Quitéria, atualmente, é vista exemplificando empoderamento por aí.
De narrativas de sua história emergem valores que incentivam a busca de autonomia, a coragem para trilhar caminhos diferenciados, o autoconhecer-se.
Aqui não é a soldado marcial e disciplinada.
É a mulher que ousou escolher.
Não se trata de ir para a caserna e nem de lutar sangrenta guerra.
E sim da experiência de autonomia e de escolha de caminhos.
Talvez … Seja uma mulher que ousou uma experiência de ‘se empoderar‘ numa época em que esse termo não existia.
Lembra que, com certeza, nossas antepassadas não seguiram bem a “cartilha que inventou os lugares dos sexos”.
Ao resgatarmos a sua história, assim como a de outras antepassadas, é possível novos questionamentos e novas leituras de lugares, de espaços e de sociedade desejada.
É possível reconhecermos valores que contribuam com o buscar de uma sociedade cujo o marco seja a equidade.
OBSERVAÇÕES:
- O ano de 1975 foi instituído pela ONU como o “Ano Internacional da Mulher”.
- A Lei da Anistia (Lei nº 6.683) data de 28 de agosto de 1979.
- Os exemplares dos boletins Maria Quitéria estão disponíveis para consulta on-line no < Memorial da anistia >: Projeto Marcas da Memória desenvolvido pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça (último acesso 03/07/2022).
- A imagem do mural “A Batalha de Pirajá” está na revista on-line Arte e Artistas disponível em < Carybé e sua obra >. Último acesso em 04/07/2022.
COMO CITAR ESTE TEXTO?
CARRA, Patrícia R. Augusto. Uma transgressora justificada – Maria Quitéria: biografias e apropriações. HISTORI-SE, Porto Alegre, v.2, n.5, julho, 2022. Disponível em: < https://historise.com.br/uma-transgressora-justificada/ >. Acesso em dia, mês, ano.
Referências citadas no post:
FLORES, Moacyr. Dicionário de História do Brasil,4 ed., Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008 (Coleção História; 8).
GRAHAM, Maria. Journal of a voyage to Brazil and residence there. 1824.