A casa da mãe dos homens
Capa do livro. Imagem cedida por Bia Fontana.
o amor nos utopia.
Resenha e dica de leitura
Foto: banco de imagens Canva.

A Cada da Mãe dos Homens
(Ione Mattos)

Começando em 2014, a Casa da Mãe dos Homens, às vezes esse lugar descrito por Chico Buarque como “uma espécie de bazar onde os sonhos extraviados vão parar”, um “lugar onde os sonhos são reais e a vida não”, se desloca por eventos históricos e acontecimentos pessoais na cidade do Rio de Janeiro, ao longo de décadas.

Nos escritos da Ione, ora tropeçando, ora flutuando, ora devaneando, com e sem fôlego, o leitor é levado a mergulhar em reflexões a cada provocação de personagens que desnudam preconceitos, e a enfrentar resistências na expectativa de uma narrativa tradicional.

A forma como o livro se desdobra com esclarecimentos da Ione, primeiro dá um desconforto pela interrupção.
O mistério instalado e a expectativa de seguir os fatos e feitos da trama toma outros rumos com a justificativa para as “breves pausas para exposições, ponderações, impressões sobre os acontecimentos, que de outro modo passariam ao largo”.

Logo se percebe necessárias, seja como desvios de rota, apêndices, acréscimos aos temas, penosas reflexões, líricos deleites e constatações de eventos políticos recentes, como vividos pelos personagens.

A violência que nos chega como notícia, mas que, nos damos conta, tangencia nossas vidas cotidianamente.

A Casa, em “narrativas de pedra e pó”, atesta as histórias presenciadas,  confiadas, adivinhadas e abrigadas ao longo dos seus 150 anos.
Acolhe, protege, alegra-se, entristece-se, abala-se em calafrios de pavor pelas violências e desassossegos que também se abatem sobre ela e seus moradores.
Lemuel, personagem envolto em dúvidas, inseguranças e carências, é trazido e ingressa nessa Casa, acima de tudo plena de amores, sem distinção de bem ou mal, mas de habitantes convictos “na aceitação dos seus males e dos seus bens, que atribuem a si e aos demais, todos, sem exceção”.

Uma Casa onde não há a necessidade de perdão porque tudo se compreende.
E a compreensão é apenas um estado de percepção”.

Os aconteceres abrigados por essa Casa com alma, incluem extravagâncias de mortos, que comparecem e descomparecem, ora com visibilidade, ora insinuando-se nos sonhos dos seus moradores.

Lemuel, esperado e acolhido como um predestinado, encontra em várias gerações de mulheres que alimentam a alma da casa, as lições de duas naturezas: “uma assim, de cada um, de cada coisa. A outra de todos juntos no coletivo”. Sob a proteção de um muiraquitã, marca de nascença no ombro esquerdo, Lemuel  segue desvelando essa vida de muitos outros que transitam pela casa: moradores, assistidos que recebem alimento físico e espiritual, um universo de “inevitabilidades de encontros”.

Assim, vai se dando uma apropriação mútua entre Lemuel e a Casa, fazendo com que Lemuel e demais leitores destes escritos nos tornemos poroses.

Nos mistérios que vão se avolumando ao longo da narrativa, Ione faz uma crônica de recantos do Rio de Janeiro, com as cores das suas peculiaridades, complexidades e diferenças, em diferentes épocas e de diferentes ângulos.
Leva-nos das voluptuosas emoções dos amantes transgressores, às ternas expressões de poliamorosidades, na sintonia de que “o amor nos utopia”, mesmo lembrando que o amor, como fica declarado, não é um sentimento.
Ao mesmo tempo, são relembrados tempos de insegurança coletiva provocados pelo Bandido da Luz Vermelha, Mineirinho e Cara de Cavalo e Ringo de Copacabana.
Mas havia também o temido Esquadrão da Morte.

Mulheres sábias, homens solidários, identidades de gênero subversivas e, portanto desafiadoras, algumas já entrevistas no “Vovó usava Barba”, outres tantes iguais, desiguais ou apenas diferentes, na Casa, cada qual encontra seu lugar.
Mas as incertezas que foram se abatendo sobre o país no decorrer dos tempos impregnaram paredes e muros que se povoaram igualmente de “incertezas e ausências, temores e premonições”.

Vivos e mortos que a habitam não podem negar que os tempos vão mudando.

Mas uma Casa que acolhe todes que a buscam e supre o que corpos e espíritos carecem também provoca o ódio dos desamorosos.
Lidando com suas dores e fraturas, a Casa assume a dicotomia: “ora prenúncios bem-vindos, ora premonições de mau agouro”.

Assim como as tragédias, há milagres que acontecem nessa Casa com alma que resiste em um “ato de vida – político, estético, amoroso”.

Permeada por inspirações em Clarissa Pinkola Estés, Humberto Maturana, Clarice Lispector, Machado de Assis, além da lista que Ione inclui nas  REFERÊNCIAS VIVEOGRÁFICAS, texto dividido em  capítulos e interlúdios, a Casa da Mãe dos Homens nos faz “sonhar por outros além de nós mesmos”. E desejar compartilhar esse lugar “onde os sonhos extraviados vão parar”.

AUTORA

Beatriz Fontana
Bia Fontana
Bia Fontana: “Sou professora aposentada. Nasci em Caxias do Sul, onde fiz graduação em Desenho e em Letras, na Universidade de Caxias do Sul; fiz mestrado e doutorado em Estudos da Linguagem, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fui ativista do movimento feminista e me mantenho comprometida com a luta por um viver mais digno para todes, contra as práticas patriarcais que estabelecem identidades convenientes para a manutenção do sistema”.
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