Entrevista: cotidiano com a condição celíaca.

Campanha Conscientização da Condição Celíaca. Imagem do grupo Celíacos do Brasil
O glúten é encontrado em cereais como o trigo, o centeio, a cevada e o malte. Logo, uma proteína quase onipresente no mundo. Então, como será que é viver sendo celíaca?Conversamos com a histórica Núbia Quintana, que é celíaca, para tentar entender um pouco mais sobre. Vem conosco!
Imagine só, uma substância que, em contato com o seu organismo, causasse uma “guerra interna”, uma reação em que seu sistema imunológico começasse a atacar as células saudáveis do seu corpo. Podendo te contaminar não só pela ingestão, mas também pelo ar.

Não parando por aí, imagine que essa substância esteja presente em grande parte dos alimentos ao seu redor. Certo, agora é só trocar a palavra “substância” por “proteína” que você se imaginou no corpo de um celíaco em contato com o glúten.

Celíacos são os portadores da doença celíaca (DC), você sabe o que é?

 Segundo a Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil (FENACELBRA), é uma desordem sistêmica auto-imune, desencadeada pela ingestão de glúten. É caracterizada pela inflamação crônica da mucosa do intestino delgado que pode resultar na atrofia das vilosidades intestinais, com consequente má absorção intestinal e suas manifestações clínicas.

O glúten é encontrado em cereais como o trigo, o centeio, a cevada e o malte. Logo, uma proteína quase onipresente no mundo. Então, como será viver sendo celíaca? Aproveitando que o mês de maio é o mês de Conscientização sobre a Doença Celíaca, conversamos com a histórica Núbia Quintana, que é celíaca, para tentar entender um pouco mais sobre. Vem conosco!
Núbia Quintana: atriz, bonequeira, educadora e historiadora. Fotografia de Jorge Aguiar.
  • Há quanto tempo tu sabes que é celíaca e quando tu descobriu?

 Descobri aos 33 anos, são quase 10 anos; aos 32, começo a desconfiar que algo do meu cotidiano estava me envenenando, minhas crises de alergia já não acabavam, eu vivia ‘me arrastando’ nesse período sem entender porquê. Aos 33, um amigo que é médico percebe que reajo após comer um bolo e me sugere parar com o glúten e observar.

  • Qual a importância de descobrir a DC o mais cedo possível?

 Por ser uma auto-imunidade multi-sistêmica, ela atinge diferentes sistemas em diferentes momentos, nem todas as crises atingem os mesmos órgãos (por isso, tantos sintomas diferentes). Quanto mais cedo se sabe da Doença Celíaca ( DC ), menos risco de novas auto-imunidades, pois a DC traz em si um conjunto dessas dores.

  • Como foi a trajetória até descobrir a DC?

 Por ser multi sistêmica, ela [a Doença Celíaca] muda de sintomas em diferentes momentos da vida. Sempre fui muito alérgica; na infância, eram predominantes as infecções cutâneas e, na adolescência, migra para rinite, que se torna insuportável e espirrar vira parte da personalidade (muito ouço piadas sobre ser “A que espirra sempre e alto”). Aos 14 anos, surgem as primeiras neoplasias nos seios, junto com a síndrome dos ovários policísticos, seguido da incômoda e constante azia. No passado, os sintomas não pareciam ter relação entre si – o que a unha que não cresce tem com a ferida na cabeça e cistite de repetição? Na casa dos 15, também surgiram as flebites e as consequentes pequenas tromboses nas pernas que causavam muita dor (eu usava meias de compressão para fazer teatro, era estranho), as alergias seguiam, meu nariz ficou rosado (usei isso ao estudar palhaçaria).

A gente pensa primeiro na comida, mas, para nós, é tratamento. Se o remédio é ruim, a gente toma igual, né? E pensa: se puder nunca tomar remédio e ao mesmo tempo não estar doente, sei lá… para mim, parecia a porta do paraíso, o desafio era a disciplina.

Claro que, antes de sair da contaminação cruzada e de seus desdobramentos, nas primeiras semanas, era impressionante, pois o corpo reagia rapidamente como se houvesse ganho super poderes: mais fôlego, menos dor, mais disposição e o humor, há o humor! Com 10 – 12 dias de dieta, os espirros desapareceram e, mais uns dias, as diarréias foram ficando ocasionais e, com elas, as cólicas, também, diminuiram. Logo, o cabelo parou de cair e, em poucos meses, a menstruação ficou regular, como nunca na vida.

Agora, quanto à vida social, tudo exige cuidados constantes que mudam tudo, tudo, tudo. Mas brinco que isso serve de filtro paras companhias, só se aproxima quem está disposto a cuidar.

  •  Como foi a descoberta?

 Informalmente, um amigo médico sugeriu que eu investigasse o glúten. Com essa sugestão, fui aos médicos que já me tratavam e partimos pros exames.

Existem exames específicos e devem ser feitos (alguns, inclusive, antes de iniciar a dieta) para revelar a reação ao glúten (muitos não fazem essa etapa e isso dificulta o diagnóstico preciso).

 

  •  Bom, isso acarreta mudanças para além da cozinha, como foi a adaptação?

 A descoberta da condição celíaca faz com que tudo mude, desde a forma de comer até a permanência na rua.

Eu agora conto meu tempo por lanches, tenho que comer em intervalos pequenos, então, frutas funcionam. Na rua, é complicado encontrar alimentos que sejam sem glúten e sem lactose e também sem açúcar – a gente descuida disso e, depois de um tempo, acaba com outras ‘peças estragadas’. A dieta é um lance bem sério. Então, é sinônimo de ser marmiteira.

Outra coisa que muda é que esse assunto SEMPRE é muito chato, o alérgico é sempre o chato da mesa. Então, a gente sai da mesa comum e com o tempo vai ressignificando as relações afetivas. Os amigos e os amores tendem a fazer o melhor para se adaptar; hoje, todas as minhas casas de afeto são munidas de vinagre pra eu chegar com minhas panelas (afinal, contaminação cruzada é coisa séria).

Alguns lugares deixam de ser seguros como, por exemplo, um supermercado com padaria. Para andar neles, sem ficar contaminada, faz alguns anos que eu uso máscara (era estranho antes da pandemia). Mas nem todos os celíacos são como eu, também alérgicos. Muitos celíacos não tem reações tão violentas.

Viajar também mudou, sempre gostei muito de acampamentos e de festivais, mas a DC exige um nível de higiene que torna uma exigência que todos os que conviverem com a pessoa celíaca obedeçam a dieta.

Com o tempo, fica mais fácil … As pessoas que te rodeiam percebem como cada crise te afeta e fazem de tudo para evitar a contaminação cruzada. Antes da pandemia, eu tinha uma rede de casas onde podia chegar com meu “kit anti glúten” (panelinhas, esponja, pano de prato …) sem medo de me contaminar.

  • Como é viver sendo celíaca em um mundo onde o glúten é onipresente e que em tudo pode haver contaminação cruzada?

É chato, tem que estar sempre alerta, não dá pra relaxar. Hoje, com a presença da COVID-19, as pessoas têm noção do que é contaminação por partículas, nós, celíacos, vivemos sempre com essa questão. Por exemplo, em todo lugar pode haver partículas de pão.  A atenção tem que ser constante.

A contaminação cruzada é o pesadelo do alérgico ou celíaco (não é só o glúten que causa contaminação) e se trata de rastros invisíveis nos objetos. Esses traços podem ser o bastante para uma crise. Por exemplo: as crianças comeram biscoitos no sofá, fizeram muito farelo, os quais foram devidamente aspirados; porém o sofá está contaminado. Se uma pessoa celíaca senta ali, pode acabar com as mãos sujas de glúten e este pode causar uma crise que dificilmente terá a sua causa identificada. Os sintomas serão os mesmo de ela ter comido uma fatia de pizza.

Para conviver com pessoas não celíacas, é necessário paciência, diálogo e generosidade. Sem o acolhimento e a generosidade, o celíaco não pode permanecer no ambiente. O risco é muito alto e a DC é uma doença grave, se não tratada. O único tratamento é banir para sempre o glúten.

  •  Como evitar a contaminação?  Quais os cuidados com talheres, pratos, fornos e utensílios?

 A lavagem tripla é a melhor coisa. Ao usar forno, é importante lembrar de sempre enrolar o prato em papel alumínio para ser seguro, se não for num forno de uso exclusivo.

  •  Qual a diferença entre quem é intolerante e quem alérgico ao glúten?

 Não sei dizer ao certo, mas existem 3 formas de manifestar efeitos de glúten: os alérgicos, os celíacos e os sensíveis ao glúten não celíacos (estes últimos pouco se sabe sobre, mas exigem todos os mesmos cuidados).

  •  Qual o seu conselho para quem descobriu agora?

 Estude muito, estude tudo e converse com outros celíacos.