Conto e História
Zabelê: ancestralidade e história foi o primeiro nome deste conto histórico.
Mas o título definitivo é: Maion. Ancestralidade e história.
Muitas histórias começam com “era uma vez “.
Mas esta história começa com:
olhe para a pedra que desponta no meio do rio.
Olhe e, talvez… Você veja
Uiara: dona das águas doces, de longos cabelos que, por vezes, são verdes como as folhas da jabuticabeira; às vezes, são negros como os frutos desta árvore e, ainda, podem ser dourados como o ouro.
E foi caminhando pelas terras de uma fazenda no cerrado mineiro que Zabelê, ao chegar às margens de um rio, surpreendeu Uiara penteando os cabelos com um pente de prata.
Uiara olhou para Zabelê com atenção, sem deixar de pentear os lindos cabelos verdes, cor de esmeralda.
A menina, encantada, não conseguia deixar de mirar a ‘Mãe d’água’.
__ Zabelê – disse Uiara -, solte os cabelos, use o seu cocar.
E os cabelos da deusa das águas doces, de verde, tornaram-se negros.
A menina sentia-se enfeitiçada por Uiara: passou as mãos sobre os cabelos, e eles foram soltos.
Uiara sorriu e disse:
___Só falta o cocar, as pinturas nos braços e na face…
Se assim fosse, eu veria Maion: os mesmos olhos de jabuticaba, os mesmos cabelos cor de graúna aparados logo abaixo dos ombros.
___Maion?
___ Sim, Maion, minha amiga Luz.
A menina olhou intrigada. Uiara continuou:
___ Sua avó, Zabelê.
Zabelê acordou algum tempo depois. Dormira na areia?
A pedra no meio do rio estava deserta.
Ao longe, ouvia a voz de sua mãe.
Não poderia ter dormido…não por muito tempo.
Ana estranhou Zabelê.
A menina parecia no mundo da lua.
Caminhavam de volta para casa quando Zabelê, de súbito, perguntou:
__Quem é Maion?
___ Maion? – Ana surpreendeu-se com a interrogação.
___Maion é Luz, sua avó.
Ana disfarçou a emoção. Seguiram sem palavras…
A quebra do silêncio de anos exigia um tempo para ser compreendida.
Zabelê ficou matutando as palavras da Mãe d´água.
O SONHO
Naquela noite, Zabelê sonhou com o mar.
As águas do mar soltaram uma espuma que, discretamente, foi tragada pela foz de um rio.
As águas do rio corriam para o mar; contudo, espumas de água salgada subiam o rio.
Aos poucos, essas espumas eram divididas em vários bocados: uns subiam certos afluentes, outros tinham lagoas como destino. Alguns subiam para as nuvens e caiam sobre a terra.
De uma pequenina porção dessas espumas nasceu, ela: Zabelê.
Uiara pegou a pequena Zabelê nos braços.
No outro dia, era cedo quando Ana acordou a filha.
O dia amanhecido coberto de neblina, o cheiro do café passado, o gosto do mingau de amido de milho:
nada fazia com que a menina esquecesse o sonho.
Ana observou Zabelê com cuidado e disse:
___Certa vez, parte de nossa família morava perto do mar. Lá, nasceu, cresceu e se casou Maion.
Um dia, eu já estava para nascer…
A garota ergueu os olhos, atenta.
Ana passou as mãos sobre os próprios cabelos cor da noite e o coque que os segurava se desfez.
Pausou. Respirou fundo. Olhou bem para a filha e disse:
__Façamos assim, deixa o dia esquentar. Iremos caminhar. Só nós duas!
Assim, poderei contar uma história: essa história.
Zabelê assentiu.
Aos poucos, a casa despertava.
Após o almoço, Ana anunciou:
___Zabelê, vamos caminhar e coletar folhas para tingirmos um tecido.
Pegou um cesto e chapéu. Olhou a filha e ordenou que calçasse as botinas.
O caminho era a trilha que levava à beira do rio.
Ana parava aqui e acolá coletando folhas e flores.
Comentava sobre as cores que conseguiria. Sobre como imaginava as estampas…
Nada de contar o prometido.
Zabelê conhecia a mãe.
De poucas palavras e muitos silêncios, terna e firme:
ela só começaria a história quando quisesse.
Na pequena praia, as duas se sentaram sobre uma toalha e olharam a pedra que despontava no meio do rio.
Finalmente, Ana falou:
___Aqui é melhor. Ninguém há de nos interromper.
Zabelê, curiosa, concordou. Ana reiniciou a história.
O MAR SUBIU O RIO
___Certa vez, parte de nossa família morava perto do mar.
Lá, nasceu, cresceu e se casou Maion.
Um dia, eu já estava para nascer… ela acordou com gritos e fogo por toda a parte. Era uma correria.
Quando o dia surgiu, a aldeia era cinza e dor.
Maion e várias outras pessoas não tinham o que fazer.
Então, ela foi para a beira do mar…
Lá, a Mãe dos oceanos indicou a foz de um rio e Uiara acolheu os que seguiram margeando as águas doces em busca de destino nos sertões.
Foi uma longa jornada.
Havia o medo de que os donos do fogo voltassem e os seguissem e, por isso, nessa caminhada, Maion decidiu apresentar-se como Luz.
Ainda vagava em busca de um destino quando sentiu os primeiros sinais da proximidade do parto.
Chegava a hora de eu nascer e Luz estava cansada.
Não conseguia seguir com os companheiros.
Sem saber bem o que fazer; ela ficou sentada à beira de um pequeno rio.
Sua avó não percebeu, mas, sob uma pequena cachoeira, dois enigmáticos olhos a cuidavam.
Zabelê, que até então ouvia em silêncio, como que hipnotizada pela narrativa, exclamou:
___ Era ela!
Ana pareceu não escutar a filha e continuou contando a sua história:
___Uiara chamou mulheres ribeirinhas.
Elas acolheram a mãe e eu, o bebê que queria nascer.
Maion queria um nome que escondesse sua criança dos que perseguiam o seu povo.
Observou que a parteira rezava para uma santa de nome Ana.
Ela gostou do nome.
O tempo passou…
Maion, então, conhecida como Luz, reencontrou parte de seus parentes vivendo no sertão mineiro.
Junto deles, eu passei parte de minha infância.
NO CERRADO
__ E depois? Como veio viver aqui na fazenda? Onde vive Maion?
Ana fez uma pausa. Pediu para Zabelê deixar que descansasse um pouco.
A menina queria insistir para que a mãe continuasse contando a sua história, mas sabia ser inútil:
a mãe sempre amorosa era, também, muito firme.
Ela não estava pedindo.
Ela estava dizendo que faria uma pausa.
Era esperar seu tempo ou… não saber a continuidade da história.
Ana ofereceu mexerica que trouxera na cesta para a filha e,
com o olhar na pedra que despontava no meio do leito das águas, deixou-se perder em seus pensamentos.
Zabelê ficou ao seu lado, comendo mexerica e aguardando o momento de sua mãe.
Ana acarinhou a menina e, como se em nenhum instante tivesse interrompido a narrativa, continuou a falar:
___ Nessa terra, onde a gente vivia com nossos parentes, as coisas não eram fáceis.
Tinha gente reivindicando a posse, tinha ameaças…
Luz conseguiu um emprego na vila próxima, na casa de uma senhora costureira e bordadeira.
Eu já estava crescidinha.
Ela decidiu que sairia da aldeia para morar na vila e que eu aprenderia as primeiras letras, a contar e muito mais.
O tempo passou… Os parentes mudaram para outros lugares.
Luz se tornou uma costureira habilidosa e muito conhecida.
Eu estudava biologia e trabalhava como atendente em uma farmácia de manipulação.
Um dia… Luz se foi. Antes contou as histórias de meus antepassados, contou aquelas de que se lembrava.
Nessas histórias, ela falou sobre uma senhora de nome Zabelê:
benzedeira, sábia das ervas e conhecedora das histórias de seu povo.
Eu entristeci e achei consolo estudando as ervas das quais minha mãe falava e que usava.
E foi assim, que, um dia, conheci um não indígena: seu pai.
O interesse pelas plantas e por tratar a terra de forma sustentável acabou nos unindo: casamos e colocamos nossas ideias nos cuidados desta fazenda.
Então, você nasceu.
Sabe por que você se chama Zabelê?
Ana não aguardou nenhuma resposta de Zabelê.
Fitou, rapidamente, a filha, e continuou:
Poucos dias antes de você nascer, seu pai pescava por ali e eu descansava bem aqui.
Então… algo aconteceu. Sobre aquela pedra… a bem no meio do rio, estava ela, penteando os longos cabelos verdes… De início, fiquei assustada.
Ela me olhava de forma encantadora e seu pai parecia longe. De repente:
___Zabelê! Ela chamou.
Olhei para a Mãe d’água e já não senti medo, mas era como se estivesse acordando alguma coisa no meu coração.
Não sei explicar.
Observei que seu pai estava seguro, pescando sem perceber o que acontecia.
Eu, até, gritei:
___ Olhe para a pedra no meio do rio.
Ele me olhou e sorriu, terno, mas sem compreender nada do que eu dizia.
Uiara, então disse:
___Ele não me vê. Está encantado.
___ Sou Ana!
___ Sim. Seu nome seria Zabelê… Maion desejava, mas temeu.
___ Por que me chama de Zabelê, então?
___Eu estou chamando a criança que espera.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
Protegi meu ventre com as mãos. Estava atordoada.
___ Não temas… banhe-se nas águas com seu companheiro.
Descanse. Quando a menina nascer: o nome é Zabelê.
___ Por quê?
____ Maion subiu as águas doces, Zabelê descerá as águas doces ao encontro do mar: conhecerá a sua ancestralidade materna.
___ E depois? – Indagou Zabelê.
___Depois… Assim como ela surgiu, ela desapareceu.
Seu pai veio chegando, todo contente, com um grande peixe, e me acordou, mas eu não estava dormindo…
Ele me chamou para nadarmos no rio antes de irmos para casa.
Ana acariciou, sem pressa nenhuma, os cabelos da filha, e concluiu:
___ Sabe que foi ele quem desistiu de te chamar de Iara?
Enquanto acariciava meu ventre sob as águas, disse:
“Sabe, Ana, sinto que nem Iara e nem José é o nome do bebê”.
Eu, mecanicamente, perguntei: __Zabelê?
Os olhos de seu pai sorriram:
___Sim, Ana. Zabelê. Este é o nome com que sonhei.
Notas:
Imagem de Santa Ana – O nome da artesã ou artesão, assim como a autoria da fotografia não são conhecidos. Caso conheça, por favor, envie um e-mail com as informações para contato@historise.com.br para darmos os devidos créditos.
A ilustração do livro foi feita por Vanessa Martinelli.
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