Dia 24 de dezembro e Cris Costi presenteia Histori-se com a leitura de um texto de sua autoria. Confira.
Úrsula
Mulheres que escrevem
Imagem 1

Depois das nove

Passa das nove. A noite caiu, a rua enfim se calou.
Na calçada, um ou outro movimento de passos, todos com pressa, todos para algum lugar junto aos seus.
No calor do quarto pequeno, uma peça e um banheiro, só o som do ventilador.
As luzes estão apagadas, e, improvisada sobre a mesa dobrável de fazer refeições, uma árvore artificial com pouco mais de duas dúzias de bolas alterna suas luzes e explode a parede em verde, amarelo, vermelho e azul.

Milena se senta na beira da cama, cuida para que o movimento não faça nenhum sobressalto.
Devagar, inclina o tronco um pouco para a frente, olha para Lucas dormindo sobre os lençóis trocados há pouco e sorri.

Depois lhe acaricia os cabelos, a palma da mão passando suave nos fios.
Coloca a ponta do indicador na testa de pele clara e, como quem cria um meridiano, traça em delicadeza uma reta que começa na raiz dos cabelos finíssimos, passa entre os olhos, contorna o nariz.
Quando toca o pequeno sulco acima dos lábios, para.

Sente que ele tremeu levemente. Quer que ele acorde, mas não deve acordá-lo.

Naquele dia, levantou atrasada.

A noite anterior tinha sido quente demais, precisara abrir as janelas, e o sono só viera depois de, por volta das duas, enfiar-se no chuveiro e molhar o corpo com água gelada.
Por isso, quando os raios de sol, de manhã, alcançaram a cama e deixaram a temperatura do quarto acima do suportável, acordou num susto, sabendo que já passava das dez.

Enquanto escovava os dentes, afastou a cortina de plástico e, com a mão esquerda, girou o registro.
Sentiu a água correr pelo braço, tirou a roupa e entrou, limpando ali mesmo a boca cheia de espuma de creme dental.

Depois saiu, secou-se com pressa.
Colocou a calcinha, acomodou no quadril a tira estreita de renda.
Com as mãos nas costas, fechou rapidamente o sutiã, pôs a mão por dentro do bojo esquerdo, depois do direito, alinhou os seios.

Revirou a pilha de roupas sobre uma cadeira no canto até achar um short de jeans rasgado, o cós baixo.
Fechou o botão, puxou o zíper.
Abriu uma das duas portas do armário e, da prateleira do meio, puxou uma blusa branca, vestiu, ajeitou o tecido colado ao corpo numa altura pouco acima do umbigo.

Calçou a sandália de salto baixo que tinha usado no dia anterior e foi até a janela. Desembaraçou o cabelo com pouca paciência, espiando o movimento ali embaixo.
Enfiou a escova numa gaveta, estendeu os lençóis, juntou a pilha de roupa que ocupava a cadeira e socou tudo na prateleira do armário.

Então passou um creme perfumado na nuca, no colo, na faixa visível de barriga e desceu para trabalhar.

A manhã não rendeu nada.

Andava de uma esquina à outra, ia e voltava.
Os cabelos secaram sob o sol de dezembro.

Conversou com uma das meninas por quase meia-hora, tomou um café na lancheria da esquina, duas quadras além da pensão de dois andares em que morava, um sobrado, aonde voltou pouco depois do meio-dia para comer um sanduíche montado sem cuidado na cozinha de uso comum.

Quando subiu para o quarto, sentou na cama e pegou o celular.

Os dedos correram rápidos pela tela: Não vou, não quero clima. Consegue passar aqui antes de ir?

Dez segundos depois veio a resposta: “Sim, lá por oito e meia, mas não vai dar para demorar”.

Imagem de TeeFarm 

As horas seguintes foram todas, um minuto após outro minuto, uma sucessão de ações mecânicas: com um homem lá pelos cinquenta que ficou por uma hora mandando e desmandando ela abrir e se virar. Com Jurandir, o senhor de meia-idade que, já há um ano, procurava-a uma vez por semana e só lhe pedia para dançar. Com um garoto visivelmente amedrontado que estava indo a pé para a rodoviária e não demorou mais que três minutos para gozar.

Entre um e outro, a promessa da vinda de Lucas à noite.
Mesmo que breve: a pele, o cheiro, a certeza da alegria de Lucas.

 

Quando eram quase seis horas, decidiu não descer mais.
Ficou um tempo jogada sobre a cama, ouvindo os barulhos da rua, as vozes no corredor, o abrir e o fechar das portas dos outros quartos.
Depois levantou-se,

  • trocou os lençóis, ligou as luzes do pinheirinho.
  • Tomou um banho, colocou um vestido curto e fresco, amarrou o cabelo num coque.
  • Do armário, pegou uma sacola e dela tirou dois presentes embrulhados em papel brilhante.
  • Colocou-os na mesa junto à arvore, ligou a televisão e esperou.
Imagem de Arek Socha

Só quase duas horas depois foi que ouviu os passos na escada, o barulho dos saltos e as batidas na porta.

Abre disposta a fazer uma festa, mas encontra a irmã com o dedo rente à boca, pedindo silêncio.

Ele mamou e, no embalo do carro, dormiu – sussurra Renata.

Ah, meu Deus, me dá ele aqui — pede Milena, passando o braço direito por baixo das costas frágeis e enlaçando, com o esquerdo, o corpo mole do bebê.

Caminha pelo quarto com Lucas nos braços.
Desliga a televisão, muda a posição do ventilador para que não faça mal ao menino.
Fala com a irmã sem quase olhar para ela, a atenção toda voltada ao sobrinho.
Não pergunta nada, só responde.

Sim, estou bem.
Sim, lógico que cuido.
Sim, um dia paro com isso.
Não, não mudei de ideia.
Sim, vou passar o Natal aqui.
Sim, lá ia ser constrangedor.
Não, se a mãe não aceita, não dá para forçar.
Não, não precisa te preocupar com o presente, presente é vocês estarem aqui
.

Com uma das mãos livres, puxa os dois travesseiros da cama de meio-casal.
Coloca um rente ao outro.
Acomoda o menino entre os dois.

Vou ao banheiro, diz a irmã.

Vai, a gente aqui se entende, né, Lucas? — Milena fala baixinho para o menino.

Então senta-se ao lado, devagar, inventariando cada traço do rosto do bebê, correndo a mão em leveza, velando o sono justo da pureza de Lucas, o sem-pecado, o ungido, um Deus menino em uma manjedoura de lençóis sintéticos baratos.

Imagem de Tawny Nina Botha

Quando Renata sai do banheiro e vai até a cama, Milena se levanta.

Pega os presentes, estende-os para a irmã.

Não comprei nada para ti, desculpa. É uma roupinha para ele e um lenço para a mãe. Não diz que é meu, só entrega. Depois me diz se ela gostou.

Não te preocupa. Digo sim. A gente tem que ir, Mi. Paulo tá esperando no carro.

É Milena quem carrega Lucas no colo até a porta.
Olha para a irmã e a abraça de lado, o bebê entre elas.

Aproveitem por mim.

Então aproxima os lábios do rostinho minúsculo, deposita um beijo leve na testa do sobrinho e o coloca nos braços da mãe.

— Feliz Natal, meu amor.

Fecha a porta.
Caminha até a janela.

Lá de cima, acompanha o movimento da irmã acomodando-os no carro, ouve o barulho do motor já velho, vê o cunhado arrancar e dobrar a esquina na avenida.

Vira-se de costas para a janela, tira o vestido,
vai de novo para baixo do chuveiro.
Sorri sob a água gelada.

Imagem de Theo Crazzolara

Seca-se um pouco, reposiciona o ventilador em direção à cama e se joga entre os travesseiros, mergulhando a dureza e a beleza do dia nas cores da noite feliz.

A  AUTORA
Cristiane Costi e Silva (Cris Costi)

Professora. Apaixonada pelas palavras. Achando, como bem disse Adélia Prado, que a coisa mais fina do mundo é sentimento. Leia outras produções da autora. Clique nos links: <Tu  >; < Talvez seja mesmo isto: é sombra mesmo quando há luz.  >; <  Que letra mais linda, que tempo mais bacana. E que paz.> e < Mesmo que o tempo seja um não  >.

Notas:

  1. Todas as imagens presentes neste post estão disponibilizadas em Pixabay.
  2. A imagem é de autoria de  S. Hermann & F. Richter.

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