Duas mulheres vestidas como na época de 1824. Imagem de Debret.
Litografia de Debret editada (recorte)
O que os deputados que votaram a Lei de 15 de Outubro de 1827 pensavam sobre as mulheres e a educação feminina? Ficou curiosa? Confira este post.
HISTÓRIA E SUAS MANAS

INTRODUÇÃO

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

HISTORIETA EXPLICA

O ano de 1822, na história do Brasil, tem como destaque a Proclamação da Independência (07/09/1822) e o início do Império Brasileiro. Uma das necessidades da nova nação era um conjunto de leis. Antes mesmo da ruptura oficial com Portugal, Dom Pedro I havia convocado uma Assembléia Constituinte.

A eleição dos integrantes dessa Assembléia foi convocada em 03 de junho de 1822. Eles apresentaram o projeto para a primeira Constituição brasileira no dia 01 de setembro de 1823. Esse projeto ficou conhecido como ‘A Constituição da Mandioca’.

A Assembléia Constituinte em funcionamento no edifício da Cadeia Velha, no Rio de Janeiro, em 1823. Ilustração publicada em Notices of Brazil in 1828 and 1829 (Robert Walsh, 1830).

Os trabalhos dessa Constituinte aconteceram em tenso clima político e foram interrompidos por decreto real (12/11/1823). A Assembléia encarregada de elaborar a primeira Constituição brasileira foi encerrada; contudo, o novo país independente ainda necessitava de um conjunto de leis. O imperador convocou um Conselho para redigir a Lei Maior do Brasil e, no dia 25 de março de 1824, outorgou a Constituição de 1824 ao povo brasileiro.

Em relação à educação, essa Carta definia a instrução primária como gratuita e previa colégios e universidades. Estas determinações não estavam normatizadas. Coube à Primeira Legislatura da Assembléia Geral Legislativa a regulamentação dos dispositivos constitucionais e a criação das instituições presentes no texto da Constituição de 1824.

A PRIMEIRA LEGISLATURA DA ASSEMBLÉIA GERAL LEGISLATIVA
(1826 -1829)

No Império, cada legislatura tinha a duração de quatro anos.  A sessão de abertura da Primeira Legislatura aconteceu no dia 06 de maio de 1826. Dom Pedro I prestigiou o evento e recomendou: “Deve merecer-vos sumo cuidado a educação da mocidade de ambos os sexos, a Fazenda Pública, todos os mais estabelecimentos públicos […]”.

Nos discursos dos deputados participantes das duas primeiras Legislaturas da Assembléia Geral Legislativa (1826 – 1833), as mulheres estão presentes. Lendo os anais dessa Assembléia, encontramos o pensamento da elite masculina brasileira da época sobre, por exemplo, o ser mulher, a função social das mulheres, seus lugares (e não lugares) na sociedade, capacidade intelectual.

Eles muito falaram sobre as mulheres brasileiras. Elas nada disseram sobre si ou sobre o que desejavam. Elas não participaram da Assembléia.

Entre os vários temas tratados por essa Assembléia, está a educação feminina.

Instrução Feminina no Primeiro Império: debates e a Lei de 15 de outubro de 1827

ÀS MENINAS, A EDUCAÇÃO ELEMENTAR

I. A INSTRUÇÃO PÚBLICA 

Obedecendo ao previsto, a Assembléia Geral Legislativa iniciou os trabalhos visando à regulamentação dos dispositivos constitucionais e à criação das instituições presentes no texto da Constituição de 1824. Para viabilizar essa missão, foram criadas comissões de trabalho, entre elas, a Comissão de Instrução. No dia 16 de junho de 1826, o Deputado Antonio Ferreira França, representando essa Comissão, apresentou Projeto de Lei sobre a Instrução Pública do Império do Brasil, contemplando as escolas de primeiras letras (pedagogias).

Segundo o exposto no Título I do referido Projeto, a instrução pública deveria ser dividida em quatro graus distintos: Pedagogias, Liceus, Ginásios e Academias.

II. AS PEDAGOGIAS

As Pedagogias ou Escolas de 1º Grau eram o primeiro nível de ensino e previam o aprendizado da arte de ler e escrever, os princípios e as regras fundamentais da Aritmética, os conhecimentos morais, físicos e econômicos, considerados como básicos para a vida cotidiana.  Era previsto que meninos e meninas recebessem instrução igual e simultânea, e não havia a previsão ou a recomendação do ensino de costura, bordados ou de outras prendas domésticas.

 O projeto, ainda, recomendava aos professores o aprendizado e uso do Método Lancastriano (mútuo, monitorial ou Lancaster) e determinava a criação de uma Escola Lancastrina em todas as capitais de províncias para ensinar e habilitar os mestres, os quais deveriam, depois, propagar o método mútuo por todo o Império.

O Projeto de Lei não foi aprovado. Duas de suas propostas foram responsáveis pela rejeição: igual instrução para meninos e meninas e classes mistas.

Tendo como base o texto recusado, novo projeto foi apresentado, dessa vez, pelo Deputado Januário da Cunha Barbosa. Esse, também, foi rejeitado; contudo, serviu de base para a construção de uma proposta mais modesta que, após discussões e emendas, originou a Lei de 15 de outubro de 1827 (Lei Geral). Essa foi, até o ano de 1946, a única legislação federal a versar sobre o ensino elementar no Brasil.

O termo Pedagogia foi alterado para o de Escolas de Primeiras Letras. Decidiu-se que as escolas deveriam ser monoeducativas, sendo que, na grade curricular prevista para as meninas, foram inseridos os trabalhos de agulha e as prendas domésticas, restringidos os conhecimentos de álgebra e retirado o conteúdo de noções de geometria. Os mestres deveriam ter o mesmo sexo de seus estudantes, ou seja, para as meninas, haveria professoras e, para os meninos, haveria professores.

Os trabalhos de agulha e as prendas domésticas substituíram o – inicialmente previsto – ensino de coser e bordar. Abrangiam o entendido como economia doméstica e, de início, compreendiam conhecimentos elementares de trabalhos de agulha, bordado e costura, e música. Ao longo do tempo, os objetos de conhecimento dessa disciplina foram ampliados e passaram a contar com assuntos como: cozinha, manutenção da roupa, cuidados com a limpeza da casa e do jardim, higiene.

No processo de discussões sobre a Instrução Pública (e não apenas), muito foi falado das mulheres e decidido pelas mulheres. A seguir, compartilho parte dos debates da sessão registrada nos Anais do dia 11 de julho de 1827: poucos meses antes da aprovação da Lei de 15 de Outubro de 1827.

OS ILUSTRES DEPUTADOS, AS PROFESSORAS E A INSTRUÇÃO FEMININA

O tema da sessão era a Instrução Pública, em especial, as Primeiras Letras. O deputado Baptista Pereira observou que a redação do texto que legislava sobre as escolas de Primeiras Letras permitia uma menor oferta de escolas para as meninas:

[…] vejo Escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império, e vejo, quando se trata da educação do Sexo Feminino, haver só Escolas nas cidades e vilas mais populosas, por esta enunciação excluídas as Vilas menos populosas, e Lugares. Não acho razão, em que se sustente esta espécie de tirania. Qual a razão porque não há de ser a mesma coisa? É necessário acabar com isto; é tempo de sermos menos orgulhosos, é necessário que o Sexo Feminino tenha uma educação mais sã, por consequência mandarei uma Emenda aditiva para que Escolas Sexo Feminino sejam nas cidades, Vilas e lugares mais populosos do Império”. (BAPTISTA PEREIRA, 1827, p. 650) grifo da autora.

Antes de qualquer debate sobre a possibilidade de haver menos escolas para as meninas, o exame de admissão previsto para as professoras foi lembrado. O deputado Xavier Ferreira apresentou Emenda, questionando a obrigatoriedade de as Mestras de Meninas prestarem, assim como os professores, exames admissionais ao magistério na Capital:

[…] este artigo me obriga mais a fazer esta reflexão a respeito das Mestras de Meninas. De certo que, a serem obrigadas a fazerem os seus exames na Capital, muitos lugares ficarão privados deste bem, que julgo de grande importância. Por isso lembro-me de apresentar esta EMENDA. As mestras das meninas deverão aprovar-se nas Cabeças da Comarca perante a Câmara.
(XAVIER FERREIRA, 1827, p. 650) grifo da autora.

O deputado Diogo Antônio Feijó (Padre Feijó), justificando Emenda de sua autoria, que isentava as mulheres desses exames, considerou:

“Parece que o Sexo Feminino, segundo a prática, que temos, tem mais pejo [impedimento/vergonha]; e por isso seria melhor isentar as mestras destes exames […]
(FEIJÓ, 1827, p.650).

O mesmo deputado, falando sobre o número de escolas de primeiras letras, previstas no texto do projeto de lei, afirmou: “[…] mesmo por que a educação não se faz tão necessária, nem as mulheres impõem tanto, como os homens na sociedade” (FEIJÓ, 1827, p. 650)

 A afirmação de Feijó sobre a necessidade de escolarização para as mulheres encontrou pronta reação nas palavras de Baptista Pereira (1827, p.650):

“A minha Emenda ainda subsiste, apesar do que disse o Ilustre Deputado, afirmando que as mulheres não impõem tanto na Sociedade, como os homens. Qual é a instrução, que se propõe neste Projeto? É ler, e escrever: e será isto só suficiente para os Cargos Públicos da Sociedade. De certo que não: logo o argumento contra não vale. É preciso que acabe o despotismo, que o Sexo Masculino, tem exercitado sobre o Feminino; despotismo filho das ideias do Direito Romano nesse tempo, em que se assentara que quanto mais ignorância, mais virtude. Essas ideias estão já inteiramente proscritas. Sem haver instrução, não podem haver costumes; e sem bons costumes não pode haver virtude, por consequência tanto direito às despesas, que faz a Nação, tem o Sexo Feminino, como o Sexo Masculino“.
(Grifos da autora).

Lino Coutinho (1827, p. 650 e 651) suspirou pelo fato de, em sua opinião, as mulheres preferirem os homens ricos aos letrados. Considerou que o sexo feminino não necessitava de instrução além da elementar. Defendeu a instrução feminina como fundamental para a formação de boas mães e companhias agradáveis aos seus filhos e maridos. Lembrou a possibilidade da escolarização mista e considerou que mulheres instruídas incentivariam a instrução e as virtudes masculinas:

“[…] pois que em outras Nações vemos os rapazes estudarem com as meninas. Logo, não por essa inconveniência suposta, mas sim porque precisa desta instrução primária para figurar dentro de sua casa quem não tem de figurar na Sociedade, devem se criar para o Sexo Feminino Tantas Escolas destas, como para o Sexo Masculino. […]. Hoje o homem não cuida de se instruir, não cuida de se tornar bom, porque sabe que ele agrada com dinheiro, e pelos hábitos, se houvessem, porém, mulheres que dessem a preferência nos homens de letras, eles procurariam para agradar ao Sexo Feminino, ter nobres sentimentos, dos quais resulta a virtude, por isso é preciso dar-lhes a primeira instrução e também para educarem bem seus filhos, e os pôr no caminho da Virtude. A História dos tempos antigos tem mostrado nesses tempos bárbaros que o Amante para agradar à Amada andava fazendo sacrifícios, e praticando virtudes, para muitas vezes a conseguir no fim de 10 anos, ou mais”.
(Grifos da autora). (1827, p. 650 e 651).

O romântico Deputado também defendeu que as mulheres – candidatas ao cargo de professoras – deveriam submeter-se, assim como os homens, aos exames previstos como condição para o exercício do magistério:

“Disse-se que podiam dispensar as Mestres de serem examinadas, porque eram mais vexadas etc.; porém, Sr Presidente, apresentaram-se a fim de serem examinadas para o nobre cargo de ensinar a Mocidade, que vergonha poderão ter? Não tem elas vergonha de se apresentarem no Teatro; e hão de ter vergonha de se apresentar perante o Tribunal, para o seu exame? Em todas as Nações as mestras são examinadas, e não há vergonha de aparecer n’um ato tão sério, como este”.
(LINO COUTINHO, 1827, p.651).

A Emenda apresentada pelo Deputado Baptista Pereira não foi aprovada. A Lei de 15 de outubro de 1827, no seu Art. 1.º, determinou a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos; porém, no seu Art. 11º, determinou que escolas de meninas existissem nas cidades e vilas mais populosas, onde os Presidentes em Conselho julgassem necessário este estabelecimento.

O conteúdo determinado para ser ensinado reafirmou o mundo doméstico como o lugar social das mulheres, consolidando a percepção de que sua instrução poderia ser menos abrangente do que a dos homens.

O exercício do magistério por ambos os sexos foi condicionado à aprovação nos exames de admissão.

NOTAS:

1. O primeiro imperador do Brasil recebeu o título de Dom Pedro I, mas era conhecido em Portugal como Dom Pedro IV. Ele era filho de Dom João VI, rei de Portugal. Reinou no Brasil até 07 de abril de 1831. Renunciou o trono brasileiro em favor de seu filho ‘Dom Pedro II’, então com cinco anos de idade.
2. O Decreto de 03 de junho de 1822 fez a convocação de uma Assembléia Geral Constituinte Legislativa, formada por deputados das províncias brasileiras. A Decisão de Governo número 57 (19 de junho de 1822) determinou que fossem eleitos 100 deputados provinciais e apresentou as regras do processo eleitoral. A primeira reunião da Assembléia Geral Constituinte Legislativa do Brasil Independente aconteceu no dia 17 de abril de 1823.
3. Discurso de Dom Pedro I na abertura da Primeira Legislatura no dia 06 de maio de 1826. Texto disponível no Diário da Câmara dos Deputados – Assembléia Legislativa do Império do Brasil – Rio de Janeiro. Número 4. Primeira Sessão Ordinária. 08 de maio de 1826, páginas 31 e 32.
4. A Comissão de instrução dessa Assembléia Geral Legislativa era composta pelos deputados Januário da Cunha Barbosa, José Cardoso Pereira de Mello e Antônio Ferreira França. Sobre o primeiro projeto apresentado, ver Diário da Câmara dos Deputados.  À Assembléia Geral Legislativa do Império do Brasil, número 30, sessão de 16 de junho de 1826.
5. O Deputado Antonio Ferreira França, representando essa Comissão, apresentou Projeto de Lei sobre a Instrução Pública do Império do Brasil, contemplando as escolas de primeiras letras (pedagogias). A origem desse documento é o plano de estudos criado pelo Tenente General Francisco de Borja Garção Stocker durante o governo de Dom João VI, objetivando a organização de uma reforma educacional. O referido plano apresenta influência do pensamento de Condorcet, em especial, das ideias contidas no Relatório e Projeto de Decreto da Organização da Instrução Pública (Rapport de Condorcet), apresentado à Assembléia Legislativa da França, no ano de 1792. Vide sobre as ideias que influenciaram os legisladores brasileiros no tocante à educação em < MULHERES & EDUCAÇÃO: IDEIAS >.
6. O método monitorial foi, oficialmente, adotado no Brasil, pelo Decreto das Escolas de Primeiras Letras de 15 de outubro de 1827.
7. Sobre o processo de construção e aprovação da Lei de 15 de outubro de 1827, é importante analisar os anais da Câmara dos Deputados, sessões de 1826 a 1827 (inclusive). O termo Pedagogia foi substituído por Escolas de Primeiras Letras, como consequência da aprovação da Emenda apresentada pelo deputado Ferreira França no dia 10 de julho de 1827.
8. No dia 07 de abril de 1831, Dom Pedro I abdicou do trono brasileiro em favor de seu filho, Dom Pedro de Alcântara (futuro Dom Pedro II), que, na ocasião, tinha apenas cinco anos de idade. O Brasil vivenciou, então, o processo histórico conhecido como período regencial (1831 a 1840).
9. Desenhos presentes no corpo do texto: desenhos da autora, representam os deputados. Não observam nenhuma descrição biográfica dos mesmos.

Gostaria de saber mais sobre Educação de Mulheres no Brasil vide < EDUCAÇÃO DE MULHERES NO BRASIL COLÔNIA PARTE III    > ; <  BRASIL COLÔNIA – EDUCAÇÃO DE MULHERES  >  e  <   EDUCAÇÃO DE MULHERES NO BRASIL COLÔNIA I>.

REFERÊNCIAS

BORGES, Wanda Rosa. A profissionalização feminina: uma experiência no ensino público. São Paulo, Edições Loyola, 1980.
CONDORCET. Sobre a admissão das mulheres ao direito de cidadania. In: BADINTER, Elisabeth (Org.) Palavras de Homens (1790-1793). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
____________. A instrução das mulheres. In: BADINTER, Elisabeth (Org.) Palavras de Homens (1790 – 1793). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
DA COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9 ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Emílio ou Da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
SAFFIOTI, Heleieth, I.B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Liv. Quatro Artes, 1969.
SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital (org.). Dicionário Mulheres do Brasil de 1500 até a atualidade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000.

DOCUMENTOS:

DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS – À Assembleia Legislativa do Império do Brasil. Rio de Janeiro. 1826 – 1838. Acervo disponibilizado na Hemeroteca Digital Brasileira. Biblioteca Digital Nacional do Brasil [BNDigital]. Fundação Biblioteca Nacional.

DOM PEDRO I. Falla que S.M.O I pronunciou na Camara dos Senadores no dia 6 de Maio de 1886 na Abertura da Assembleia Nacional. Diário da Câmara dos Deputados – Assembleia Legislativa do Império do Brasil – Rio de Janeiro. Número 4. Primeira Sessão Ordinária. 08 de maio de 1826, páginas 31 e 32. Acervo disponibilizado na Hemeroteca Digital Brasileira. Biblioteca Digital Nacional do Brasil [BNDigital]. Fundação Biblioteca Nacional.

 

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