Diadorim
Coluna de Vera Haas
IRMA
Aos dezesseis anos, Irma Hoppe já trabalhava.
O pequeno salário era seu orgulho, embora fosse todo para as mãos paternas.
Assim, desde cedo, ajudava a pagar as despesas da casa, um costume naquelas famílias de alemães radicadas em Hamburgo Velho.
Depois, foi trabalhar no hospital.
Em uma época em que os trabalhadores não tinham muitos direitos, Irma trabalhou várias noites seguidas, sem descanso.
E sem achar ruim.
MÜLLER
Quando já era uma jovem solteira, pois passara da idade de casar, conheceu Otacílio Müller (quando a conheci, já usava o sobrenome do marido).
Bem mais velho que ela, encantaram-se um com o outro.
Bem, talvez não encantaram-se, pois não eram mais jovenzinhos.
Creio que encontraram-se um com o outro.
Namoraram, noivaram e casaram, com ou sem o acolhimento da família ( não sei ) e apesar de críticas quanto à mudança de religião, apesar da pobreza e apesar de qualquer outra impossibilidade imaginada.
Ainda assim, nos primeiros anos, o pai alertava a jovem esposa para os hábitos estranhos do marido, como sair sem dizer para onde ia ou quando voltava.
Ela lembrava, carregando no sotaque:
– Mas Ifána, eu sabia que ele ia buscá o jornal. Ele sempre fazia assim…
AMOR
Apesar da diferença de idades, viveram bem, em perfeita harmonia.
Mas, como era de se esperar, não tiveram filhos. Bem, e não parecia que esses fizessem falta.
Trabalhavam, cuidavam da casa, do jardim e da horta. Ele trabalhava no Correio, ela costurava para fora.
Quando ficava com muitas costuras, Otacílio auxiliava Irma na lida doméstica.
E, findo o trabalho exaustivo pelo acúmulo de panos, linhas e freguesas, sugeria que saíssem, ela precisava descansar, relaxar.
Essa saída poderia ser uma caminhada, uma visita, enfim, qualquer coisa que trouxesse algum alívio, um pouco de descanso.
– Era uma fida boa aquela, Ifána!
A PARTIDA
Mas, como também era de se esperar, ele veio a falecer antes dela.
Partiu após o convívio com uma enfermidade prolongada, sobre a qual não vale a pena escrever.
Importa que ela cuidou dele com carinho e dedicação.
Acompanhou o esposo nas idas ao médico, tratou dele em casa, equilibrou a alimentação – eles, os dois, acreditavam que a saúde estava relacionada àquilo que ingerimos –, organizou as contas, enfim, passou a tomar conta de tudo.
Verdade era que, antes da doença, ela já tinha muita autonomia.
Como ele, saía sozinha, visitava amigas ou ia para Teotônia, sua cidade natal.
E sempre que podiam – e tinham vontade – faziam essas coisas juntos.
A doença conviveu com os dois por algum tempo. Depois, levou Otacílio.
Irma ficou só. Continuou morando na casa em que os dois viveram.
IRMA
Ainda é uma mulher risonha – sorri com os lábios e, muito importante, com os olhos.
O sorriso dos olhos é sempre o mais importante.
Ainda faz pão no forno de barro construído pelo marido e planta ervas e flores no jardim. Colhe laranjas nas árvores que plantaram nos fundos da casa.
– A chente era feliz, Ifána! Tudo era muito bom.
Até hoje, costuma ouvir com paciência os tumultos amorosos de suas amigas mais jovens – tem várias.
E responde contando:
– Naquele tempo, não era fácil pra mim e o Otacílio.
Mas a chente tinha que fazê as coisas a chente mesmo. E tinha que ser franco um com o outro.
Se o Otacílio não me ajudava, eu não podia terminá as costura… E eu também não podia querê que ele ficasse o dia todo comigo.
Isso eu nem gostava! – e um gesto enérgico da mão em frente ao rosto acompanha a última frase.
Quando vou visitá-la, ela faz pãezinhos dourados e, se pouso lá, me oferece cobertas com cheiro de sol.
Os olhos escuros brilham e o corpo magro não pára, como no tempo do Otacílio.
Quase não frequenta a sala de estar, mas está sempre na pequena cozinha ou no quarto de costura.
Sim, porque Irma ainda costura para fora. Pouca coisa e só para algumas amigas.
Também tricota casaquinhos e sapatinhos para oferecer a casas que abrigam crianças órfãs.
Chega a levar várias sacolas com pequenas roupinhas, dádivas que parecem deixá-la mais feliz que as crianças.
E, embora não goste de trabalhar quando recebe uma visita, às vezes me pede licença e segue tricotando, caso contrário a quantidade de roupinhas que planejou levar não ficará pronta.
– A chente tem que seguir em frente, Ifána!
14.04.2009 – Porto Alegre, minha casa
Nota:
- Leia a crônica Bom dia! que, também, compõe a coletânea Crônicas de Mulheres ao Sul do Brasil. Clique no link a seguir: < Mulheres ao sul do Brasil>.