Camélia - flor Imagem de Gaz D in Pixabay - 2022
Camélia - Imagem de Gaz D in Pixabay - 2022
O lugar da mulher é no movimento abolicionista.
História e suas manas

Miriam Zanutti nos apresenta Alice Clapp.
Confira!

Camelia-flor-Imagem-de-Beverly-Buckley-in-Pixabay-2020

Sabemos que, atualmente, mulheres ocupam os espaços públicos com muita habilidade e competência, mas, nem sempre, foi assim.

Este lugar tão desejado, fruto de conquistas e persistências, tem a presença de mulheres alterando sua dinâmica e sua paisagem.

Existem histórias trazidas ao público de como as mulheres se engajaram em lutas sociais e desobstruíram políticas engessadas que não permitiam uma vida mais humana, entre elas, a tão repudiada escravidão.

Podemos identificar o abolicionismo como o movimento social mais importante do Brasil do século XIX.
O movimento abolicionista contou com a participação de centenas de mulheres, nos teatros, nas ruas, nas quermesses, no associativismo político.
A presença delas fez toda diferença.

Entre tantas, descobrimos uma jovem nascida no Rio de Janeiro no dia 8 de dezembro de 1863, Alice Clapp.

Ela era filha de João Fernandes Clapp e de Joanna Jardim Basílio Clapp.
Era a primogênita dos sete filhos do casal.

A participação de Alice no movimento abolicionista não aconteceu por acaso.
O seu pai foi um dos nomes mais destacados do abolicionismo na Corte.
Por ora, não vamos falar de João Clapp, a menina é nossa protagonista.

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ALICE CLAPP
O LUGAR DA MULHER É NO MOVIMENTO ABOLICIONISTA 

Dentro de casa, em Niterói, Alice conviveu com escravos, pois o lar serviu de refúgio para abrigá-los da hostil escravidão.

Conhecido como Quilombo Clapp, a residência de Alice ajudou a formar o caráter da família.

Vamos imaginar as casas e as fazendas onde o trato com os escravos tornava o ambiente pesado e as crianças conviviam com a estupidez e o sofrimento da escravidão.
Se, mentalmente, conseguirmos fazer esse exercício comparando um ambiente de maus tratos e com outro, onde havia um convívio mais humano, concluiremos uma vivência diferenciada com as crianças crescendo mais aptas a combaterem a escravidão.
Afinal, tudo começa em casa.

João Clapp - detalhe de homenagem póstuma feita ao abolicionista por Ângelo Agustini
João Clapp – detalhe de homenagem póstuma feita ao abolicionista por Ângelo Agustini

O movimento histórico descrito como abolição, muitas vezes, é interpretado como um único processo que envolve o movimento abolicionista, a abolição e o pós-abolicionismo.

 Alice Clapp participou efetivamente da primeira fase: o movimento abolicionista.

A força da mulher no abolicionismo permitiu um papel protagonista e não somente subserviente.

Alice não foi a única menina, jovem, mulher a protagonizar o abolicionismo.
Diversas mulheres o apoiaram, visando dar um basta na desonra mais perversa que existiu na humanidade.

O CATECISMO DO BOM REPUBLICANO

Aos 13 anos de idade, Alice concluiu a tradução do Catecismo do Bom Republicano, um livreto de autoria do jornalista francês Elphège Boursin.

Na França pós revolução, era comum encontrar catecismos republicanos, prática literária de fácil compreensão com perguntas e respostas educando e formando a mentalidade política republicana.

No Brasil da metade do século XIX, o espírito do tempo se afeiçoava ao republicanismo em que seus adeptos insistiam um novo regime para o país.

Mas por que Alice traduziu este livreto e o que  esse diz ao movimento abolicionista?

João Clapp era um fervoroso adepto dos ideais republicanos e da abolição total da escravidão, porém, não possuía o conhecimento da língua francesa que a filha recebera no Colégio Brazileiro, situado no bairro de Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro.

Muitos abolicionistas eram republicanos.
Alguns trechos do livreto expõem diretamente a cidadania em dissonância com o regime escravista
; se o Brasil adotasse a república não poderia permanecer com pessoas presas à escravidão.

Alice, com sua formação e impelida pelo ideal abolicionista, trouxe ao público a tradução do livreto para o português.

Alice Clapp -tradução Catechismo Republicano
Recorte de imagem cedida pela autora. Edição datada de 1877.

Antes da Revolução Francesa, o camponês era também escravo?
Estava em um vergonhoso servilismo.
O homem do campo era proprietário?
Não, não o podia ser.
Quem o fez livre?
A revolução francesa
.”

Estas são algumas das perguntas e respostas do catecismo.
Outras expõem os ideais do lema da revolução,
Liberté, Égalité e Fraternité:

O que é a igualdade?
É o direito natural, semelhante, igual, de todos os cidadãos, sem distinção de nascimento, fortuna ou de posição social, de ser protegido ou castigado pela mesma lei pelos mesmos atos.
Qual é a mais preciosa de todas as liberdades?
É a liberdade individual.
O que é a fraternidade?
É a amizade, é o auxílio que os republicanos como irmãos devem prestar entre si.
Fraternidade quer ainda dizer: unidade republicana e humanidade.”

A tradução, custeada por seu pai, foi publicada em 1877 e contou com 5 mil exemplares.
Todos os impressos foram entregues – gratuitamente – para redações de periódicos da época, comerciantes, abolicionistas, famílias simpatizantes da causa, entre outros.
Na Biblioteca Nacional, consta um exemplar.

Dando sequência à sua ação intelectual, Alice traduziu o livro do historiador inglês William Hepworth Dixon, A Suíça Contemporânea.
Esta obra não foi publicada, possivelmente pelos custos, pois fora traduzida logo após o Catecismo.

O livro apresentava a vida comunal dos suíços e dizia sobre república e  liberdade, temas constantes na vida abolicionista de Alice.

Não menos importante, Alice traduziu um texto em francês, língua de sua predileção, sobre a contradição em ser cristão e apoiar a escravidão, transcrevo uma parte deste texto publicado no periódico Gazeta da Tarde em 1881:

“Entre os inúmeros benefícios do cristianismo deve-se contar a abolição da escravidão.
Jesus veio livrar o mundo deste excesso de desonra e de miséria proclamando a igualdade de todos os homens como orçados pelo mesmo Cristo.”

             Alice , através de suas traduções, tinha o objetivo de comunicar à sociedade os malefícios da escravidão, de  trazer escritos de autores estrangeiros e de reforçar uma nova perspectiva política incluindo a libertação dos escravizados.

MULHERES E ABOLICONISMO: UMA ABORDAGEM

As mulheres sempre estiveram presentes em grandes eventos históricos de lutas e conquistas.

Não se pode negar sua participação efetiva no espaço público, embora entendamos ser este um espaço entendido como do reino masculino.
Um espaço onde o corpo feminino, tanto na sua estética como na sua natureza, sofreu regramentos pelo ser dominante, o homem.

A narrativa da história, em geral, anulou a luz histórica das mulheres.

À mulher, não coube ser escrita; o rei é o homem, a rainha, sua súdita.

“[…] embora milhões de mulheres tenham vivido no passado (na Grécia, em Roma, na Idade Média, na África, nas Américas…), poucas aparecem na história, isto é, nos textos de história.

As mulheres, para citarmos uma frase, foram “escondidas da história”, ou seja, sistematicamente excluídas da maioria dos relatos de historiadores.
(JENKIS, 2007, p.26)”

Este aspecto de predominância masculina no espaço público negava às mulheres o exercício de suas potencialidades políticas. Potências, capazes de fortalecer causas como a luta pela abolição da escravidão.

Ocorre que, mulheres com seus dons, inteligência e força não poderiam estabelecer-se apenas no ambiente privado de seus lares.
Deveriam comparecer e ocupar o lado de fora desses, o espaço público.

Como as mulheres se manteriam apenas nos lares em pleno ardor do movimento abolicionista no Rio de Janeiro, capital do Império, palco de grandes decisões para todo país?

            Ângela Alonso explica que o associativismo político feminino alterou o modo da mulher exprimir os seus ideais e, consequentemente,  de atuar em causas sociais.

Uma das vias que caracterizaram as sociedades abolicionistas femininas foi a filantrópica.

Agregada pela vertente religiosa; “entrar de braço dado” com seus maridos, pais ou irmãos em eventos políticos abolicionistas e artística, apresentação nos teatros por suas habilidades como atrizes, escritoras e cantoras, constituíram o modus operandi feminino.

Ao unir vontade e determinação, mulheres buscaram acesso em periódicos, participaram de conferências-concerto cantando, regendo, declamando poemas e dedilhando as teclas do ébano e marfim.
Tais encontros não eram apenas nos lares, mas, principalmente, nos teatros.

Estava aberta a exposição feminina!
E sem elas, a abolição seria mais tardia.

Ao fundar uma associação abolicionista, as mulheres lutaram pelos escravos e por si mesmas.

Apesar de não objetivarem criar sociedades abolicionistas como pretexto de lutarem em causa própria, essas associações tornaram-se um ambiente propício de expressão das suas realidades.

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SOCIEDADES ABOLICIONISTAS

No Rio de Janeiro, as sociedades abolicionistas tiveram início no ano de 1840, quando um grupo de profissionais do setor público percebeu a falta de espaços para tratar questões referentes ao combate á escravidão nos ambientes políticos.

A dura realidade da escravidão exigia o comprometimento de homens e de mulheres para trabalharem em conjunto, robustecendo a causa.

As associações tomaram fôlego e o boom de seus surgimentos e atividades aconteceu na década de 1880.

A Sociedade Libertadora Sete de Setembro

A primeira associação abolicionista que contou com a presença de mulheres foi a Sociedade Libertadora Sete de Setembro, fundada em 1869, contando com 512 sócios, entre eles 15 mulheres.

Era uma sociedade com o maior número de integrantes pertencentes à elite social da época.
Essa foi uma característica comum ás primeiras associações.

À medida em que cresceram, admitiram integrantes pertencentes a diferentes camadas sociais, contando, inclusive, com a presença de crianças.

É importante ressaltar que, após o surgimento da Confederação Abolicionista em 1883, o número de sociedades abolicionistas aumentou consideravelmente, incluindo as femininas.

A mulher permanecia à sua condição do lar, no entanto, a escravidão estava se esgotando e o movimento abolicionista proporcionou adesão do público feminino, na lógica: do quanto mais adeptos, melhor.

O periódico A Novidade, por exemplo, reconheceu a presença da mulher na causa abolicionista ressaltando sua inteligência e virtude, elementos considerados essenciais, exprimindo sua potencialidade contra a escravatura. Leia:

“A emancipação da mulher é um fato.
Na evolução do século a mulher demonstra por si só de quanto é capaz.
Não há empresa, a mais arriscada, em que ela não tenha-se esforçado por demonstrar que é tão capaz de leva-la á cabo, como o homem.

[…] A evolução transformou a mulher completamente: de tímida e humilde que era outrora converteu-se, aos raios da civilização, em arrojada companheira do homem, capaz de ajudá-lo tanto no vasto campo das ciências como nas industrias, e em todos os elementos que constituem a vitalidade dos povos modernos.

[…] No Brasil debate-se presentemente uma alta questão que tem pendente de si o seu glorioso futuro.

A escravatura, esse reconhecido cancro que destrói e corrompe nossa sociedade; muro de pedra que detém a marcha do progresso de nosso país e cuja solução é desprezada ou temida por nossos governos que nada fazem em seu favor e pelos homens do poder que pouco se importam com esses míseros seres que gemem nas senzalas.

[…] A abolição, a única solução almejada pelo povo em prol dos escravos, entra hoje em uma nova fase: A mulher brasileira entendeu que devia prestar o seu valioso apoio aos pobres escravos.

(A Novidade, julho de 1883)”

Tal descrição do redator Bernardo Coelho de Faria aplica a participação da mulher como sine qua non, não podendo mais destiná-la apenas ao espaço privado.

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ALICE: UMA JOVEM ABOLICIONISTA

Alice foi uma das brasileiras com perfil próprio que combateu a escravidão.

Esteve no palco do teatro São Luiz  – no centro do Rio de Janeiro – tocando piano nas conferências abolicionistas da Associação Central Emancipadora, cantou nos jantares abolicionistas em sua residência e ajudou a fundar o Clube das Senhoras Abolicionistas em junho de 1883.

Editores do periódico O Sorriso a convidaram para ser colaboradora efetiva do jornal em 1880.

Alice foi muito solicitada pelas sociedades abolicionistas e simpatizantes da causa.
A pesquisa indica que sempre comparecia às festividades em prol da abolição e que doava presentes para arrecadar fundos para alforriar escravos.

Os periódicos Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias, O Paiz, Revista Illustrada – entre outros do Rio de Janeiro e de outras províncias – parabenizavam João Clapp pela filha tão prodigiosa.

Camélia - flor Imagem de Gaz D in Pixabay - 2022
Camélia – Imagem de Gaz D in Pixabay – 2022

Infelizmente, Alice não viu o seu sonho se concretizar.
Ela faleceu de tuberculose pulmonar aos 22 anos de idade, no dia 26 de outubro de 1886.

O seu sepultamento contou com a participação de muitos abolicionistas, como José do Patrocínio e sua esposa Bibi, Ubaldino do Amaral, Evaristo Costa, Ignacio von Doelinger.

Seu falecimento repercutiu pesadamente no ambiente abolicionista.
Talvez, até contribuiu para o movimento tomar um fôlego a mais; pois os últimos quatro anos que antecederam o fim da escravidão (1888) foram marcados por tensões e agressões contínuas aos abolicionistas em várias províncias do país.

Ao chegar o dia 13 de maio, a abolição aconteceu e os festejos se replicaram.

Lei Áurea
Documento – Lei Áurea

Nos anos seguintes, festas comemorando a Abolição da escravidão no Brasil ocorreram na Praça da República, no Rio de Janeiro.
Uma dessas festas, em especial, em 1890, contou com um grande préstito, com cavalaria, carros alegóricos, bandas e discursos acalorados.

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Camelia-Imagem-de-BeverlyBuckleyinPixabay-2020

Alice não foi esquecida.
No carro alegórico carregado de flâmulas, uma delas constava o seu nome e outra trazia nome do Quilombo Clapp.

O jornal O Paiz declarou a importância de Alice para o movimento e a sua presença espiritual percebida pela grandeza do desfile:

“Alice Clapp assistia à entrada de suas irmãs no pavilhão dos abolicionistas”.

Alice não ocultada, mas visível para todos;

não apenas cosendo roupinhas para os irmãos, mas doando prendas para libertar escravos.

Alice no espaço público, pois o lugar dela foi no movimento abolicionista.

Um viva às diversas ‘Alices’ libertadoras de escravos!

A  AUTORA

Miriam Zanutti

Miriam Zanutti
Doutoranda em História Social pela PUCRJ. Mestre em Teologia, Mestre em História pela Universo, especialista em Africanidades. Casada com músico mineiro, André de Oliveira, carioca, torcedora do Fluminense e apaixonada pelos animais.

marca Histori-se

Referências Bibliográficas

ALONSO, Ângela. Associativismo avant la lettre: as sociedades pela abolição da escravidão do Brasil oitocentista. Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 28, set/dez 2011, pp.166-199. Disponível em: Associativismo Acesso em: 15 abr. 2020.

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JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2007.

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NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

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Imagem de João Clapp – original em:
Angelo Agostini-  in  revista Don Quixote, Ano 8, nº 162, 20/12/1902.

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