Fotografia - Acervo Canva.
Diadorim

Vera Haas apresenta a crônica O Temporal.

Confira!
Cena do filme 'E as chuvas chegaram', datado de 1939.
Cena do filme “E as chuvas chegaram” .

O TEMPORAL

               Manhã de 23 de outubro de 2013.

Como Ivana costumava fazer, saiu às 6:04 da estação Rodoviária de Porto Alegre com destino à escola em Sapucaia do Sul. O vento estava forte, os raios riscavam o céu. Chovia.

 Dentro do trem, todos se conheciam, embora não soubessem nomes, destino etc.

Encontravam-se sempre no mesmo horário. Alguns conversavam, outros dormiam aproveitando os minutos. Muitos consultavam os celulares.

O vento ficara mais intenso. Os raios produziam estouros secos.

De repente, uma queda de luz, o trem parou.

Murmúrios transformaram-se em palavras animadoras com a volta da energia e a retomada da viagem.
Poucos minutos depois, entre as estações Mathias Velho e São Luiz, houve nova parada. O condutor avisou:

“Por motivos técnicos, ficaremos parados alguns minutos”.

 Aguardaram um pouco já preocupados: tinham horários a cumprir. Ivana iniciaria uma série de seminários sobre os autores da Geração de 45 com os alunos do segundo ano do ensino médio.

O trem movimentou-se, e um passageiro percebeu: “Ele está voltando!” Na estação Mathias Velho, novo aviso:

“Por motivos técnicos, não podemos prosseguir viagem. Todos devem desembarcar”.

Saíram do trem imaginando que viria nova condução.

Vazios, os vagões afastaram-se, e os usuários viram a fumaça que acompanhava os trilhos sem terem certeza de onde ela vinha.
A chuva impedia a visão, descia torrencialmente.
Os raios e trovões sucediam-se entre estouros e estrondos assustadores.

O condutor do veículo seguinte manteve a orientação:

“Por motivos técnicos, não podemos prosseguir viagem. Todos devem desembarcar”.

A estação recebeu nova leva de gente.
Só então as pessoas perceberam que estavam sem ter como se deslocar ao local de trabalho, ou de volta a suas casas.

Ivana ainda não conseguira falar com a escola nem mesmo com o marido.
Lembrou de Ângela: a amiga estava de férias. Ainda bem, pensou consigo mesma. Ela ficaria aflita por causa do horário da fábrica.
Por outro lado, quem saberia onde ela estava sob aquela água toda? Saíra para ir ao colégio…
Se os telefones estavam com problemas de rede, era preciso buscar algum outro transporte, sair daquela plataforma alta, varrida por vento e água.

Apertou a bolsa contra o corpo e, após muitos “com licença”, desceu da estação do metrô sem saber exatamente para que lado ir, a sombrinha logo inutilizada pela ventania.

Com a intensa quantidade de chuva, águas turvas subiam as calçadas.

Algumas sombrinhas quebravam ou ficavam retorcidas, de modo a não proteger quem as usava; calças e vestidos estavam molhados; os sapatos, encharcados de água e barro.

Ivana encolheu-se, era difícil caminhar.

Homens e mulheres espremiam-se buscando um telhado sob o qual se proteger, ou uma lancheria para se abrigar. Tudo lotado.
Às cotoveladas, os impacientes exigiam um espaço sob o toldo da padaria.
Outros, preocupados com suas obrigações, tentavam a todo custo embarcar no ônibus com portas abertas e gente pendurada nos degraus do veículo.
Houve momento em que uma gritaria denunciou as ratazanas que disputaram as calçadas com os passantes, todos horrorizados com a quantidade de águas.

Ivana arregalou os olhos e não pode correr.

Sem saber o que fazer, deu-se conta que, de fato, não tinha a quem recorrer. E sequer conhecia bem aquela localidade.
Observou uma senhora forte, de estatura baixa, que movimentava o celular com certo nervosismo e apertava os olhos por trás dos óculos. Será que ela tinha rede?

Aproximou-se dela e perguntou. Não, ela não tinha. Então, Ivana explicou que provavelmente havia um problema nas redes.

Paradas num canto do viaduto sob o qual várias pessoas procuravam abrigar-se, foram abordadas por um rapaz magricelo, curvado sob o peso de uma mochila, e uma moça de cabelos muito curtos e gestos enérgicos.

Assim, Ivana conheceu uma professora do município de Sapucaia, um estudante da Unisinos e uma enfermeira a caminho do Hospital Centenário de São Leopoldo.

Após a certeza de que não havia telefonia funcionando, resolveram agir.

Trocaram ideias sobre como sair dali e procuraram o guarda-chuva menos inflacionado – mas forte o suficiente -.
Esperaram a chuva acalmar.
Conseguiram um café morno para beber.
Novamente debateram como sair daquela situação, divergiram em alguns pontos, mas preferiram se manter juntos.

Optaram por arriscar uma caminhada até a BR 116.
Lá, cerca de cem pessoas aguardavam um ônibus que demorou a chegar – outro transporte hiperlotado.

Ninguém desceu, ninguém embarcou.

Finalmente conseguiram usar o celular para falar com os supervisores ou chefes, já cientes do caos instaurado na Região Metropolitana por causa do temporal.
Também deram notícias aos familiares e, no caso do rapaz, aos colegas de apartamento.
As informações que receberam mostravam uma extensão de problemas e estragos grandes, como imaginavam.

Havia quem falasse em tornado.

Aulas foram canceladas; equipes remontadas nos hospitais para atender às emergências; a ala de um hospital e o auditório da escola onde Ivana lecionava estavam parcialmente destelhados;
famílias estavam sendo abrigadas em ginásios; terrenos haviam cedido e desmoronado soterrando casas; bombeiros trabalhavam em busca de sobreviventes…

Então, o grupo tomou o mesmo rumo.

Quando embarcaram no trem para retornar a suas casas, já eram mais de dez horas. Na BR, os carros formavam filas longas, nada se mexia.
Dentro do trem, as expressões de cansaço eram suavizadas por alguns passageiros incapazes de perder o bom humor.
Primeiro desceram a professora e a enfermeira.
Depois o estudante, Ivana desceria no fim da linha.

Ela voltava a Porto Alegre com certa alegria íntima.

O apoio mútuo entre as pessoas daquele grupo inesperado lhes dera ânimo para enfrentar uma situação desastrosa, perigosa mesmo.
Sentira medo da cortina de água, da violência dos ventos e da luz assustadora dos raios caindo perto da estação do metrô.
Tivera pavor daqueles ratos desesperados e enormes.

Foram horas de tensão entre desconhecidos.

Olhou ao longo dos bancos: agora, a viagem de volta entre passageiros que comentavam o mesmo temporal.
As emoções que experimentava fizeram-na pensar em textos de Clarice Lispector e Eduardo Galeano.

Porque amor é pão entre estranhos é preciso dizer a alguém que estou aqui.
Que estamos aqui.

A  AUTORA

Vera Haas
Vera Haas
Vera Haas e Frederico

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NOTA

  • Na narrativa, O Temporal, a autora refere-se ao conto “A repartição dos pães” (in Legião estrangeira), de Clarice Lispector, e
    à narração “Noite de natal” (in O livro dos abraços), de Eduardo Galeano.
  • O filme “E as chuvas chegaram” é datado de 1939. Imagem cedida pela autora.
  • Imagem destacada – Autoria não conhecida. Fotografia presente no acervo do app Canva.

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