AS DORES DAS MARIAS E A PROPOSTA DE AMOR
Introdução
A análise que se segue é feita a partir de intertextos culturais e de significantes importantes para a compreensão dos perfis das Musas, personagens apresentadas por Tom Zé na obra Estudando o pagode na opereta SegregaMulher e Amor, cujo tema trata da segregação da Mulher na história e dialoga sobre a relação entre os gêneros até os dias atuais, objeto de discussão nesta série de textos.
Na edição anterior, analisamos a personagem Rebeca do Mato , como referência histórica e cultural da nossa herança judaico-cristã e como significante da escravidão feminina para exemplificar o papel da Mulher na sociedade patriarcal ao longo da história.
O homem encenado na opereta reconhece os maus-tratos contra a Mulher no passado e lhe faz um convite para um “novo tipo de amor”.
Neste post, veremos se a proposta de amor dele é realmente sincera e
se de fato é um “novo contrato”.
Proposta de Amor
NO JARDIM DE AFRODITE
As Fadas
Na apresentação da cena III, “Novo amor”, canção “Proposta de amor”, aparece a fada Adriana Bem-Ciel no Jardim de Afrodite, que rege uma banda imaginária de pagode.
As fadas tiveram origem nas tria Fata romana ou nas Três Parcas gregas, elas eram responsáveis pela vida, casamento e morte dos indivíduos.
A fada Adriana Bem-Ciel é a regente da banda no Jardim de Afrodite, reconhecida deusa da beleza, do amor e da sedução.
Com o tempo, as Musas encarnaram a imagem nostálgica da fada que trazia o alívio da dor, a cura para as feridas psíquicas e a inspiração para as grandes obras.
Assim, é a fada Adriana Bem-Ciel que age como assessora de Tom Zé e o inspira a compor e a reger uma banda de pagode que dá voz à proposta que o personagem Maneco Tatit (representando o homem) faz à Mulher
A Proposta
.O homem reconhece que inventou as religiões para castrar a sexualidade feminina, e que a relação entre os gêneros foi de fato injusta e desonesta.
Nesse novo contrato, ele oferece um acordo de paz para a Mulher:
Ó garota,
Eu contra ti, já inventei os deuses, a lei,
E pela carne do pecado te condenei
Tô convencido que essa guerra suja foi longe demais
E te ofereço um acordo de paz.
Assim será!
Após fazer a proposta de amor, o homem espera da Mulher uma “resposta de amor e afeto”; porém,o autor usa figuras de linguagem que denunciam o velho discurso conservador do homem,
ou seja, ele não abre mão dos papéis pré-estabelecidos:
Uma cartinha de amor
Politicamente correta
Você de saia, eu de calça,
Felicidade será nossa meta.
Assim será!
Ao propor um relacionamento em que a Mulher use “saia” e o homem “calça”, Tom Zé denuncia que o conservadorismo do homem não mudou, ele deseja a volta dos papéis feminino e masculino bem delimitados na sociedade e nas relações entre os gêneros.
O homem não está satisfeito com o recente empoderamento feminino e com a conquistada liberdade sexual.
Pode-se deduzir que o homem crê que, se os antigos papéis forem retomados, homens e mulheres alcançarão a paz e a felicidade.
Novamente, ele atribui a culpa à Mulher, pelas brigas e desarmonias do casal!
A MULHER DE BATH
A cena IV “A mulher de Bath” introduz a canção Quero Pensar (a mulher de Bath), ambas trazem nos respectivos títulos uma referência à obra Os contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer (entre 1386-1453).
Segundo o texto A mulher de Bath, a protagonista chama-se Alice.
Ele narra a história de uma viúva libertária e sua relação infernal com seus cinco maridos e as estratégias que utilizou para conquistá-los e vencer na “guerra do amor”.
Embora não estivesse mais em “idade fértil”, ela estava em busca do sexto marido!
Segundo ela, o êxito dependia da soberania feminina e de seu pleito por liberdade sexual.
Imaginem esse discurso feminista em plena Inglaterra da Idade Média!
A personagem desmitifica a necessidade de ser cortejada pelo homem e coloca-se no domínio da situação amorosa.
Mesmo que à época não questionasse as estruturas sociais dos papéis dos gêneros, Alice defendia validar o seu próprio prazer sexual, pelo ato em si!
E utilizava os próprios preceitos religiosos para validar o seu discurso.
Ela afirmava que o prazer sexual não era algo exclusivo aos homens.
Assim, a mulher de Bath virou signo da mulher experiente e independente, que não se deixa subjugar pelo homem, mas que tem controle sobre seu próprio corpo.
MÃE JUSSARA SAVEIRA
Esse intertexto trazido pelo autor ajuda a caracterizar a psiquê da próxima personagem a entrar em cena, a rezadeira Mãe Jussara Saveira, importante como conselheira experiente e condutora das mulheres na relação com o homem.
Ela sai do coro para afrontá-lo:
Assim será o quê, seu vagabundo?!
Primeiramente esse seu tititi de politicamente pro eleitorado.
E que diabo de cachaça tem a saia com a calça?
Parece até que o velho algoz
Quer pegar nós
Cochilando e apertar o cós.
A exemplo das demais rezadeiras apresentadas nas análises anteriores, a rezadeira Mãe Jussara Saveira é persistente na sua defesa a favor da Mulher.
Entretanto, é através do substantivo “Mãe” com letra maiúscula que o autor sugere o poder e a autoridade da personagem para educar e conduzir a Mulher.
Mãe de Santo
Aqui, o significante “Mãe” também nos remete à expressão “Mãe de Santo”, oriunda da cultura religiosa africana, a saber, a orientadora dos Orixás.
Elas tinham um papel central de autoridade na comunidade negra e eram as responsáveis espirituais pela edificação das casas e dos terreiros.
Desse modo, Tom Zé utiliza a autoridade do significante da Mãe espiritual que protegia os segregados, no embate da Mulher com o homem, que insiste em maltratá-la.
O nome “Juçara” variou para “Jussara”, é de origem tupi.
O significado é uma palmeira de grandes espinhos, que era usada na fabricação das casas.
As trincheiras feitas de juçaras eram tão impenetráveis e seguras que não podiam ser rompidas, a não ser por fogo!
Mais uma vez, o significante realça a força e a resistência da Mãe Jussara no combate à violência do patriarcado!
O substantivo “Saveiro” significa “homem que conduz um grande barco”; entretanto, utilizado como nome próprio (pela presença da maiúscula) denota uma profissão tipicamente masculina.
Através dessa personagem, Tom Zé desmonta lugares-comuns relativos aos papéis sociais.
A rezadeira Mãe Jussara Saveira tem a força necessária para desafiar o homem na sua maliciosa proposta de amor e a liderança para alertar à Mulher a se precaver das investidas maldosas dele.
Tanto a mulher de Bath quanto a Mãe Jussara representam mulheres fortes e independentes, à frente de seus tempos, que não se deixaram subjugar pelos valores machistas da sociedade do patriarcado, mas que resistiram e lutaram pela liberdade de ser.
Jussara Silveira
Conforme analogias feitas em edições anteriores, em que se inferiu que Tom Zé escolheu perfis literários que tivessem nomes correlatos às suas Musas da MPB, a saber, nessa edição, a escolha do significante “Jussara Saveira” parece remeter à cantora baiana Jussara Silveira.
BETE-CALLA-OS-MARES
Ainda na mesma canção surge outra personagem que, assumindo a voz da Mulher, pede um tempo para pensar.
A personagem é denominada “comadre Bete-Calla-os-Mares”.
O neologismo constitui o nome da personagem, conforme se vê pelo uso das maiúsculas.
O substantivo comadre, do latim commater, refere-se à madrinha em relação aos pais da criança e implica intimidade ou proximidade.
Já o apelido Bete é alcunha de Elizabete, e chamar alguém pelo apelido também denota intimidade.
Maria Callas
De acordo com essa inferência, parece que o segundo nome “Callas” é uma evocação à cantora lírica Maria Callas (séc. XX).
Vale lembrar que Tom Zé é formado em Música, daí a intimidade ao chamar a sua personagem de comadre Bete.
Maria Callas era considerada a maior soprano de todos os tempos, graças à amplitude de sua voz!
Tornou-se famosa também por rivalizar com maestros e colegas trabalho por suas convicções estéticas, subvertendo as regras do canto lírico, e por sua vida pessoal conturbada com o marido desleal.
Essas informações parecem justificar o segundo nome da personagem da opereta, “Calla-os-Mares”, que demonstra a força da Mulher no enfrentamento contra as diversas ondas de agressões que sobrevêm diariamente contra a Mulher, tanto no âmbito pessoal quanto no profissional.
As cinzas mortais da cantora lírica Maria Callas foram lançadas ao mar.
E usar essa alegoria para compor o perfil da personagem que ousou “calar os mares” parece atribuir à Mulher uma força muito grande e
uma potente voz contestadora contra um sistema de violências que busca sempre calar a voz da Mulher.
Maria Callas interpretou importantes personagens, dentre os quais, Médée, de Luigi Cherubini, como uma Medeia moderna, mulher desonrada e abandonada pelo companheiro.
A HISTÓRIA CONTINUA
Na próxima edição, passaremos à análise das personagens do Segundo Ato, “Latifundiários do prazer” e faremos uma imersão na memória cultural de personagens literárias evocadas por Tom Zé, personas que representam mulheres abusadas e violentadas em nome do amor.
O autor batizou uma delas como Teresa-Medeia.
Quais outras personagens segregadas emergem da sua memória cultural?
Vamos acolher outras personagens na próxima edição?
Leia o próximo capítulo.
Clique no link a seguir < As dores das Medeias universais >.
Referências:
- Imagem de Mãe Meninazinha de Oxum , considerada patrimônio imaterial de São João de Meriti ( RJ – Brasil). Foto Isabela Kassow – Diadorim Ideias. Veja no site < Mapa da Cultura>.
- Imagem cantora Jussara Silveira em < Itaú Cultural – Rumos da Música >.
Referências bibliográficas
- BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros [coleção estudos, dirigidos por J. Guinsburg].São Paulo: Perspectiva,1983.
- CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário das palavras portuguesas de origem tupi. São Paulo: melhoramentos,1986.
- JULIEN, Nadia. Dicionário Rideel de Mitologia [tradução de Denise Radonovic Vieira]. 1 edição, São Paulo:Ridel,2005.
- LAFFONT, Roberto. Koobbes Complete Ópera Book. [tradução Clóvis Marques].Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,1987.
- SHMIDT, Joel. Dicionário de mitologia grega e romana. [tradutor João Domingos; Rev.de tradução José Ribeiro Ferreira]. Lisboa: Edições 70,1985.