Paisagem cerrado mineiro - Arabescko
Fotografia cedida por Arabescko - moda sustentável.

As Marias e o banquete é o último post de uma sequência de textos analíticos que se propõe a analisar os perfis femininos na opereta de Tom Zé, Estudando o pagode- na opereta SegregaMulher e Amor.

Estes posts foram apresentados em formato de capítulos nesta revista/site.

  1. As dores das marias
  2. Mônica-Sol-Musa
  3. Rebeca do Mato
  4. Proposta de Amor
  5. As dores das Medeias Universais
  6. O canto de dor das Marias

Os perfis e rubricas apresentados nos posts anteriores contextualizaram historicamente a perpetuação das tradições judaico-cristãs (através da articulação de significantes que formam uma cadeia de associações de perfis femininos), trazendo à tona um enunciado do modo como a Mulher veio ao mundo, de acordo com a mitologia cristã: da costela do homem e como estigma da origem do Mal.

Após a imputação da culpa pelo pecado original, ela foi constituída social e culturalmente com significados que remetem a estereótipos inconscientes, pejorativos e estigmatizantes.

Através dos séculos, outros dogmas do cristianismo e códigos de gênero contribuíram para a segregação da Mulher: a alcunha de frágil, louca e incapaz de viver sem a subordinação política e a força do patriarcado.

Apesar de todas as lutas históricas para se libertar da acusação e dos julgamentos, a Mulher vive a dissonância entre o prazer e a culpa.

Perséfone
Arte: Histori-se

Tom Zé faz uma incursão na memória cultural e no tempo para fazer emergir clássicas personagens literárias abusadas e violentadas em nome do Amor.
O autor usa a cultura grega e a arte literária para nos mostrar que não só a religião segrega a Mulher, mas toda a nossa cultura está impregnada de violência e segregação feminina.

Estudando o Pagode- Na Opereta Segrega Mulher e Amor
Capa do CD

A Mulher na  ONU

No Segundo Ato, Cena V, na ONU, a canção que trata do tema da segregação da Mulher é “Vibração da carne”.

Os já analisados personagens Teresa, Bete- Calla-os-Mares e Maneco Tatit retornam à cena.
Eles e os advogados discutem na ONU sobre a violência contra a sexualidade da Mulher:

“Toda vez pela primeira vez
Que o cara sai com a garota, logo ali
No bar tem um rali de tititi,
Amigos dele com ele, por ele.
De repente cara, ela encara um desaforo inocente – sente só[…]

Os versos acima demonstram uma violência sutil que as mulheres sofrem:

  • as piadas a respeito de seu corpo e sexualidade;
  • a maledicência sobre as intimidades de uma mulher quando compartilhada entre um grupo de homens que a julgam moralmente.

O linchamento moral é uma prática quando a Mulher se relaciona com vários homens de um mesmo grupo.

Arte: Histori-se

O personagem masculino Maneco Tatit diz que, desde criança, a Mulher enfrenta uma “dissimulada segregação” em que a sua sexualidade é tolhida através de “brincadeiras” e escárnios:

“Desde criança, a mulher
Enfrenta aquela
Dissimulada agressão:
Eram provérbios maldosos,
E duros, naquele tom brincalhão.
E na dureza do escárnio
Se o amor próprio se parte…
……………………………………
Pode interromper no corpo
Aquela natural vibração da carne,
Gozo da mulher, que se o cara
Não der atenção – é tarde”.

O recurso literário acima, utilizado pelo autor na segunda estrofe (as linhas pontilhadas que separam os versos), ajuda o leitor a vislumbrar o gozo da Mulher interrompido devido à falta de respeito para com seu corpo.

A desconfiança da Mulher em relação ao homem começa ainda na infância, nas relações familiares, em que a menina é tolhida em sua sexualidade: “menina, fecha as pernas”.

Ao sugerir provérbios maldosos que agridem a Mulher, o autor espera a cumplicidade do leitor(a), no sentido de evocar da memória mais violência: “Maria saia arriada, Joana calça abaixada”.

Você lembra de outros provérbios populares que escarnecem da sexualidade ou do sexo feminino?

É interessante ressaltar que o autor encena a Mulher reivindicando o direito ao prazer na ONU!

Essa instituição patriarcal de estatuto político é utilizada pelo autor para dar palco às pautas feministas, principalmente à denúncia de como a sexualidade feminina foi tolhida desde a infância.

 Imagem da campanha “UNA-SE! O Brasil das Mulheres"
Campanha “UNA-SE! O Brasil das Mulheres”.

O Arcanjo

Na canção “Prazer Carnal”, cena VII “O arcanjo XXI”, as mulheres são expulsas da ONU!

Mas Maneco Tatit sai em defesa da Mulher e argumenta que um ser humano completo só existe quando estão juntos um homem e uma mulher.

Essa alegoria política da expulsão da Mulher na ONU revela a falta de efetivas políticas sociais que defendam a Mulher, em pleno século XXI, contra a violência em todos os âmbitos e, também, que resolvam a precariedade de um espaço político/social que acolha as demandas femininas.

Pensem em tantas mulheres e crianças violentadas nas guerras provocadas pelos homens ao longo dos séculos e na violência que a Mulher sofre no seu dia-a-dia!

O significante Arcanjo na mitologia católica remete à autoridade religiosa que surge em situações que exigem a interferência divina para resolver questões de suma importância para a humanidade.

Tom Zé evoca esse poder divino para dar voz à Mulher contra as injustiças praticadas contra ela e para nos mostrar a importância vital da conciliação entre os gêneros.

O Arcanjo XXI, do Tarô, é  representado pela carta “O Mundo” e anuncia uma nova ordem.

Carta - O Mundo _ do tarot de Marselha
Carta O Mundo

A imagem no centro da carta é a de uma mulher.

Uma nova ordem mundial está por vir sob a liderança da Mulher!

A personagem Rebeca do Mato (significante judaico da submissão à ordem patriarcal) ressurge em cena e diz que o Arcanjo XXI exigiu que ficasse sob sua responsabilidade o “desenvolvimento simultâneo das complexidades do sexo e da razão”.

Após a fala, ela canta para o Conselho de segurança:

Prazer carnal,
Querem te afastar do amor;
Como sinal
De chama e chuva, enxofre e sal
Sacode a fera em fúria animal.

As rimas entre “Carnal e sal”, “sinal” e animal” estabelecem uma relação entre o sexo feminino e a condenação moral do prazer carnal para as mulheres pecadoras; bem como as expressão bíblicas “chama, chuva, enxofre e sal” denotam a ideia de condenação para aquelas que almejam o gozo carnal.

Apesar disso, Rebeca sonha com o prazer carnal aliado ao amor:

Mas apesar de toda essa vergonha
Com ele {o amor} ainda a alma sonha
Fiar a renda, cuja lenda
Deus há de cifrar
Fiar a renda, lenda,
Será deus quem decifrar.

Arte: Histori-se
A Mulher sonha com o amor pleno.

O homem será um deus SE decifrar o mistério do ser feminino, “cifrado por Deus”.

A figura de linguagem “fiar a renda” denota a paciência que a Mulher tem tido na espera secular para que o homem decifre o seu “segredo sagrado”, segundo sugere o autor da opereta.
Ou segundo Freud, afinal, o que querem as mulheres?

Nós queremos ser amadas e respeitadas nas nossas subjetividades.

Estátua de Ariadne
Ariadne – Obra de Johann Heinrich von Dannecker.

Maneco Tatit ressalta que se a Mulher cultivar a “vibração da carne” será julgada como “desvairada, possessa e meretriz”.

Outra vez, aparecem as históricas alcunhas moralistas.
Mas, ao final da canção, Maneco aparece para mostrar o céu e as estrelas para ilustrar a sua opinião sobre os direitos da Mulher em relação ao prazer sexual:

o céu e as estrelas estão igualmente sobre os gêneros, e por analogia, são elementos masculino e feminino;
ambos são elementos inseparáveis do mesmo espaço/tempo;
portanto, eles devem se reconciliar.

Foto – Ankee in Pexel – Canva

Ao final da canção, Rebeca e Tatit cantam juntos sobre a beleza do Amor,
o que parece encenar que homem e Mulher finalmente estão em conciliação.

Diotima

Imagem de Diotima de Mantinea
Diotima de Mantinea

No terceiro Ato da Cena, “A Mulher na UNE”, na canção “Beatles a granel” aparece outra personagem que dialoga com uma personagem universal.

A cena volta ao cenário do Julgamento: Maneco Tatit e Teresa levam Diotima de Mantineia para testemunhar em juízo.
Por analogia, a personagem da Opereta representa a sacerdotisa Diotima de Mantineia, da obra O banquete, de Platão.

O título da canção Beatles a granel faz intertexto com a canção dos Beatles feita para o mercado inglês.

O contexto histórico da canção da banda inglesa remete à revolução feminista dos anos 60 e
à participação das mulheres na cultura de massa desse produto cultural.

As jovens enlouquecidas exacerbaram seus desejos e sexualidade, sendo as principais responsáveis pelo sucesso internacional da banda e a massificação dos seus produtos culturais: canções que falavam de amor e cujas Musas eram mulheres reais, presentes na vida da banda inglesa.

Foto de Aris Leoven – Canva
Pelo direito à  sexualidade

Já a UNE (União Nacional dos Estudantes) representa todos os estudantes universitários do Brasil.
Sua história é repleta de lutas em favor da igualdade de direitos e contra todo tipo de repressão, especialmente durante o regime militar.

A UNE é colocada em cena para ilustrar a participação política das mulheres na luta contra a repressão sexual.

Afinal, a luta pelo direito à sexualidade também é um ato político.

Diotima é significante da mulher que Sócrates criou para explicar seu conceito de Amor e para ensinar a modéstia aos demais participantes do banquete. Ele faz apologia à Beleza Absoluta e explica que os homens desejam a imortalidade ganha através da procriação.

Havia uma discussão envolvendo reflexões sobre o Amor/Eros; porém, não contava com a presença do gênero feminino.
Foi necessário que Sócrates usasse uma personagem que representasse o gênero feminino na discussão filosófica sobre a natureza do Amor.

Do mesmo modo, Tom Zé usa diversas Musas da cultura ocidental para denunciar a segregação da Mulher.

Tom Zé apresenta novamente uma Musa da cultura ocidental (a Filosofia) para provocar a reflexão nos homens, entretanto, sobre a perspectiva do gênero feminino: o direito de amar, ser amada e sentir realização sexual.
Ou seja, a forma de operar do amor, mas, segundo o sentir do feminino.

Maneco Tatit canta com Diotima sobre o macho a cantar mentiras.

Isso indica que a Filosofia da sacerdotisa do amor pode elevar o conhecimento dos homens, assim como elevou o conhecimento do personagem Tatit (ou do autor Tom Zé), quanto às verdades sobre o Amor/Eros:

Olha aí o macho a cantar
Mentiras a desfiar […]
Tirando versos vai […]
Na velha lira, sua lira[…]
Delira ele, ele delira, ele delira

A lira é símbolo de poesia e instrumento musical preferido de Apolo, o significante grego do gênero masculino.
A imagem da lira se liga à figura do onipotente deus e ao papel das musas inspiradoras, analisadas ao longo destes posts.

Assim, a velha lira, ou seja, a instrumentalização da arte e de suas Musas, juntamente com a Filosofia, são convocadas pelo autor para entoar uma canção que denuncie que o homem delira quando usa uma suposta “arte” para objetificar a Mulher
(como fizeram através do Gênero musical pagode, utilizado pelo autor para compor a opereta).

Em O Banquete, Diotima elabora um discurso, segundo o qual,

o Amor não é um deus, mas um dos gênios que tem a função de estabelecer contato entre os mundos, pois é um ser intermediário entre os deuses e os mortais.

A obra é uma reflexão sobre as diversas formas de operar do Amor.

O Tripé

Por fim, os personagens Maneco Tatit e Teresa cantam que, se o homem destruir a Mulher, vai ficar sem tripé.

A metáfora do tripé faz intertexto novamente com a obra O banquete, que diz que o Amor é intermediário entre os deuses e o homem.

O tripé da imagética católica (Pai, Filho e Espírito Santo) exclui a Mulher; já o tripé da Filosofia socrática inclui o gênero feminino.

Por isso, o autor convocou justamente a sacerdotisa Diotima para encerrar a Opereta.

 Não é possível que o homem sobreviva ou alcance o divino sem a parceria da Mulher.
Se o homem continuar a maltratá-la, irá viver sozinho e ameaça o futuro da humanidade.

O Amor em todos os seus aspectos, a História, a Arte, a Música e a Filosofia juntamente com todas as respectivas Musas foram convocadas pelo autor Tom Zé para dar testemunho em favor da Mulher, pelas atrocidades que ela tem sofrido ao longo dos séculos.

Perséfone
Arte: Histori-se
O Desfecho da Opereta

A opereta de Tom Zé é um convite ao reconhecimento de um déficit histórico em relação à sexualidade da Mulher e um alerta ao homem: “vai ficar sem o tripé/sem carinho e sem mulher”.

Maneco Tatit (representante do homem), Teresa e a sacerdotisa Diotima encerram a opereta cantando que amar é fel e mel”.

A expressão parece justificar a violência praticada contra a Mulher, como se o sofrimento fosse inerente ao amor. Por isso, Teresa responde:

Mel, mel o quê, seu vagabundo?!
Quero lhe mostrar as crueldades que caíram sobre a Mulher nestes séculos.
Então, fique aí escutando[…]
”.

O recurso cíclico parece reiniciar a denúncia da violência contra a Mulher através do tempo histórico.

Estudando o Pagode- Na Opereta Segrega Mulher e Amor
Capa do CD

Tom Zé não encerra a opereta com uma solução romântica, mas usa o recurso cíclico para nos mostrar que, apesar das conquistas sociais feministas, a violência contra a Mulher e os ataques à sua sexualidade ainda acontecem, muitas vezes, disfarçadas de elogio, com produções culturais que disseminam um machismo estrutural e velado.

Ainda é necessária muita discussão sobre o machismo e a violência contra a Mulher para conseguirmos um pouco mais de justiça e igualdade de gêneros. E o autor propõe essa discussão através da arte e da cultura.

O estudo dos significantes e perfis femininos nos três atos da opereta tratou de um tema principal:

  • o papel social da Mulher através da História,
  • a relação entre os gêneros e por fim,
  • o conceito feminino de Amor, que concilia amor e sexo.

O mundo é mediado pela linguagem, de modo que uma comunicação violenta e uma educação repressora podem afetar toda a nossa articulação social e o modo como nos relacionamos com a nossa própria sexualidade e com a dos outros.

Como vamos reagir a partir de interpretações críticas de significantes e produtos culturais que depreciam o outro?

Uma análise crítica da nossa cultura que tem como amálgama a segregação da Mulher é necessária para dar início ao processo de libertação.

Como educar e ser educadas(os) para uma sexualidade mais libertadora, sadia e responsável?

marca Histori-se

A  Autora

Elizete
Elizete Lacerda é licenciada em Letras, revisora de textos, escritora. Algumas de suas áreas de interesse e atuação: cinema e análise literária (especialmente análise de canções)

Notas e referências:

  • Sobre Tom Zé. Vide o sitehttps://tomze.com.br/ >.
  • PLATÃO. O banquete [tradução, introdução e notas prof. J. Cavalcanti de Souza]. 5 edição, Bertand Brasil S.A, Rio de Janeiro, 1989.
  • HEINZ, Mohr, Gerald. Dicionário dos símbolos e sinais da arte cristã [ tradução João Rezende Costa]. São Paulo: Paulus, 1994.
  • ZÉ, Tom. Estudando o pagode na opereta segregamulher e amor. São Paulo. Estúdio Elifas Andreato, 2005.
  • Imagem do busto de Diotima – Universidade da Austrália Ocidental (UWA).
  • Imagem da carta de tarô do baralho de Marselha – Autor: Jean Dodal de Lyon.
  • Imagem da campanha  “UNA-SE! O Brasil das Mulheres – o ativismo em direitos humanos pelo fim da violência contra mulheres e meninas”. Veja o : < site das Nações Unidas  >.
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