As Marias e o banquete é o último post de uma sequência de textos analíticos que se propõe a analisar os perfis femininos na opereta de Tom Zé, Estudando o pagode- na opereta SegregaMulher e Amor.
Estes posts foram apresentados em formato de capítulos nesta revista/site.
- As dores das marias
- Mônica-Sol-Musa
- Rebeca do Mato
- Proposta de Amor
- As dores das Medeias Universais
- O canto de dor das Marias
Os perfis e rubricas apresentados nos posts anteriores contextualizaram historicamente a perpetuação das tradições judaico-cristãs (através da articulação de significantes que formam uma cadeia de associações de perfis femininos), trazendo à tona um enunciado do modo como a Mulher veio ao mundo, de acordo com a mitologia cristã: da costela do homem e como estigma da origem do Mal.
Após a imputação da culpa pelo pecado original, ela foi constituída social e culturalmente com significados que remetem a estereótipos inconscientes, pejorativos e estigmatizantes.
Através dos séculos, outros dogmas do cristianismo e códigos de gênero contribuíram para a segregação da Mulher: a alcunha de frágil, louca e incapaz de viver sem a subordinação política e a força do patriarcado.
Apesar de todas as lutas históricas para se libertar da acusação e dos julgamentos, a Mulher vive a dissonância entre o prazer e a culpa.
Tom Zé faz uma incursão na memória cultural e no tempo para fazer emergir clássicas personagens literárias abusadas e violentadas em nome do Amor.
O autor usa a cultura grega e a arte literária para nos mostrar que não só a religião segrega a Mulher, mas toda a nossa cultura está impregnada de violência e segregação feminina.
A Mulher na ONU
No Segundo Ato, Cena V, na ONU, a canção que trata do tema da segregação da Mulher é “Vibração da carne”.
Os já analisados personagens Teresa, Bete- Calla-os-Mares e Maneco Tatit retornam à cena.
Eles e os advogados discutem na ONU sobre a violência contra a sexualidade da Mulher:
“Toda vez pela primeira vez
Que o cara sai com a garota, logo ali
No bar tem um rali de tititi,
Amigos dele com ele, por ele.
De repente cara, ela encara um desaforo inocente – sente só[…] ”
Os versos acima demonstram uma violência sutil que as mulheres sofrem:
- as piadas a respeito de seu corpo e sexualidade;
- a maledicência sobre as intimidades de uma mulher quando compartilhada entre um grupo de homens que a julgam moralmente.
O linchamento moral é uma prática quando a Mulher se relaciona com vários homens de um mesmo grupo.
O personagem masculino Maneco Tatit diz que, desde criança, a Mulher enfrenta uma “dissimulada segregação” em que a sua sexualidade é tolhida através de “brincadeiras” e escárnios:
“Desde criança, a mulher
Enfrenta aquela
Dissimulada agressão:
Eram provérbios maldosos,
E duros, naquele tom brincalhão.
E na dureza do escárnio
Se o amor próprio se parte…
……………………………………
Pode interromper no corpo
Aquela natural vibração da carne,
Gozo da mulher, que se o cara
Não der atenção – é tarde”.
O recurso literário acima, utilizado pelo autor na segunda estrofe (as linhas pontilhadas que separam os versos), ajuda o leitor a vislumbrar o gozo da Mulher interrompido devido à falta de respeito para com seu corpo.
A desconfiança da Mulher em relação ao homem começa ainda na infância, nas relações familiares, em que a menina é tolhida em sua sexualidade: “menina, fecha as pernas”.
Ao sugerir provérbios maldosos que agridem a Mulher, o autor espera a cumplicidade do leitor(a), no sentido de evocar da memória mais violência: “Maria saia arriada, Joana calça abaixada”.
Você lembra de outros provérbios populares que escarnecem da sexualidade ou do sexo feminino?
É interessante ressaltar que o autor encena a Mulher reivindicando o direito ao prazer na ONU!
Essa instituição patriarcal de estatuto político é utilizada pelo autor para dar palco às pautas feministas, principalmente à denúncia de como a sexualidade feminina foi tolhida desde a infância.
O Arcanjo
Na canção “Prazer Carnal”, cena VII “O arcanjo XXI”, as mulheres são expulsas da ONU!
Mas Maneco Tatit sai em defesa da Mulher e argumenta que um ser humano completo só existe quando estão juntos um homem e uma mulher.
Essa alegoria política da expulsão da Mulher na ONU revela a falta de efetivas políticas sociais que defendam a Mulher, em pleno século XXI, contra a violência em todos os âmbitos e, também, que resolvam a precariedade de um espaço político/social que acolha as demandas femininas.
Pensem em tantas mulheres e crianças violentadas nas guerras provocadas pelos homens ao longo dos séculos e na violência que a Mulher sofre no seu dia-a-dia!
O significante Arcanjo na mitologia católica remete à autoridade religiosa que surge em situações que exigem a interferência divina para resolver questões de suma importância para a humanidade.
Tom Zé evoca esse poder divino para dar voz à Mulher contra as injustiças praticadas contra ela e para nos mostrar a importância vital da conciliação entre os gêneros.
O Arcanjo XXI, do Tarô, é representado pela carta “O Mundo” e anuncia uma nova ordem.
A imagem no centro da carta é a de uma mulher.
Uma nova ordem mundial está por vir sob a liderança da Mulher!
A personagem Rebeca do Mato (significante judaico da submissão à ordem patriarcal) ressurge em cena e diz que o Arcanjo XXI exigiu que ficasse sob sua responsabilidade o “desenvolvimento simultâneo das complexidades do sexo e da razão”.
Após a fala, ela canta para o Conselho de segurança:
Prazer carnal,
Querem te afastar do amor;
Como sinal
De chama e chuva, enxofre e sal
Sacode a fera em fúria animal.
As rimas entre “Carnal e sal”, “sinal” e animal” estabelecem uma relação entre o sexo feminino e a condenação moral do prazer carnal para as mulheres pecadoras; bem como as expressão bíblicas “chama, chuva, enxofre e sal” denotam a ideia de condenação para aquelas que almejam o gozo carnal.
Apesar disso, Rebeca sonha com o prazer carnal aliado ao amor:
Mas apesar de toda essa vergonha
Com ele {o amor} ainda a alma sonha
Fiar a renda, cuja lenda
Deus há de cifrar
Fiar a renda, lenda,
Será deus quem decifrar.
A Mulher sonha com o amor pleno.
O homem será um deus SE decifrar o mistério do ser feminino, “cifrado por Deus”.
A figura de linguagem “fiar a renda” denota a paciência que a Mulher tem tido na espera secular para que o homem decifre o seu “segredo sagrado”, segundo sugere o autor da opereta.
Ou segundo Freud, afinal, o que querem as mulheres?
Nós queremos ser amadas e respeitadas nas nossas subjetividades.
Maneco Tatit ressalta que se a Mulher cultivar a “vibração da carne” será julgada como “desvairada, possessa e meretriz”.
Outra vez, aparecem as históricas alcunhas moralistas.
Mas, ao final da canção, Maneco aparece para mostrar o céu e as estrelas para ilustrar a sua opinião sobre os direitos da Mulher em relação ao prazer sexual:
o céu e as estrelas estão igualmente sobre os gêneros, e por analogia, são elementos masculino e feminino;
ambos são elementos inseparáveis do mesmo espaço/tempo;
portanto, eles devem se reconciliar.
Ao final da canção, Rebeca e Tatit cantam juntos sobre a beleza do Amor,
o que parece encenar que homem e Mulher finalmente estão em conciliação.
Diotima
No terceiro Ato da Cena, “A Mulher na UNE”, na canção “Beatles a granel” aparece outra personagem que dialoga com uma personagem universal.
A cena volta ao cenário do Julgamento: Maneco Tatit e Teresa levam Diotima de Mantineia para testemunhar em juízo.
Por analogia, a personagem da Opereta representa a sacerdotisa Diotima de Mantineia, da obra O banquete, de Platão.
O título da canção Beatles a granel faz intertexto com a canção dos Beatles feita para o mercado inglês.
O contexto histórico da canção da banda inglesa remete à revolução feminista dos anos 60 e
à participação das mulheres na cultura de massa desse produto cultural.
As jovens enlouquecidas exacerbaram seus desejos e sexualidade, sendo as principais responsáveis pelo sucesso internacional da banda e a massificação dos seus produtos culturais: canções que falavam de amor e cujas Musas eram mulheres reais, presentes na vida da banda inglesa.
Pelo direito à sexualidade
Já a UNE (União Nacional dos Estudantes) representa todos os estudantes universitários do Brasil.
Sua história é repleta de lutas em favor da igualdade de direitos e contra todo tipo de repressão, especialmente durante o regime militar.
A UNE é colocada em cena para ilustrar a participação política das mulheres na luta contra a repressão sexual.
Afinal, a luta pelo direito à sexualidade também é um ato político.
Diotima é significante da mulher que Sócrates criou para explicar seu conceito de Amor e para ensinar a modéstia aos demais participantes do banquete. Ele faz apologia à Beleza Absoluta e explica que os homens desejam a imortalidade ganha através da procriação.
Havia uma discussão envolvendo reflexões sobre o Amor/Eros; porém, não contava com a presença do gênero feminino.
Foi necessário que Sócrates usasse uma personagem que representasse o gênero feminino na discussão filosófica sobre a natureza do Amor.
Do mesmo modo, Tom Zé usa diversas Musas da cultura ocidental para denunciar a segregação da Mulher.
Tom Zé apresenta novamente uma Musa da cultura ocidental (a Filosofia) para provocar a reflexão nos homens, entretanto, sobre a perspectiva do gênero feminino: o direito de amar, ser amada e sentir realização sexual.
Ou seja, a forma de operar do amor, mas, segundo o sentir do feminino.
Maneco Tatit canta com Diotima sobre o macho a cantar mentiras.
Isso indica que a Filosofia da sacerdotisa do amor pode elevar o conhecimento dos homens, assim como elevou o conhecimento do personagem Tatit (ou do autor Tom Zé), quanto às verdades sobre o Amor/Eros:
Olha aí o macho a cantar
Mentiras a desfiar […]
Tirando versos vai […]
Na velha lira, sua lira[…]
Delira ele, ele delira, ele delira
A lira é símbolo de poesia e instrumento musical preferido de Apolo, o significante grego do gênero masculino.
A imagem da lira se liga à figura do onipotente deus e ao papel das musas inspiradoras, analisadas ao longo destes posts.
Assim, a velha lira, ou seja, a instrumentalização da arte e de suas Musas, juntamente com a Filosofia, são convocadas pelo autor para entoar uma canção que denuncie que o homem delira quando usa uma suposta “arte” para objetificar a Mulher
(como fizeram através do Gênero musical pagode, utilizado pelo autor para compor a opereta).
Em O Banquete, Diotima elabora um discurso, segundo o qual,
o Amor não é um deus, mas um dos gênios que tem a função de estabelecer contato entre os mundos, pois é um ser intermediário entre os deuses e os mortais.
A obra é uma reflexão sobre as diversas formas de operar do Amor.
O Tripé
Por fim, os personagens Maneco Tatit e Teresa cantam que, se o homem destruir a Mulher, vai ficar sem tripé.
A metáfora do tripé faz intertexto novamente com a obra O banquete, que diz que o Amor é intermediário entre os deuses e o homem.
O tripé da imagética católica (Pai, Filho e Espírito Santo) exclui a Mulher; já o tripé da Filosofia socrática inclui o gênero feminino.
Por isso, o autor convocou justamente a sacerdotisa Diotima para encerrar a Opereta.
Não é possível que o homem sobreviva ou alcance o divino sem a parceria da Mulher.
Se o homem continuar a maltratá-la, irá viver sozinho e ameaça o futuro da humanidade.
O Amor em todos os seus aspectos, a História, a Arte, a Música e a Filosofia juntamente com todas as respectivas Musas foram convocadas pelo autor Tom Zé para dar testemunho em favor da Mulher, pelas atrocidades que ela tem sofrido ao longo dos séculos.
O Desfecho da Opereta
A opereta de Tom Zé é um convite ao reconhecimento de um déficit histórico em relação à sexualidade da Mulher e um alerta ao homem: “vai ficar sem o tripé/sem carinho e sem mulher”.
Maneco Tatit (representante do homem), Teresa e a sacerdotisa Diotima encerram a opereta cantando que “amar é fel e mel”.
A expressão parece justificar a violência praticada contra a Mulher, como se o sofrimento fosse inerente ao amor. Por isso, Teresa responde:
“Mel, mel o quê, seu vagabundo?!
Quero lhe mostrar as crueldades que caíram sobre a Mulher nestes séculos.
Então, fique aí escutando[…]”.
O recurso cíclico parece reiniciar a denúncia da violência contra a Mulher através do tempo histórico.
Tom Zé não encerra a opereta com uma solução romântica, mas usa o recurso cíclico para nos mostrar que, apesar das conquistas sociais feministas, a violência contra a Mulher e os ataques à sua sexualidade ainda acontecem, muitas vezes, disfarçadas de elogio, com produções culturais que disseminam um machismo estrutural e velado.
Ainda é necessária muita discussão sobre o machismo e a violência contra a Mulher para conseguirmos um pouco mais de justiça e igualdade de gêneros. E o autor propõe essa discussão através da arte e da cultura.
O estudo dos significantes e perfis femininos nos três atos da opereta tratou de um tema principal:
- o papel social da Mulher através da História,
- a relação entre os gêneros e por fim,
- o conceito feminino de Amor, que concilia amor e sexo.
O mundo é mediado pela linguagem, de modo que uma comunicação violenta e uma educação repressora podem afetar toda a nossa articulação social e o modo como nos relacionamos com a nossa própria sexualidade e com a dos outros.
Como vamos reagir a partir de interpretações críticas de significantes e produtos culturais que depreciam o outro?
Uma análise crítica da nossa cultura que tem como amálgama a segregação da Mulher é necessária para dar início ao processo de libertação.
Como educar e ser educadas(os) para uma sexualidade mais libertadora, sadia e responsável?
A Autora
Notas e referências:
- Sobre Tom Zé. Vide o site < https://tomze.com.br/ >.
- PLATÃO. O banquete [tradução, introdução e notas prof. J. Cavalcanti de Souza]. 5 edição, Bertand Brasil S.A, Rio de Janeiro, 1989.
- HEINZ, Mohr, Gerald. Dicionário dos símbolos e sinais da arte cristã [ tradução João Rezende Costa]. São Paulo: Paulus, 1994.
- ZÉ, Tom. Estudando o pagode na opereta segregamulher e amor. São Paulo. Estúdio Elifas Andreato, 2005.
- Imagem do busto de Diotima – Universidade da Austrália Ocidental (UWA).
- Imagem da carta de tarô do baralho de Marselha – Autor: Jean Dodal de Lyon.
- Imagem da campanha “UNA-SE! O Brasil das Mulheres – o ativismo em direitos humanos pelo fim da violência contra mulheres e meninas”. Veja o : < site das Nações Unidas >.