Participação de Léxico Africano na Obra Simoniana.

Retrato de um Lanceiro Negro, óleo de Juan Manuel Blanes.
PARTE III do artigo: "A Presença do Negro na Literatura Riograndense: Os Contos Gauchescos".
Diadorim
Cinema & Literatura

PARTICIPAÇÃO DE LÉXICO AFRICANO NA OBRA SIMONIANA

A participação intensiva do negro em atividades domésticas e na lida campeira das estâncias está até hoje marcada em nosso vocabulário.

A vida nas estâncias não seria possível sem a mão de obra escrava do negro, responsável pelo cuidado com o gado, com os cavalos, com a cozinha e assim por diante. Logo, o escravo nomeou utensílios de trabalho, animais e plantas, e também adjetivou as coisas usando seu próprio idioma.

Com palavras para o cotidiano, como caçula, capanga e fungu até as que participam da tradição campeira do estado, como milonga, matungo e sanga, os negros identificaram o mundo da estância e seus arredores.

Nomear o mundo que o circunda dá ao homem maior intimidade com objetos e seres. Assim, gradativamente, o negro vai apossar- se da terra em que é escravo.
A língua é o veículo pelo qual ele passa a dominar o que antes desconhecia, ao mesmo tempo em que demarca as atividades a que esteve historicamente ligado.
O negro da lida campeira é aquele que distingue entre o cavalo bom e o matungo, entre o rio e a sanga.

Tropeiro no RS do sec XIX . Gravura de Jean Baptiste Debret.

A mulher negra esteve pressente principalmente na lida da casa.

Ela era a responsável pela cozinha, pela alimentação.
Pratos da culinária gaúcha são conhecidos por nomes que evidenciam a contribuição das línguas negras tais como canjica (ou cangicaxi) e quibebe, por exemplo, assim como a identificação de espécies de plantas ou verduras, como mogango e jiló.

Também é a mulher negra quem lida com as crianças, quem acompanha o crescimento das gurias e dos guris, quem conta as histórias das crianças que viu crescer e também dos viajantes que passaram por sua cozinha, recebidos pelo patrão da estância.

Para Émile Benveniste, a língua é o instrumento de análise da sociedade.

A língua contém a sociedade; logo, a língua é o interpretante da sociedade porque a língua é o instrumento de comunicação que deve ser comum aos vários participantes da sociedade.

BENVENISTE, 1968, p.95 apud ALKMIN, 2003, pp 26-27).

Benveniste considera que o homem invariavelmente se situa em uma classe, seja aquela dos que detêm a autoridade e riquezas, seja aquela dos que produzem.
Como prática humana, a língua revela os usos que grupos ou classes fazem dela (BENVENISTE, 1968, pp. 101-102 apud ALKMIN, 2003, p. 27).

Nesse sentido, o vocabulário constitui-se em importante fonte para os estudos da sociedade e da cultura, pois mantém e desvela informações referentes às formas e às fasesda organização social, aos arranjos na esfera da produção – rural ou urbana – , aos regimes políticos, à moda, às expressões típicas de um dialeto etc.

Tânia Maria Alkmin pontua que há sempre “um conjunto de variedades linguísticas em circulação no meio social. Aprende-se a variedade a que se é exposto, e não há nada de errado com essas variedades” (2001, p. 42).

A língua é um componente do sistema cultural, e a homogeneidade lingüística apenas reitera a tentativa de imposição de uma variedade sobre outra. Em outras palavras, os grupos detentores do poder procuram dominar os outros grupos também mediante os usos da língua.

De modo geral, o usuário da língua materna não reflete sobre os usos que faz dessa língua.

Assim, alguns dos termos anteriormente destacados – angu, caçula, matungo ou sanga, para relembrar –, misturados a termos de origem platense, quíchua, alemã, entre outros, passam a ser reconhecidos como parte do dialeto gauchesco sem que se reconheça o processo lingüístico e histórico que os inseriu no universo campeiro.

A literatura, sim, tem por princípio usar a língua de forma reflexiva a fim de forjar metáforas que, por meio da expressão artística, problematizam a vida de um protagonista e o mundo em que ele vive.

Ora, se homens da estirpe do peão Blau Nunes são também os negros, livres e escravos, por que não haveria nenhuma expressão africana na linguagem utilizada pelo vaqueano? Por que esses homens e mulheres negros não trariam seu vocbulário para o trabalho em que foram colocados, frequentemente na condição de escravos?

A vida sob o ponto de vista do gaúcho pobre

Ao criar Blau como narrador que empresta sua linguagem rústica e seu modo de compreender os casos que conta para mostrar a vida sob o ponto de vista do gaúcho pobre, Simões Lopes Neto elabora uma figura complexa.

No modo de narrar e na escolha lexical estão presentes as vozes dos escravos africanos, tanto no reconhecimento dos papéis sociais que exerciam quanto no uso de termos usados de modo naturalizado na fala do velho paisano.

A linguagem do peão a serviço de coronéis, brigadeiros e estancieiros apresenta as contradições que conformam aquela vida rural. Da voz de seus pares, Blau recolhe a nomeação de objetos, atitudes e emoções.

Considerando o ponto de vista de uma consciência autoral branca, herdeira de valores distintos daqueles caros aos afro-descendentes, e a cultura como expressão de relações construídas e estabelecidas a partir de processos históricos, o narrador traz um nome próprio que chama a atenção.

Apresentado como vaqueano a lembrar um “perene tarumã” (p. 34) na abertura dos contos, depois identificado como descendente de índia charrua na lenda da “Salamanca do Jarau”, se Nunes recoloca a figura do europeu português ou espanhol (há o Nuñes…), Blau remete à colonização alemã. A esse respeito, Luís Augusto Fischer informa, em edição anotada e comentada de Contos Gauchescos e Lendas do Sul:

(…) (O nome Blau desperta certa perplexidade: a palavra , em si, blau, significa “azul” em alemão, portanto sem nada a ver com gauchismo ou localismo. Ivete Simões Lopes Massot, sobrinha e afilhada do escritor, em suas memórias lembra que este nome foi dado pelo próprio tio a um bonequinho presenteado a ela, oriundo da Alemanha: como vestia azul, Simões Lopes o apelida de “Blau”. A ser verdade, temos aí material suficiente para avaliar o peso dos cruzamentos, dos encontros, tudo muito afastado de qualquer suposta pureza originária: boneco alemão dado a uma criança, daí a brincadeira verbal com o nome da cor na língua estrangeira, daí para a nomeação de um personagem destinado a encarnar o que era local, telúrico, ancestral.) (LOPES NETO, 2012, p. 27)

Em nota de rodapé, Fischer comenta que a informação está no livro de Massot (MASSOT, Ivete Simões Lopes Barcelos. Simões Lopes Neto na intimidade. Porto Alegre: BELS; Instituto Estadual do Livro, 1974) e “foi sublinhada por Lígia Chiappini” (LOPES NETO, 2012, p. 27).

Os comentários mostram que a caracterização do protagonista aponta, paulatinamente, para uma figura que resulta de misturas, não apenas herdadas consanguineamente, mas culturalmente. Obviamente essa constatação reforça as considerações feitas por várias edições críticas, a de 1949, com extensa introdução de Aurélio Buarque de Hollanda; a de 2006, com comentários e análises de Aldyr Garcia Schlee; e a de 2012, anotada e comentada por Luís Augusto Fischer, por exemplo.

De um modo geral, essas edições procuram estimular os leitores e, por isso, trazem explicações sobre o estilo, a época histórica, o trabalho campeiro e o vocabulário empregado. Platinismos, palavras de origem indígena – como o quíchua – e arcaísmos ocupam o primeiro plano dessas explanações, aspecto que não surpreende, dado o conjunto expressivo de termos utilizados tanto pelo gaúcho brasileiro quanto pelo gaucho platino. Talvez esse seja o motivo pelo qual a lembrança da participação negra para a formação de termos caros ao homem da pampa seja tardia.

VIANA, Arievaldo.  Melancia e Coco Verde. Ilustrações de Jô Oliveira.  Porto Alegre:      CORAG,  2010. Adaptação em cordel da obra de Simões Lopes Neto.

A literatura simoniana revela também o mundo em que vive o velho gaúcho

A literatura simoniana revela também o mundo em que vive o velho gaúcho, um lugar de gente pobre, de mitos que se esboroam frente à realidade, de ditados que sustentam preconceitos e encobrem a brutalidade da exploração, de associação entre os nomes usados no trabalho e os nomes que caracterizam pessoas e emoções porque não há outra opção aos peões usuários dessa linguagem rude.

Dentre os contos selecionados para apreciação neste ensaio, termos de origem africana caracterizam os personagens e desvelam as relações entre os grupos sociais envolvidos na história.

Alguns exemplos ilustram essa construção literária:

“A Tudinha era chinoca mais candongueira {xii} que havia por aqueles pagos” (“Negro Bonifácio”, p.44).

De chapéu de aba larga, botado no cocoruto {xiii} da cabeça e preso num barbicacho de borlas morrudas, passado pelo nariz; no pescoço um lenço colorado, com o nó republicano […] (“Negro Bonifácio”, p. 47).

“Perto do negro Bonifácio, sentado sobre um barril, sem ter nada que ver com o angu {xiv}, estava um paisano tocando viola […].(“Negro Bonifácio”, p. 50).

“- Ora, misturada!… eu sou teu negro, de cambão {xv}!…, mas não piá da china velha! Toma!” (“Negro Bonifácio”, p. 49).

“E foi andando, estradinha afora, lomba {xvi} acima, apurando o passo, um pouco renga {xvii}” (“No Manatial”, p. 65).

“[…] E, ou por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça ou nem se lembrasse do perigo, a Maria Altina encostou o rebenque no matungo {xviii}, que, do lance que trazia costa abaixo, se foi, feito, ao tremedal […]…” (“No Manatial”, p. 63).

O chiru ficou todo ganjento {xix}; imagine vancê que colhera, daqueles dois aruás (“Melancia Coco verde”, p. 120).

“O Reduzo, de pura pabulagem, atou a cola do pingo {xx} e logo riscou, escaramuçando, na culatra dos companheiros” (“Melancia Coco verde”, p. 126).

“O Reduzo foi se fazendo de Sancho rengo {xxi}… e foi se encostando pra janela da sala de jantar… e por ali foi comendo e bebendo, como soldado estradeiro que não se aperta…” (“Melancia Coco verde”, p. 128).

As palavras sublinhadas apresentam etimologia africana, particularmente do banto.

Termos como candongueira e cambão identificam Tudinha e Bonifácio, respectivamente, no contexto narrativo. Desde o início da narração, ela está identificada por um termo que remete a benzinho, a mimosa, mas também a inquieto, a quem faz intrigas. O modo de ver a “misturada” revela o ponto de vista de Blau antes do clímax da história.

Por outro lado, candonga – e candongueira por extensão – remete à lida campeira, ao cavalo que resiste ao freio. Também cambão indica o trabalho com animais porque se trata de um pano furado que serve para unir duas juntas de bois. Narrador e protagonista trazem do mesmo lugar de fala seu modo de ver o mundo, de se colocar no mundo.

No conto “Melancia Coco Verde”, vários termos de origem africana estão relacionados à figura do Reduzo.

O índio, companheiro do Costinha desde a infância, fica gangento porque vai acompanhar o patrão e amigo na guerra, como ordenança. Assim, não é de estranhar que quem deserte não seja o cadete, mas, em favor deste, o ordenança, que ata a cola do pingo, deixa o acampamento militar e se faz de sancho rengo quando finalmente poderá dar o recado de Costinha a siá Talapa, para impedir o casamento com o açoriano.

Gangento, rengo e pingo são termos com provável etimologia africana.

A simpatia do narrador pelo chiru fica evidente a cada lance da narração. Reduzo realiza em ações os desejos de Blau, desgostoso com o possível casamento da jovem gaúcha com um homem cujos hábitos culturais o narrador menospreza.

A qualificação do cavalo, um animal veloz como indica a designação pingo, e os elogios ao Reduzo quer para indicar-lhe a sensação de orgulho e vaidade, quer para mostrar-lhe a astúcia quando já está na festa de casamento, surgem no modo como Blau Nunes articula a narração.

A negra mina que vai em busca de auxílio caminha renga. Diferentemente de Reduzo, em que a expressão sancho rengo funciona como metáfora cotidiana para indicar alguém se fazendo de sonso, no caso da negra mina há uma real dificuldade em caminhar.

A observação do narrador em “No Manantial” deve-se ao momento do enredo – a negra já sabia da morte da moça e precisava muito chegar logo à presença do Mariano. Para complicar a situação, o caminho não era fácil, era preciso enfrentar uma subida, uma lomba. As dificuldades expressas com lomba e renga fazem parte da compreensão dos eventos que se seguirão.

Lomba e cocuruto indicam aspectos geográficos. Obviamente, podem ser aplicados em situações diversas, como é o caso da descrição do negro Bonifácio. Nesse caso, cocuruto indica o topo da cabeça do gaúcho negro.

O detalhe não é vão: do chapéu ao facão, tudo naquele homem revelava o universo campeiro e guerreiro daqueles homens reunidos para a carreira. Em Bonifácio, a figura exalava toda a potência desses peões. Não por acaso a descrição do negro termina com “Era um governo, o negro!” (p. 47).
O africanismo participa da imagem construída. Trata-se de linguagem comum. O termo que serve para mostrar o topo de uma colina é adequado para a estatura daquele gaúcho negro.

Em oposição a pingo, o matungo é um animal mais lento; às vezes, já velho. Maria Altina monta um matungo para fugir do Chicão. Dois matungos haviam sido deixados sob o umbu, para avó e neta, para irem até o local do casamento. A narração mostra que a jovem consegue velocidade com o animal, mas eles não vencem o sumidouro.

O vocábulo angu, frequentemente associado à comida, no caso da briga envolvendo o negro Bonifácio e os demais homens, serve para indicar uma situação confusa. Trata-se de um momento em que tudo se mistura, o caldo já está pronto. Esse deslocamento em que há uso intencional de conotação revela a intimidade do narrador com o termo.

Blau Nunes explica de que comidas gosta. Eles e os gaúchos que conhece. Há uma explanação bem detalhada em “Melancia e Coco verde”.

Que isso das nossas comidas, um churrasco escorrendo sangue e gordura e salmora… uma tripa grossa assada nas brasas… uma cabeça de vaquilhona… uma paleta de ovelha; e mogango {xxii} e canjica {xxiii} e coalhada… e uns beijus e umas manapanças {xxiv}… e um trago de canha e um chimarrão por cima… e para rebater tudo, umas tragadas dum baio, de naco bem cochado e forte… tudo isso, que é do bom e do melhor, para o ilhéu não valia nem um sabugo
(“Melancia Coco verde”, p. 121).

A culinária referencia o mundo em que vive o peão.

Algumas dessas comidas são identificadas por africanismos, como mogango e manapanças (ou manampanças), ou canjica. Os nomes herdados à tradição lingüística dos negros africanos confirmam a alusão dos enredos à relação entre o peão e as negras cozinheiras, ou amas das sinhazinhas.

Sequências narrativas mostram que inclusive as ações necessitavam de verbos provenientes da língua dos escravos para a expressão do gaúcho. Os excertos abaixo mostram sampar e bombear, esse último repetido em mais de um conto.

“Aqui, o Nadico manoteou e no soflagrante sopesou a trouxinha e sampou {xxv} com ela na cara do muçum” (“Negro Bonifácio”, p. 49).

“Como eu disse, havia ficado em casa, além das brancas, a tia mina {xxvi} – mãe Tanásia – que, quando sentiu a desgraceira, ganhou o paiol, escondendo-se e daí pôde bombear {xxvii} alguma cousa” (“No Manatial”, p. 64).

Os caracterizadores e verbos de origem africana constituem a voz do peão soldado. Ele não as toma por meio de uma escolha seletiva, eles fazem parte do modo pelo qual Blau enuncia o que viu e ouviu.

A literatura simoniana desvela as relações entre negros africanos, escravizados, e os homens brancos ou mestiços pobres. Paralelamente, desvela os pontos de contato entre esses grupos via linguagem gauchesca.

Ao longo do conjunto de narrativas, há uma variedade de palavras de origem africana como bombear (“Trezentas onças”, “Duelo de Farrapos”), calombo (“Os cabelos da china”), canga e matungo (“O boi velho”), cogote e macota (“Juca Guerra”, “Correr eguada”), japona (“No Manantial”), pitar (“O mate do João Cardoso”, “Melancia Coco verde”), sanga (“O mate do João Cardoso”, “Corre eguada”), entre outras.

Necessita-se ainda de um levantamento em cada conto do livro para uma compreensão mais detalhada dos termos que se repetem e dos momentos em que são utilizados pelo personagem narrador.

Esse estudo poderia aprofundar as contradições que animam a figura complexa do narrador e as contradições da sua época, colocando em cotejo o narrador e figuras que, aparentemente secundárias, compõem aquele locus e sua expressão.

“Assim é o mundo simoniano: o da contrariedade móvel, representando, é certo, uma realidade regional mas nela intuindo as situações-limite do homem que já não podem ser expressas na estrita fidelidade ao real aparente e por isso exigem o paradoxo, o símbolo, a metáfora, isto é, uma linguagem original e única, subtraindo-o à média do regionalismo gaúcho e brasileiro.”
(CHAVES, 2001, p.20)

NOS CONTOS GAUCHESCOS, a linguagem cifrada da literatura 

tem no léxico que remete à linguagem oral e corrente da época a contribuição de etnias que estiveram presentes na povoação da Província.

Nas palavras de Chaves, essa linguagem “original e única” exprime também os paradoxos vividos por grupos de desvalidos que ombrearam no mundo do trabalho rural.

A intuição das situações-limite acompanha a caracterização do negro Bonifácio e o verbo que anuncia a agressão vinda do Nadico.
A nomeação das comidas gaúchas une o vaqueano e a ama negra contra o reinol.. Dentre expressões platinas, quíchua e portuguesas – e o nome de origem alemã, Blau –, encontramos termos legados pelos negros.

A literatura de Simões Lopes Neto recupera as contribuições negras no vocabulário gauchesco e as situa em momentos da vida histórica e privada do Rio Grande do Sul. Identifica sem discriminar. A atitude do escritor é de acolhimento – a linguagem mostra suas raízes e a complexidade histórica.

Afinal, a literatura deve inquietar, mesmo quando ilumina.

Notas da autora:

x – A ortografia e a organização frasal utilizadas à época serão mantidas na forma como foram registradas.

xi – Anotada como cangica por Laytano (1981, p. 198), apresenta origem controversa. No entanto, Houaiss registra a palavra mugunzá, aceita a indicação de Lopes (2003, p. 66) relativa à etimologia proveniente do quicongo kanjika e menciona a sugestão de Nascentes, que aponta o termo kandjika (2001, p. 600). A palavra está registrada com as mesmas indicações em Lopes (2003).

xii – Laytano já apontava candonga como benzinho. Observa a relação com o verbo candonguear, o qual era aplicado “ao cavalo quando não se deixa pôr o freio” (LAYTANO, 1981, p. 198). Na sequência, traz sentidos como inquieto, mesquinho, implicante, e sinaliza a origem quimbunda com prefixo diminutivo kA associado a ndengo. Lopes apresenta candonga, como lisonja, mimos; como intriga, mexerico; e, ainda, contrabando. Cada um dos registros teria uma origem específica. No primeiro caso, endossa a possibilidade de diminutivo e prossegue: “o étimo pode estar no quicongo nkua-ndunge, esperto, astucioso […] oi ainda no quicongo ki- ndonga, iniciante, noviço, aluno, aprendiz” (LOPES, 2003, p. 63). Para candonguear registra o mesmo sentido que Laytano, sinalizando origem do quicongo kandungwa (LOPES, 2003, p. 63).

xiii – Lopes (2003, p. 81) registra como “cocuruto” o alto da cabeça, provavelmente do quicongo kulukutu. Houaiss sinaliza origem duvidosa para cocoruto e cocuruto; no entanto, em cocuruto, pontua a etimologia fornecida por Nei Lopes (HOUAISS, 2001, p. 751).

xiv – Laytano registra o significado de pirão feito com farinha de milho ou de mandioca e, em sentido figurado, briga, intriga, indicando ser uma palavra “africana de uso geral no Brasil” (LAYTANO, 1981, p. 193). Lopes apresenta o termo com o mesmo significado, ampliando os tipos de farinhas para esse pirão; no entanto, demonstra que a origem do termo é controversa. Segundo Lopes, angu pode ter origem quimbunda, ou pode ter origem na língua do antigo Daomé – nesse segundo caso, não pertenceria ao ramo banto.

xv – O termo aparece como chambão em Laytano com o sentido de deselegante, surrado, recolhido em Morais e como africanismo em N. de Sena (LAYTANO, 1981, p. 200). Lopes registra cambão com significado similar a Laytano, como “pedaço de pano furado nas duas extremidades, utilizado para unir, umas às outras, duas ou mais juntas de bois” (LOPES, 2003, p. 59). A origem indicada é o quicongo kamba: par, dupla.

xvi – Lomba: subida, rampa. Laytano registra como termo da geografia e afirma que “Mário Marroquim a recolhe como uma de das nossas palavras ‘recebidas dos negros’” (LAYTANO, 1981,p. 205). Lopes registra como preguiça, indolência; entretanto, informa que Nascentes relaciona o termo à etimologia latina, e que é preciso lembrar a existência do quicongo lomba, que significa repugnância ou proibição de comer algo (LOPES, 2003, p. 126). Houaiss relaciona lomba a lombo e remete à etimologia latina lumbus (HOUAISS, 2003, pp. 1780-1781).

xvii – Palavra utilizada para designar pessoa ou animal que manca, ou ainda uma moléstia que atinge os quadros dos cavalos, conforme Nei Lopes. Para ele, através do espanhol platino, o étimo teria vindo do quicongo lenga, inclinar-se de lado (LOPES, 1981, p. 194). Houaiss remete à etimologia hispânica, provavelmente a partir do termo germânico wrankajan, torcer.

xviii – Matungo: cavalo velho, empacador. Já aparece em Laytano, que explica: “Morais observa (Voc. Sul- Riog.) que matungo vai se tornando extensivo até aos cavalos de boa qualidade. Etim. – Palavra africana banto. João Ribeiro diz que se originou de ‘cu-tungo, parar, a que aplicado o sistema de derivações nominais viriam mu-tungue, coisa que pára, ou que não anda’” (LAYTANO, 1981, p. 208)

xix – De ganja, Nei Lopes (LOPES, 2003, p. 108) registra como contribuição do quimbundo nganji, atrevimento, soberba. Laytano registra o mesmo sentido, vaidade, estar vaidoso, e indica origem bunda, aganji mencionando Morais e Jaques Raimundo.

xx – Houaiss e Lopes indicam tratar-se de um cavalo bonito, de qualidade, corredor. Houaiss registra origem platina (HOUAISS, 2001, p. 2215); Lopes sugere o “radical banto ping, presente em várias línguas, ligado à idéia de tronco grosso de árvore (q.v. o quicongo mpingu) através do espanhol platino” (LOPES, 2003, p.176).

xxi – Conforme nota XVI.

xxii – Para mogango ou moganga no sentido de um espécie de abóbora, Lopes (LOPES, 2003, p. 152) e Houaiss (HOUAISS, 2001, p. 1944) sugerem origem do banto. Lopes registra o mogango como fruto do mogangueiro; para moganga, indica o étimo quimbundo manhángua. Laytano apresenta o mesmo sentido, indica como é consumido e fornece a etimologia africana do “banto, segundo Apolinário” (LAYTANO, 1981, p. 210).

xxiii – O vocábulo canjica está comentado na nota X.

xxiv – Manapanças, possivelmente manampanças, no sentido anotado por Fischer: “beiju espesso, temperado com açúcar e erva-doce” (FISCHER, 1998, p. 121). Com essa acepção, o vocábulo está registrado em Lopes e Houaiss; este cita Lopes para fornecer a origem da palavra (HOUAISS, 2001, p. 1828). Segundo o dicionário banto, a raiz mpa – pão – estaria associada a mpanza – disco – , talvez pela forma do doce (LOPES, 2003, p. 136).

xxv – Houaiss registra sampar com etimologia espanhola platina. Como o mesmo sentido de arremessar, atirar longe, Lopes indica provável proveniência do quicongo sampa, ou seja, “dar o golpe de misericódia, consumar, matar, através do espanhol platino zambar […]” (LOPES, 2003, p. 199).

xxvi A caracterização fornecida pelo termo mina, segundo Houaiss, designa ou o indivíduo ou a língua do grupo kwa, falada na República de Benin e no Togo; ou o indivíduo ou a “língua geral com vocabulário gbe, utilizada em Minas Gerais, no sXVIII, entre os escravos” (HOUAISS, 2001, p. 1925).

xxvii Bombear: espiar, espreitar, olhar a si próprio. Laytano já registrava citando Morais, o qual remete a Jaques Raimundo: o termo vem “da língua bunda, de pumbelu, donde se tirou o tema bombe a que se apôs o sufixo ear, voltando-se ao tema bundo pombe, que quer dizer mensageiro” (LAYTANO, 1981, p. 194).

  • Tema, também, tratado pela autora na Coletânea ‘A Matriz da Cultura Negra no Gauchismo‘ (Pragmatha Editora).

Vide a segunda parte do artigo “A presença do negro na literatura riograndense:os contos gauchescos” em: < PARTICIPAÇÃO DE LÉXICO AFRICANO NA LINGUAGEM GAUCHESCA  >.

Vide a primeira parte do artigo“A presença do negro na literatura riograndense:os contos gauchescos”  em : <  A presença do negro na literatura riograndense: os contos gauchescos >.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (PARTE 1, II e III)

  • ALKMIN, Tânia. “Sociolinguística”. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: CORTEZ, 2003. Vol. 1, pp. 21 a 47.
  • BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
  • CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro: Ed. da Universidade, 2001.
  • HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
  • LAYTANO, Dante de. “Os africanismos no dialeto gaúcho”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, I Trimestre, Ano XVI, Porto Alegre: Livraria do Globo, 1936.
  •  O linguajar do gaúcho brasileiro. Porto Alegre: E.S.T. São Lourenço de Brindes, 1981.
  • LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos e Lendas do Sul. – Edição crítica, introdução e nota de Aurélio Buarque de Holanda – Porto Alegre: Globo, 1957. Coleção Província, vol. 1.
  • ______________________. Contos gauchescos. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998.
  • ______________________. Contos gauchescos e Lendas do Sul. – Edição crítica, introdução, notas e comentários por Aldyr Garcia Schlee. – Porto Alegre: IEL; São Leopoldo: UNISINOS, 2006. Dois volumes.
  • ______________________. Contos gauchescos e Lendas do Sul. – Ed. anotada e comentários por Luís Augusto Fischer. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
  • LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
  • PROENÇA FILHO, Domício. “A trajetória do negro na literatura brasileira”. In: Estudos Avançados, vol.18, nº.50, São Paulo Jan./Apr. 2004.
  • RUAS, Tabajara. Netto perde sua alma. Rio de Janeiro: Record, 2001.
  • SANTOS, Renato de Oliveira. O negro na formação cultural brasileira e sul-rio-grandense. Revista RG Cultura, Jan/Fev. 1997.
  • TENÓRIO, Jeferson. O beijo na parede. Porto Alegre: Sulina, 2013.

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