PRESENÇA, MEMÓRIA E PROTAGONISMO DE UMA GRIOT

Areal Baronesa-fotografia de Maria Emília Portella, disponível no site da PMPA.
Paira uma invisibilidade quanto à presença humana e cultural do negro na sociedade brasileira, mesmo com as políticas públicas direcionadas para inclusão. Avanços são questionados e omitidos nos tempos em que vivemos; nessa relação de forças, verifica-se que os detentores do poder invertem o sentido dos espaços de presença, memória e protagonismo do negro que viveu o estigma da exclusão e da discriminação social e foi submetido a um léxico de alteridade condenada.

Como resistência a essa condição e com as possibilidades de preservação dos valores dos ancestrais e dos bens culturais – grafias inscritas na memória do povo negro -, a apropriação de territórios quilombolas e, no caso, dos quilombos urbanos, significa um resgate da cidadania dos que tiveram seus registros identitários estigmatizados pela condição racial e social.

Percorrer as narrativas desses lugares, romper os silêncios e ouvir as vozes constituem cidadania; com esse intuito e nas interfaces de um projeto de conversas literárias, [1] localizamos a Baronesa Duda.

HISTÓRIA E SUAS MANAS

PRESENÇA, MEMÓRIA E PROTAGONISMO DE UMA GRIOT

Cabe aqui recuperar o mito de origem no territorio do Areal da Baroneza, onde parte dos moradores se reconhece como remanescentes do  quilombo do Séc. XIX nas terras do Barão e da  Baronesa do Gravatai. Com a morte dos donos, algumas frações dos terrenos já estavam com negros alforriados e as restantes ficaram na posse do caixeiro-viajante Luis Guaragna, que ali se estabeleceu como sapateiro.

Uma imponente parede de alvenaria  que restou do antigo solar é testemunha silenciosa das medidas higienistas, dos processos de homogeneização e de especulação imobiliária  que os descendentes de africanos, ocupantes do local,  sofreram ao longo dos anos em um movimento de expulsão do centro e em um silenciamento por parte do poder.

Aquela comunidade de “barões retintos”, para atender suas necessidades básicas e as de cidadania, opõe resistência. O quilombo, assim como o Baobá da mãe África, ampara e fortalece aos seus. Deste modo, cabe invocar  a ancestralidade,  bater o tambor e clamar aos orixás, como no poema “Tantã” de Oliveira Silveira:

Tantã
sinto teu som
me entrando nos ouvidos
me rachando a montanha
do peito
tantã
ecoando nas entranhas
tantã
voz vulcânica de chão
lavas de lágrimas e emoção
tantã
lavas fundas de origem
tantã
voz do ser.

OLIVEIRA SILVEIRA, 2012, p.133

É na caminhada que o tempo histórico presentifica outros tempos; é preciso acordar o herói com identidade canônica para que se reinvente o contemporâneo, para que se construa o coletivo.

Ao apagamento do quilombo silenciado pela história oficial, sucede-se o tempo de resgate da tradição e de ação política. Aprendemos que existem, nas vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram. Uma mulher – dona Gessi, a Duda, com a sabedoria transmitida desde a noite dos tempos, de boca em boca com a responsabilidade do fogo sob a noite estrelada, emerge dentre essas vozes silenciadas.
Imagem de Dona Gessi, a Duda, registrando suas memórias e as memórias do Areal da Baronesa

A luta pela permanência no local se organiza com a criação da Associação Comunitária e Cultural Quilombo do Areal, mas, ante a especulação imobiliária que se constituía uma ameaça de desterritorialização, os esforços deveriam se concentrar e agilizar o reconhecimento do Areal como território de remanescentes de quilombolas.

Com as medidas do Orçamento Participativo, alguns ganhos foram efetivados, como a melhoria das casas e a manutenção das estruturas do antigo solar que resistiam ao tempo. A acelerada modernização urbana impunha um “descolorir dos tempos”, uma prática de silenciamento.

A Duda fez a trajetória do herói, está no recorte escrito nas conversas literárias, desdobrou-se entre o público e o privado, no momento de possibilidades novas para os da sua raça, ou seja, o reconhecimento do território de quilombo. A protagonista com sabedorias acumuladas “recriou mundos”, enfrentou a luta pela vida, pela terra, pela família e pelo coletivo com o privilégio do saber/fazer.

Dona Gessi, mulher negra e quilombola, nesse tempo de urgências, se dispôs ao combate político; como Antígona, enfrentou os desmandos do poder. Na sua caminhada, debateu, expôs e inteirou-se, como ela afirma, “… gastei sola, gastei o que não tinha”, organizou fronteiras, abriu novos espaços “…fizemos o papel e mandamos pra Brasília, pra  Fundação Palmares (…) – e embrulhada em glória prossegue: – …em seguida veio o retorno que aqui é sim um território quilombola”

Em 03 de junho de 2003, a comunidade foi certificada como quilombo urbano pela Fundação Cultural Palmares; após dez anos, pela portaria 76 do INCRA; em 2014, foi reconhecida e demarcada como terras das comunidades remanescentes de quilombos do Areal da Baronesa. O título de propriedade coletiva está entre as muitas demandas por parte dos moradores, que buscam permanecer no local onde está enraizada a territorialidade negra, um entre-lugar eivado de histórias e tradições, –“Seu Lelé aqui do quilombo foi o primeiro Rei Momo”, frisou Duda.  .

Nessa escalada, os “verdadeiros narradores” do quilombo são sinalizados com novas linguagens, se fortalecem com as marcas da ancestralidade e com o resgate da cidadania. A literatura é um espaço de resistência; a “Baronesa” Duda, em seus escritos no projeto Vozes do Areal, rompeu silêncios, denunciou violências, registrou vivências e sonhos. Suas marcas estarão para sempre nas alcatifas do quilombo do Areal.

Quando morre um idoso africano é como se morresse uma biblioteca”, as palavras de Amadou Hampaté – Bá são referência e nos amparam ao lembrarmos a querida Duda, agora no Orun, uma “Griot”, guardiã da memória coletiva e dona da palavra do quilombo urbano Areal da Baronesa. Benção.

A AUTORA

Me Eva Esperança Guterres Alves. Professora de História do Ensino Público aposentada, historiadora e Mestre em Letras pela UniRitter.

NOTA 1 (nota da autora):
Ao longo do mestrado, participei do Projeto Turismo e Literatura, coordenado pela professora doutora Regina da Costa da Silveira. Uma das práticas extensionistas desenvolvidas foi a atividade – Pelos caminhos do Negro em Porto Alegre – com o objetivo de localizar e ouvir vozes e recuperar  cidadanias dessa parcela da população estigmatizada e excluída. Na sequência, no território quilombola Areal da Baronesa, desenvolvemos a oficina literária Vozes do Areal no ano de 2016. Nessa oportunidade conhecemos dona Gessi, a Duda.

Imagem de encontro do projeto de oficinas literárias Vozes do Areal (2016). Acervo da autora

REFERÊNCIA:
SILVEIRA, O. Obra reunida. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/Corac, 2012.

 

 

 

 

 

Escrito por
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