Entrudo e sociedades carnavalescas em Porto Alegre

Porto Alegre. Há 150 anos mudou o seu carnaval.
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O que é entrudo?
O que são sociedade carnavalescas?
Fim do entrudo? Por quê?
        As mulheres no carnaval.

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Esmeralda e Venezianos e o Carnaval em Porto Alegre

Há 150 anos, nasciam as primeiras sociedades carnavalescas em Porto Alegre.

Introduzindo um novo formato de carnaval, elas pretendiam acabar com a tradicional brincadeira do entrudo.
Vamos conhecer?!

Ilustração representando o primeiro corso datado de 1874. Publicação do periódico ) Guarani.
Ilustração de O Guarany 1874

DESJANAIS

Era Domingo de carnaval do ano de 1873.

Desjanais, pseudônimo de Joaquim Antônio Vasques, em sua coluna publicada no jornal A Reforma, saudava “o dia da folia, da loucura, do regozijo, da mais ampla liberdade”, mas aproveitava para criticar as práticas carnavalescas manifestas em Porto Alegre:

***

[…]E aqui o que temos? O Entrudo, o velho Entrudo! Pois joguemos o Entrudo!

Este ano podemos brincar à vontade porque a polícia tomou a resolução de não querer mais desrespeitadas as suas ordens e não proibiu o brinquedo.

Um mês antes da Quinquagésima é preciso andar-se de olho vivo e atender bem para quem está na janela; porque um pequeno descuido fazem de um homem um pinto.

É um horror!
Engomar-se a gente para uma visita de cerimônia e ao dobrar uma esquina, descarregam-lhe uma dúzia de limões!
Ir um homem muito sério, meditando mui filosoficamente sobre casos graves da vida e receber em cheio uma bacia d’água![…]

ENTRUDO? O QUE É ISSO?

O entrudo foi a maneira como o carnaval chegou ao Brasil através do colonizador português.

Do latim introitus, designa o período de introdução à Quaresma, data cristã assinalada pelos quarenta dias que antecedem à Páscoa.

Consistia numa série de brincadeiras e pilhérias que se fazia durante esse período.

Em Porto Alegre, era comum:
o arremesso de limões de cheiro (esferas de cera em formato de laranjas/limão que continham água perfumada), água jogada de bisnagas, seringas, bacias e baldes, farinha, pó de arroz e vermelhão.

O objetivo era mesmo: molhar e sujar o adversário.

Apesar de ser largamente praticado desde o início da colonização da cidade, com o passar dos anos, o entrudo passou a ser severamente criticado.

Tido um jogo bárbaro, grosseiro, pois gerava brigas domésticas, brigas públicas, dão-se más respostas, recebem-se descomposturas, quebra-se um perna, esfola-se o nariz, – o diabo, enfim!

e licencioso que dava “lugar a episódios burlescos, aconchegos ternos, a que empreguemos com toda a sem-cerimônia um dos nossos cinco sentidos, coisa que nos é inteiramente proibida nos tempos comuns,
trazia prejuízos físicos e sanitários; ao andar, o homem “curtindo os efeitos de uma constipação, atarefado no seu labor diário, suando em bicas, e ver-se repentinamente molhado, e bem molhado”.

***

 Por essa razão, deveria ser substituído por uma forma civilizada, moderna e decorosa de se comemorar os dias de Momo.

Em várias cidades do Brasil, o entrudo era “considerado uma prática arcaica de comemorar os festejos dos Dias Gordos e pouco condizente com as aspirações de modernidade manifestadas no país
(SILVA, 1997, p. 186).

ENTRUDO E SOCIEDADES CARNAVALESCAS EM PORTO ALEGRE

Era preciso se construir uma nova imagem ideal para o carnaval!

Há de se ressaltar que, em 1855, havia sido organizado, no Rio de Janeiro, o Congresso das Sumidades Carnavalescas.
Considerado a primeira sociedade carnavalesca do país, foi idealizado por um grupo de oitenta foliões da elite carioca que celebraram o carnaval aos moldes de Veneza, fazendo desfiles pelas ruas da cidade, fantasiados com os mais diversos temas e fantasias luxuosas ao estilo europeu.

***

De acordo com Álvares (2014, p. 17), “o primeiro clube carnavalesco do Rio de Janeiro representou o choque entre a Desordem do Entrudo e a dignificação da folia, explicitada pela venezificação do carnaval carioca”.

Trazendo o exemplo do que ocorria na Corte, onde

[…] um grande número de sociedades carnavalescas capricham na ostentação com que se apresentam em seus ruidosos passeios, na fertilidade das lembranças extravagantes, no gosto e riqueza com que preparam os teatros e as ruas por onde tem de transitar o préstito folgazão[…]”,

Desjanais conclamava a rapaziada da cidade, “que se distingue por seu bom gosto e fino espírito”, questionando:

[…] por que não havemos de organizar uma sociedade carnavalesca que enterre para sempre o antiquário Entrudo?

Apareça aí um mais corajoso, tome a iniciativa, e verá que há de ser acompanhado.

Se aparecer este herói, prometo desde já endeusá-lo, num discurso ad hoc que há de ser proferido na sexta-feira gorda de 1874, por ocasião do banquete oferecido pelo Deus Baco, em regozijo à entrada da Quaresma .

PROVOCAÇÃO ACEITA

E, de fato, a provocação de Desjanais fora aceita.

Poucos dias após, em 1º de março de 1873, foi fundada a primeira sociedade carnavalesca de Porto Alegre: a Esmeralda Porto-Alegrense.
Dois dias depois, era a vez de aparecerem Os Venezianos.

Tais agremiações pretendiam mudar a cara dos festejos na capital gaúcha, instaurando um novo modelo de festa: o carnaval veneziano, com préstitos e bailes fechados a seus sócios.

Os jornais saudavam a iniciativa “como o início de uma reforma de costumes que colocaria Porto Alegre à altura da Corte e das demais cidades civilizadas do mundo
(LAZZARI, 1998, p. 69).

A imagem apresenta as sociedades carnavalescas representadas por duas mulheres. A da direita tem a legenda Veneza e a da esquerda, Esmeralda. Post: Entrudo e sociedades carnavalescas em Porto Alegre.
Charge de Araújo – Reconciliação de Esmeralda e Venezianos -1884

40 anos depois…

Quase quarenta anos após o nascimento de Esmeralda e Venezianos, o jornal O Independente publicou uma crônica na qual se propunha historiar a criação do carnaval de Porto Alegre, ou melhor, das sociedades carnavalescas.

Segundo o respectivo periódico, tudo teria sido em função de um episódio entrudesco.

Confira a seguir:

O carnaval porto-alegrense nasceu de uma bomba d’água, que o entrudo traiçoeiro, penetrando nas trincheiras que os irmãos Masson (Leopoldo e Luiz) haviam construído em um sobrado à Rua dos Andradas, em 1870, irrigando a mangueira aos transeuntes.

Um caixeiro da botica Luiz Masson, que ficava por baixo do sobrado onde se achavam os irrigadores, á cavaleiro de qualquer investida, deu entrada por uma porta falsa, que havia na escada, a qual só ele conhecia, a uma legião de entrudeiros, comandados pelo coronel Joaquim Pedro Salgado.

O assalto foi realizado de surpresa e a provisão d’água existente no sobrado, serviu para inundar a casa toda, deixando os entrincheirados como pintos depois das enxurradas. A água atravessando o assoalho e forro do piso inferior irrigou as prateleiras da farmácia Masson, estragando muitas coisas.

O caixeiro após a espetagem deu as de vila logo, para escapar da indignação do patrão.

Na quarta-feira de cinzas, o saudoso Amadeu Masson (pai) aconselhou a formação de uma sociedade para sustar o entrudo.

Nasceu então a Esmeralda, criada pelos esforços do Sr. Leopoldo Masson, que, como joalheiro, foi o seu padrinho. E logo apareceu o emulo Os Venezianos, tendo sido o primeiro carnaval um extraordinário sucesso. O entrudo foi coibido e de ano em ano foi menos jogado até que desapareceu aquele brinco bárbaro e brutal que era sempre acompanhado de crimes

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AS SOCIEDADES CARNAVALESCAS

De acordo com a narrativa do jornal O Independente, o nascimento do carnaval veneziano em Porto Alegre teria se dado por causa de prejuízos financeiros que as brincadeiras do entrudo teriam causado.

Teria tal episódio motivado a escrita de Desjanais?

O fato é que, assim como ele, Amadeu Masson também teria aconselhado a criação de sociedades carnavalescas a fim de “sustar o entrudo”.

Seu filho, Leopoldo Masson, assim o fez, criando a Esmeralda. Tanto Amadeu, quanto Leopoldo chegaram a presidir a Esmeralda, em 1877 e 1880, respectivamente.

Do mesmo modo, a criação dos Venezianos contou com a colaboração do coronel Joaquim Pedro Salgado, que teve destacada participação no episódio citado acima, ao liderar uma legião de entrudeiros no ‘assalto’ à trincheira da casa Masson.

Salgado foi o primeiro presidente dessa sociedade.

De acordo com a narrativa, ambas as sociedades seriam “filhas do entrudo”:

Leopoldo Masson que, galhardamente, molhava a todos os transeuntes de sua ‘trincheira’ fundou a Esmeralda;

e Salgado, que tomara de assalto à casa Masson e encharcara os irmãos, teria ajudado na criação da Venezianos.

OS BONS MOÇOS

Com a criação de Esmeralda e Venezianos, os jovens homens da elite porto-alegrense – “a nata dos moços da nossa sociedade, a boa gente da terra”, como descrevia a imprensa da época (apud FERREIRA, 1970, p. 32) – passaram a exercer o protagonismo nas atividades carnavalescas.

Seu pertencimento social, bem como o fato de terem sido

os iniciadores da reforma, […] que visando mais um progresso, firmaram a abolição do entrudo e concorreram gostosos para o abrilhantamento da festa carnavalesca” *,

dava-lhes o “direito a todas as atenções dos habitantes, aos quais cabe também de sua parte secundá-los no abrilhantamento das festas carnavalescas (apud FERREIRA, 1970, p. 32).

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AS MULHERES

Às mulheres, fora relegada uma posição de passividade frente aos festejos carnavalescos.

Protagonistas nas brincadeiras de entrudo – tanto mulheres da elite, quanto de classes populares -, no carnaval veneziano, deveriam assistir e aplaudir aos desfiles promovidos pelos homens das referidas agremiações.

Aliás, a readequação dos lugares e das condições femininas no carnaval foi outro objetivo da criação de Esmeralda e Venezianos.

ENTRUDO E SOCIEDADES CARNAVALESCAS EM PORTO ALEGRE

Momento de subversão da ordem sexual, além das guerras de limões, o entrudo era pretexto para declarações amorosas e exercício da sexualidade, onde havia o perigo dos “abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família” [**].

Tanto é que o próprio Desjanais dava ênfase ao fato de que se o entrudo “não passasse do bombardeio das laranjinhas de cheiro e mesmo de alguma boa porção de pós-de-arroz, seria suportável”.
O problema é que, durante o jogo, “ficamos todos doidos, e entregamo-nos com furor aos excessos da folia. Nada: precisamos acabar com o Entrudo  

Ao estipular novos lugares e condições para as folionas, o processo reformista do carnaval porto-alegrense buscou modelar sentimentos e comportamentos a serem seguidos tanto pelas mulheres, quanto pelos homens da cidade, através do agenciamento do desejo e da exaltação de um discurso varonil do carnaval.

Ao invés do contato físico proporcionado pela velha brincadeira, o distanciamento corporal dos préstitos permitiria às famílias zelarem pela honra e moral de suas donzelas e, aos homens, serem reconhecidos enquanto verdadeiros cidadãos.

Jovens de ideias tão adiantadas”, “entusiastas do progresso”, repletos de “conhecimento e moralidade”, eram esses jovens homens modernos que estariam trazendo para a cidade o progresso, a civilização, os ares da modernidade, representados através da folia de Momo.

A ENTRUDEIRA

Caroline Leal

Caroline Leal é professora, historiadora e pesquisadora da história do carnaval de Porto Alegre, sua cidade natal.

Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), investiga as festas e o carnaval pela ótica da história das mulheres e dos estudos de gênero.
Autora do livro “As Mulheres e o Carnaval – Porto Alegre (1869-1885)”, criou o blog  <  A Entrudeira> com o objetivo de divulgar o conhecimento histórico para além da academia.

Gostaria de entrar em contato com a autora?

Envie um e-mail para o seguinte endereço: aentrudeira@gmail.com

Notas e observações:

Como citar este texto?

LEAL, Caroline. Entrudo e sociedades carnavalescas em Porto Alegre. Histori-se. Vol. 2, No. 11, fev. 2023. Disponível on-line em <  Entrudo e sociedades carnavalescas em Porto Alegre>.

Referências
  • ÁLVARES, Lucas Cardoso. O Rio civiliza-se: memórias das sociedades carnavalescas, uma perspectiva brasileira. Dissertação (Mestrado em Memória Social), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2014.
  • DESJANAIS in: A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873.
  • FERREIRA, Athos Damasceno. O Carnaval Porto-Alegrense no século XIX. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970.
  • LAZZARI, Alexandre. Certas coisas não são para que o povo as faça: Carnaval em Porto Alegre (1879-1915). Dissertação de Mestrado em História. IFCH/UNICAMP, Campinas, 1998.
  • SILVA, Zélia L. O Carnaval dos anos 30 em São Paulo e no Rio de Janeiro (de festa de elite a brincadeira popular). História, São Paulo, v. 16, 1997.
Jornais:
  • A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873.
  • A Reforma, Porto Alegre, 19 de fevereiro de 1874.
  • A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875.
  • O Independente, Porto Alegre, 06 de fevereiro de 1910.
Referências imagens presentes no corpo do texto:
  • Fonte: O Guarany, Porto Alegre, 1874. Apud: FERREIRA, 1970.
Citações sem referências ou com asteriscos no corpo do texto:
  • [1] . Todas as citações sem referências no corpo do texto pertencem à: DESJANAIS in: A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873.
  • [*]    In: A Reforma, Porto Alegre, 19 de fevereiro de 1874.
  • [**]  In: A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875.

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