Históricas
Janela dos Tempos

A mulher fotografada não foi identificada no documento. Seria forra? Seria escrava? Qual o seu nome? Por que se deixou fotografar?
Luísa
Fazia tempo que eu não viajava através dos tempos…
Eu sentia uma certa inquietação, pois havia a esperança de uma nova oportunidade de abertura da janela dos tempos e mais: seria possível entrevistar ela: “A Chica que manda”.
Sim, estou falando de Chica da Silva.
Mas… Algo deu errado nas coordenadas da janela dos tempos … Eu, ainda, não compreendo bem este fenômeno.

Não fui para o século XVIII, mais precisamente para o ano de 1760.
Nem à região das minas de diamantes eu cheguei.
Quando dei por mim, eu estava na Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Estava um tanto atônita.
Devia ser 1837 ou 1838.

De repente, formou-se um rebuliço e eu só senti uma mão me puxando para um canto discreto.
Seus olhos altivos foram realçados por um breve sorriso.
Apenas o suficiente para deixar à mostra os seus dentes alvos que se destacaram no contraste com a sua pele bem negra.
Refeita do susto, observei melhor minha salvadora.
Não era alta, usava tipo um xale de tecido que se apoiava sobre apenas um de seus ombros. Achei-a uma mulher muito bonita.
Me apresentei e agradeci.
Ela, um tanto desconfiada, reparando que eu era uma estrangeira nas terras (e no tempo), retribuiu. Seu nome, Luísa. O curioso é que ela sabia sobre a janela dos tempos.
- Venha – disse ela apressada. Vamos para lugar seguro. {Não entendi, mas a segui}.
Pensei que minha nova amiga poderia estar com problemas… E estava!
__ Auxiliei alguns quilombolas a fugirem da guarda.
Por um momento, pensei que a confusão há pouco relatada tinha haver com Luísa e seus amigos.
Será?
Ela reparou uma pequena cruz que eu trazia no cordão preso ao pescoço:
___ Você é cristã desde que nasceu?
____ Sim. Respondi sem entrar em maiores detalhes
____ Quiseram me obrigar a ser. Mas não sou.
Fiquei em silêncio … Sei do papel que a religião católica (e não apenas) teve na história da escravidão.
___ A escravidão continua existindo no seu tempo?
Entendi a pergunta como referente ao Brasil.
Como responder? Explicar? Resolvi simplificar.
___ Pela força da Lei, não. Após muita resistência e luta, chegará o momento em que uma Lei chamada Áurea proibirá a escravidão. Se pensarmos pelo seu tempo, ainda irá demorar um bocado.
Ela sorriu.
__ Mas chegará. Isso me anima. Nunca aceitei ser escrava. Tive sorte, sou livre. Fui escrava, mas sou liberta.
[Pausa]
___ Deixei de ser escrava; contudo, mesmo livre, participei de algumas revoltas envolvendo escravizados. Tem filhos?
___Sim. Tenho dois.
Ela perdeu o seu olhar no distante, ao mesmo tempo, que falava:
__Pois eu também tenho… De nome Luís; tive que deixar na Bahia quando fugi para cá.
Minha cabeça girou rápido: seria ela Luísa Mahin?
A mãe de Luís Gama?
Luísa mudou de assunto. ___ Está com fome?
Eu não estava, mas fiquei quando ela me apresentou o seu tabuleiro cheio de delícias que produzia para vender. Era quitandeira: fazia bolos, biscoitos, doces. Depois, vendia tudo pela cidade. Assim, ela se sustentava.
Aceitei um pedaço de bolo de milho.
Fiquei com vontade de contar para ela a história de Luís Gama.
Seria ela Luísa Mahin?
Mas eu já havia falado demais ao revelar sobre a Lei Áurea.
A janela dos tempos tem as suas regras e uma delas é nada revelar que possa interferir nas escolhas de pessoas de tempos distantes.
___Você veio para cá por ter participação em uma revolta de pessoas escravizadas?
Como foi isso?
___ Sou quituteira. Eu vivo circulando pela cidade vendendo o que faço. É o meu oficio. Não despertava suspeitas. Eu era mensageira dos rebeldes.
[Pausa]
___Levava mensagens de rebeldes para rebeldes. Mensagens escritas.
___Não tinha medo de pegarem as mensagens? Sei lá. Podia acontecer…
___ Mensagens escritas de modo estranho para o povo daqui {escrita árabe}. Se fosse descoberta com os bilhetes, ninguém entenderia. Pensam que sabemos pouco… Pensariam ser coisas para sorte.
___ Uau! Espertos.
___ Alguns bilhetes nessa escrita, eu mesma entregava para os destinatários.
Outros, as crianças que vinham pedir bolos faziam e eu entregava para elas junto com a guloseima.
Acho que nunca suspeitaram.
Pela narrativa de Luísa, eu percebia que ela dizia da Revolta dos Malês, ou também, dessa revolta.
___Mas, então, por qual motivo fugiu?
Como souberam que você tinha participação na revolta?
___ Essa última revolta não deu certo.
A repressão aos revoltosos foi muito dura e a lista de suspeitos, muito longa.
Quando percebi que estava em perigo: fugi.
Eu já havia participado de outras rebeliões, alguns presos acabaram confessando sobre os planos …
Talvez, eu não fosse só uma mensageira simpática aos revoltosos.
[Suspirei].
Seria ela a mãe de Luís Gama?
Luísa concluiu:
__ O certo é que fugi para não ser presa.
Deixei meu menino com idade de sete anos na Bahia.
Deixei com o pai dele.
Eu indaguei:
__ E aqui, pelo jeito, a vida é agitada?
Ela sorriu e logo cerrou o semblante.
__ Talvez, não seja possível uma vida calma.
Um barulho na porta despertou nossa atenção.
Era Suzana, vendedora de aluá de abacaxi.
Amiga de Luísa.
Trazia notícias: os quilombolas perseguidos conseguiram escapar da guarda.

Quando comecei a contar a história de um jovem negro que, após muitas desventuras, conseguiu aprender a ler e a escrever e estudou as leis: a janela dos tempos se apresentou.
Luísa entendeu que eu devia partir logo.
Como disse, ela conhecia a janela dos tempos.
Ops! Seria ela Luísa Mahin?
A janela dos tempos pode ser uma explicação para não se ter mais notícias dela após uma prisão?
Não! Impossível. Eu estou viajando…
Notas:
- A personagem Luísa foi pensada a partir das referências/memórias de Luís Gama sobre sua mãe.
- Entre a documentação (até o momento) conhecida sobre a Revolta dos Malês (1835), não há menção ao nome de Luísa Mahin.
- Sempre houve revoltas e outras reações à escravidão. Dizendo da Bahia, em especial, no período de 1807 a 1816 e no de 1826 a 1835 existiram diversas rebeliões, sendo a mais conhecida a Revolta dos Malês datada de 1835.
- O período regencial (1831 a 1840) foi marcado por várias revoltas populares.
- As quitandeiras podiam ser mulheres escravizadas (escravas de ganho) ou mulheres livres/libertas. Vendiam produtos como alimentos que elas (ou outras) produziam (bolos, doces, biscoitos), cachaça, fumo, leite, frutas.
- Imagem 2: autoria de Elisa Riva. Disponibilizada no Pixabay.
- Imagens 1 e 3 disponíveis em: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci e KOSSOY, Boris. O olhar europeu – O negro na iconografia brasileira – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. Respectivamente páginas 09 e 39.
Referências:
- BANDEIRA, Júlio; LAGO, Pedro Correa. Debret e o Brasil Obra completa 1816-1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2009.
- COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República. 9 ed. São Paulo: UNESP, 2010.
- GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça. In: FERREIRA, Ligia F. (Org.). Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 199-203.
- SANTOS, Luiz Carlos. Luiz Gama. São Paulo: Selo Negro, 2010.
- SCHUMA, Schumaher e Brazil, Érico Vital (orgs). Dicionário Mulheres do Brasil de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2000. Páginas 345/346.