Diadorim
Cinema & literatura
Posso dizer a vocês que foi na escola que soube pela primeira vez que era negro. Até então eu também era ignorante nesse assunto. […] E digo a vocês que é terrivelmente ruim viver na ignorância.
E a gente nunca é negro por acaso, porque antes de ser negro a gente tem que aceitar, entender que a gente tem uma cor preta, e que isso faz diferença na vida.
(TENÒRIO, Jeferson. O beijo na parede. 2013. P. 19)
A voz do sargento Caldeira era sempre emitida em tom baixo, mas sem submissão. […]
Netto aproximou seu rosto do rosto do sargento.
_ Por que não ficaram na serra? Por que desceram?
Não eram livres por lá? Não estavam seguros?
_ Para sermos livres, para sermos seguros, precisamos dum país, coronel.
(RUAS, Tabajara. 2001. PP. 85-86.)
I PARTE
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente ensaio focaliza a presença de personagens negros e de africanismos [i] para a constituição do sujeito narrador de Contos Gauchescos, o vaqueano Blau Nunes, gaúcho ficcionalizado com as tintas do realismo literário, mais precisamente de um “naturalismo da natureza”, como aponta Luís Augusto Fischer (FISCHER, 2012. P. 72) [ii].
Inicialmente, serão destacadas obras de ficção e de pesquisa que formem um breve panorama sobre a presença do negro na literatura brasileira, particularmente na condição de personagem.
Na sequência, serão apresentadas descrição e análise de alguns contos simonianos com o objetivo de configurar personagem narrador e léxico, os campos de força em evidência.
O presente trabalho não pretende abarcar edições críticas renomadas: antes, realiza um ensaio que busca provocar mais alguma reflexão sobre os percursos críticos da obra do escritor pelotense.
Vislumbrar os caminhos outrora trilhados e as veredas abertas por teorias literárias recentes, longe de diminuir as primeiras e exaltar as últimas, dimensiona as inúmeras camadas de uma identidade unificada pela sedimentação e pelo esquecimento de muitas contribuições – e, nesse último sentido, especificamente, pelo apagamento da ação efetiva (incluindo a linguagem) de africanos escravizados e atuantes na formação sócio econômica e cultural do então Continente de São Pedro do Sul.
UM PERCURSO AO LONGO DOS ANOS
A análise da figura do negro na literatura brasileira enfrenta caminhos, por vezes, tortuosos.
Se, por um lado, a historicização das figuras do negro fica bem documentada (BROOCKSHAW, 1983; PROENÇA FILHO, 2004), os estudos costumam apontar dois aspectos vistos como relevantes para a produção ficcional: a descrição física e moral de personagens negros ou afro-descendentes ou a posição da consciência autoral quanto ao quesito mestiçagem. Assim, avolumam-se trabalhos que vão de Joaquim Manoel de Macedo e a Machado de Assis, Maria Firmina dos Reis a Jorge Amado, chegando a Carolina Maria de Jesus e Jeferson Tenório.
Paralelamente, uma rápida visada na História da Literatura Brasileira e em personagens de ficção revela Paula (MACEDO, A Moreninha, 1844), Úrsula, Suzana e Túlio (REIS, Maria Firmina dos. Úrsula, 1859), Isaura e Rosa (GUIMARÃES, A escrava Isaura, 1875), Raimundo e Rita Baiana (AZEVEDO, respectivamente O mulato, 1881, e O cortiço, 1890), Amaro (CAMINHA, O bom crioulo, 1895), Gabriela e Pedro Archanjo (AMADO, Gabriela, cravo e canela, 1958, e Tenda dos milagres, 1969, respectivamente), Walter (CAZZARRÉ, Os bons e os justos – A fábula do amor bastardo, 1983), J. G. (MAIA, Carvão animal, 2011), o sargento Caldeira, Milonga e João Congo (RUAS, respectivamente Netto perde sua alma, 1995, e Os varões assinalados, 2010), João e Pedro (TENÓRIO, respectivamente O beijo na parede, 2013, e O avesso da pele, 2020), por exemplo.
Trata-se de uma espécie de percurso da narrativa que demonstra as paulatinas elaborações do personagem negro, ao sabor das mudanças econômicas e sociais do país [iii].
Personagens secundários, protagonistas, antagonistas, ajudantes do protagonista, a ciranda de papéis para a evolução da narração passa pelas relações da sociedade e do escritor com uma consciência histórica que reconhece a relevância do negro para a nação.
Os escritores elencados fizeram escolhas literárias que, no século XXI, problematizam e iluminam a participação negra na sociedade e cultura brasileira.
Ao considerar o enredo de uma obra literária, cabe perceber que a realidade encarnada por um personagem assoma devido aos gestos, vocabulário, expressividade e carga ideológica com que foi constituído.
Um escritor é sempre um homem de seu tempo, e, como sinaliza Adorno, a forma artística é a realidade social decantada [iv].
Em outras palavras, há historicidade mesmo nas fragilidades da forma literária alcançada. A excelência de um texto colocado como parte do cânone da literatura de um povo não apaga as fissuras, os problemas daquela forma específica, os quais também funcionam como as vozes de uma época.
Domício Proença Filho, no artigo “A trajetória do negro na literatura brasileira” (2004), alerta:
Em síntese, no âmbito do distanciamento que procurei caracterizar, consciente de não ter esgotado todos os exemplos representativos, notadamente em relação à produção literária do último século e do começo do atual, predomina o estereótipo.
O personagem negro ou mestiço de negros caracterizado como tal ganha presença ora como elemento perturbador do equilíbrio familiar ou social, ora como negro heróico, ora como negro humanizado, amante, força de trabalho produtivo, vítima sofrida de sua ascendência, elemento tranqüilamente integrador da gente brasileira, em termos de manifestações. Zumbi e a saga quilombola não habitam destaques nesse espaço
(PROENÇA FILHO, 2004).
Na literatura brasileira, a conquista da oralidade como forma verossímil de expressão a conformar como protagonista um trabalhador da lida campeira, o peão e cabo Blau Nunes, alcança êxito sob a pena de Simões Lopes Neto.
Fischer destaca a qualidade artística do escritor (FISCHER, 2012, pp 52-53) e endossa a apreciação de Antonio Candido que, caracterizando o narrador rústico, comenta estar ele situado “dentro da matéria narrada e não raro no próprio enredo” [v] (CANDIDO, 1972, pp. 77-92, apud FISCHER, 2012, p. 52).
Verificar o modo como o livro Contos gauchescos – publicado em 1912, e junto com Lendas do Sul a partir de 1926 – aborda a presença negra no Rio Grande do Sul requer que o analista verifique as relações entre o protagonista e as personagens negras com as quais Blau convive.
Dada a complexidade da representação de mulheres e homens negros e dos papéis que desempenham nos enredos, aproximar a lente nos contos em que esses seres ficcionalizados ocupam diferentes planos em relação ao narrador protagonista pode iluminar a presença do negro na obra simoniana e o gradual reconhecimento da participação dos africanos para com a formação cultural da sociedade representada.
Paralelamente, devido ao arcabouço da obra, faz-se necessária a análise de recursos de linguagem que remetam à contribuição africana. Parte do léxico aproveitado pelo escritor para personificar Blau Nunes apresenta matriz africana, dá voz ao narrador que utiliza a linguagem corrente e afeita à lida do campo para nomear o mundo sobre o qual fala.
Esse mundo em que ele circula está colocado do lado de fora da casa grande e das tendas dos generais. As cozinhas, os galpões, os bolichos, a lida campeira, o fogo de chão, são os lugares de onde fala o velho Blau.
UMA SOCIEDADE COM MULHERES E HOMENS NEGROS
Os contos “Negro Bonifácio”, “No Manantial” e “Melancia Coco-verde” [vi] apresentam personagens negros atuantes no desenrolar do enredo.
Nas duas primeiras histórias, Blau Nunes é testemunha, se não de todo, de parte dos acontecimentos. Já a outra história o vaqueano ouviu contar, ou porque se tratava de caso conhecido pelos andantes (p.72) ou porque “a própria gente do caso é que contava” (p. 118).
O livro está estruturado de modo a apresentar as histórias narradas pelo vaqueano a um patrício. Esse apresenta ao leitor ou ouvinte um genuíno “tipo – crioulo – rio- grandense (hoje tão modificado)” (p. 35).
Informa, ainda, que Blau trazia consigo “uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia” (p. 35) e, que, ao contá-los, fazia-o com uma “loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco” (p. 35).
Esse comentário deve alertar o leitor – não se pode ler os contos sem considerar que emoções, reflexões e relatos virão permeados por uma linguagem específica e própria a um gaúcho de 88 anos, peão, militar, paisano, provavelmente nascido em 1820.
As narrativas encadeadas oferecem justamente o olhar deste homem simples e rude, sua compreensão do que seja um gaúcho taura, do que seria a honra entre comandantes farrapos, de quem são os reinóis, de quais foram as épocas de fartura, de que as mulheres seriam todas um perigo aos homens, de quem eram as gentes da casa que faziam os relatos… E, não raro, os contos apresentam amigos de Blau e a gente com quem ele conversava.
O universo representado nos contos, embora mostre com freqüência os proprietários das terras e das estâncias, focaliza o ponto de vista do peão, do cabo, do andante.
O homem comandado e pobre está em primeiro plano: aos dominadores cabe o pano de fundo – fundo histórico que, por vezes, contradiz a impressão do velho paisano.
Se as terras eram fartas e eram meio sem dono (p.55) no conto “No Manantial”, em seguida o próprio Blau conta que foi com o consentimento do brigadeiro Machado que o Mariano passou a morar naqueles pagos (p. 56).
A verossimilhança alcançada revela-se no olhar perplexo, na tentativa do personagem narrador em compreender as contradições em que está envolvido.
Desse modo, o escritor pelotense fixa a imagem do vaqueano, do peão, do posteiro, do agregado, do soldado e do escravo.
PERSONAGEM PROTAGONISTA: O GAÚCHO ERA UM GOVERNO!
“Negro Bonifácio” tem como tema a violência e a mulher como “bicho caborteiro” (p. 53).
O ponto de vista de Blau traz à cena um homem negro discursivamente associado a animais como o touro e o porco e uma jovem mulher considerada como assustadiça e traiçoeira.
A história inicia com exclamações que descrevem Bonifácio e imediatamente levam à narração dos eventos. Ao contar o que presenciou, o velho Blau oscila entre a admiração e o temor provocados por aquele negro destemido, o protagonista do conto.
Bonifácio aparece como um negro “maleva”, “condenado” e “taura” (p. 44), “um governo” (p. 46), um “ginetaço” (p. 48) e um homem “feio” (p. 53).
“Maleva” e “condenado” associam-se à apreciação “aquele negro excomungado” (p. 49). “Taura”, “ginetaço” e “governo” funcionam como elogios e, ao mesmo tempo, um alerta – sozinho, Bonifácio decide, faz, enfrenta.
O papel central ocupado por Bonifácio está alicerçado tanto nas habilidades de taura e ginete quanto em sua capacidade de seduzir Tudinha, a moça bonita, “a chinoca mais candongueira que havia por aqueles pagos” (p.44). Atrevido, comparece à carreira com uma nova namorada e provoca o ciúme de Tudinha, de quem fora o primeiro amante. Impõe-se à jovem na presença de outros homens, enamorados pela moça, e de um admirador, o Nadico, cujo tordilho vencera a carreira.
O desentendimento com a Tudinha alcança os pretendentes da moça e, nas palavras de Blau, “Fechou o salseiro” (p.50). Para conter a fúria e o manejo de armas de Bonifácio são necessários vários homens juntos, todos contra o negro.
Bonifácio fere e mata; por fim, é morto e apanhado por uma boleadeira. Ainda assim, para aqueles que assistiram ao entrevero, o negro Bonifácio foi a figura que despertou interesse e assombro, tanto por sua habilidade na luta quanto por seu destemor.
O ponto de vista do narrador demonstra seu apreço por homens que sabem brigar, por boas lutas. “Que peleia mais linda” é a exclamação que abre a narração do entrevero. A descrição de adaga arremetida, dedos atorados, barriga aberta, sangueira por todo o lado, boleadeira zunindo (pp. 50-51) é minuciosa.
O conto não encerra com a morte do negro, mas com a cena em que Tudinha utiliza o facão para retalhar o gaúcho que caíra como “boi desnucado, de boca aberta” (p.52).
Segundo Blau, “a gauchada mirava, de sobrancelhas rugadas, porém quieta: ninguém apadrinhou o defunto” (p. 52). A raiva dela e o modo como usa o facão para cortar aquele morto revela que ele já fora o “camote” (p.51) dela.
Só então Blau conta ao patrício que escutara e soubera do relacionamento entre Tudinha e Bonifácio mais tarde, após os fatos narrados. E fica, para o peão, a pergunta: “Até hoje me intriga, isto: como uma morena, tão linda, entregou-se a um negro, tão feio?” (p. 53).
A dúvida do narrador, claro, esconde o que o próprio Blau sabe – aquele homem negro era um gaúcho e tanto! No entanto, para a admiração e a violência que ele e a Tudinha encarnam, o velho Blau não encontra explicação. Somente essa narração com ditados e termos retirados do trabalho no campo consegue abarcar a perplexidade do narrador.
Do princípio ao fim do conto, o tapejara demonstra conhecer bem a localidade e a gente do lugar – sabe toda a história de siá Fermina e de Tudinha, filha bastarda do capitão Pereirinha, um estancieiro.
Não será esse o único conto em que o velho tapejara usa formulações como “corria à boca pequena” (p. 45) ou “mais tarde vim a saber” (p. 52). O personagem narrador não apenas vivenciou muitas histórias como sabe ouvir casos e recontá-los.
PERSONAGENS SECUNDÁRIOS: A HISTÓRIA PEDE PASSAGEM
“No Manantial” (p. 54) traz essa conjunção de saberes – Blau apresenta ao seu interlocutor o “tremedal” (p. 54), pântano ou sumidouro, que conhece desde guri e narra eventos que ouviu contar e de que participou, todos envolvendo a família do Mariano. Para esse fim, indica o “umbu, lá embaixo, à direita do coxilhão” (p.54), a “tapera do Mariano” (p.54) e o lugar do tremedal, de onde mais “de uma rês magra ajudei a tirar de lá” (p. 54). Mostra a “roseira baguala” (p.55) no meio do manantial e explica que “quem plantou a roseira foi um defunto” (p. 55) e que as ruínas da casa do Mariano são mal-assombradas.
Descreve “uma pampa aberta” (p. 55), com gado cruzando livre nas querências, e informa: “vivia-se bem, carne gorda sobrava, e potrada linda isso era ao cair do laço” (55). Também informa quem mandava naqueles espaços ao referir-se ao Brigadeiro (p. 56). Essa introdução mostra a intimidade do narrador com o lugar, as gentes de lá e a lida do gado. Revela suas crenças e emoções, o apreço pelo lugar, pela época em que ocorreram os fatos.
Quando chegou por aquelas bandas, Mariano tinha “uma ponta de gado manso e uma quadrilha de ruanos” (p.56). Com a família formada por duas velhas – irmãs uma da outra –, e por uma filha, Maria Altina, o homem trazia “uns pretos campeiros e uma negra mina, chamada mãe Tanásia” (p. 56).
A adjetivação indica que aqueles homens negros trabalhavam com o gado, com a terra, impressão que o relato confirmará. Eram campeiros e, inclusive, iam para o trabalho sem o Mariano “Sol a nado o Mariano e uma das velhas foram para o Triste, para dar um ajutório. Os campeiros como de costume, para os seus serviços, uns de campo, outros de lenhar” (p. 61).
Adiantando a narração, Blau revela que o paisano era trabalhador e logo, com Maria Altina já com dezesseis anos, “o arranchamento era um paraíso: o arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação miúda, de tudo era uma fartura; havia galpões, eira, currais, tafona” (p. 57) – arranchamento com o consentimento do brigadeiro Machado, muito provavelmente nas terras deste.
Nessa época, “Mariano e as duas velhas traziam nas palminhas a pequena. Ela era o – ai-Jesus! – de todos, até dos negros” (p. 57). A apresentação daquele núcleo familiar sugere um relacionamento afetuoso entre os negros e Maria Altina.
A mulher negra, inclusive, está destacada pelo narrador desde quando é citada pela primeira vez, tanto pela identificação do nome próprio como pela alcunha “mãe”, termo que sugere ternura, que identifica alguém que cuida ou protege. Era ela quem ficava em casa com as mulheres brancas.
Mãe Tanásia estava em casa no dia marcado para o casamento de Maria Altina com o cadete André. Nessa ocasião, Chicão, homem bruto e inconformado em não ter a moça para si, invade a casa do Mariano sem a presença dos homens e tenta violentar Maria Altina.
Estavam no arranchado uma das velhas, a jovem e a negra mina. Essa, ao perceber o tamanho da “desgraceira, ganhou o paiol, escondendo-se e daí pôde bombear alguma cousa” (p. 64). Ao sair do esconderijo, viu que a velha fora morta e a sinhazinha fugira. Resolveu, então, ir até o Mariano para avisá-lo e para conseguir ajuda.
Mãe Tanásia acaba passando pelo manantial e vê o Chicão atolado, lentamente sugado, e a rosa colorada que enfeitava os cabelos de Maria Altina boiando. Logo percebe o que aconteceu e segue “lomba acima, apurando o passo, um pouco renga” (p. 65) em busca do Mariano.
No entanto, os campeiros chegam ao “sinhô velho” (p. 65) antes, assustados porque não encontraram nem Maria Altina nem mãe Tanásia em casa, e a velha – a avó – jazia morta. Todos os homens que estavam no Triste acompanharam Mariano. O narrador diz: “Eu estava nessa arrancada. Chegamos como um pé-de-vento e conforme boleamos a perna, vimos o mesmo que os negros contaram” (p. 66).
A partir desse ponto, Blau Nunes conta o que viu. Todos os acontecimentos anteriores foram narrados pela negra mina, como o narrador esclarece: “Na casa só ficaram, para irem mais tarde, a Maria Altina e a outra velha, que era a avó […]. Ficou também a negra mina, que viu tudo e foi quem depois fez o conto” (p. 61).
Elas preparavam-se para o casamento, a avó ainda estava “frigindo uns beijus” (p. 61) e a moça costurava um abrigo. Blau e os demais homens ficam sabendo que Maria Altina morrera no manatial por meio das mulheres que, seguindo a pé para a casa de Mariano, encontraram mãe Tanásia e chegaram ao tremedal em que só se via, ainda, o Chicão. Nem mais os cavalos eram visíveis. Mariano acaba por atirar-se no sumidouro.
Blau conta que, anos depois, soube que os negros, forros, se foram pelo mundo. No entanto, permaneceram “as duas mulheres, a mãe Tanásia e a sua senhora velha” (p. 70). O velho tapejara explica que o brigadeiro Machado, o pai do jovem que desposaria a Maria Altina, mandara buscar as duas para morarem na casa dele.
Nesse conto, os negros campeiros e mãe Tanásia funcionam como personagens secundários. Considerando o fundo histórico de que se alimentam os casos narrados por Blau, percebemos que os negros atuam na lida campeira sem serem supervisionados, ou controlados.
Mãe Tanásia acaba permanecendo ao lado da senhora velha, única sobrevivente da família de Mariano. Blau não detalha porque os negros forros seguiam com Mariano nem os motivos para a negra mina não ter partido – embora a expressão “sua senhora” (p. 70) pareça indicar ou que Tanásia não era liberta, ou que ela decidira ficar com a velha com quem vivia.
Dado o quadro descrito para o arranchamento, quem ouvir o caso ou ler o conto terá a sensação de que laços de respeito ou afeto ligavam aquele grupo.
Algo semelhante acontece em “Melancia Coco-verde” [vii]. O conto inicia com o encontro de Blau com o índio Reduzo. “E vá pitando um cigarro enquanto eu dou dois dedos de prosa àquele andante” (p. 118), solicita ao patrício que o acompanha.
Depois, o vaqueano explica a demora na prosa com o índio e elogia o conhecido de “um tope deste”, “bonzão”, “cuerudo” (p. 118). Entusiasmado, anuncia: “Vou contar-lhe uma alarifagem em que ele andou metido, e que só depois se soube, pelo miúdo, e isso mesmo porque a própria gente do caso é que contava’ (p. 118). Embora conheça bem o Reduzo, a história que ele conta fora relatada pelos envolvidos no caso: um índio, uma negra e dois enamorados.
Blau conta um caso sobre “artes de namorados” (p. 131). Costinha e siá Talapa namoravam em segredo. Só sabiam do amor dos jovens o Reduzo, companheiro fiel do Costinha desde a infância dos dois, e a ama de Talapa, uma negra que a criara. Tudo isso porque Severo, pai da moça, queria casar Talapa com um açoriano, um próspero comerciante da localidade.
Por essa época, estoura uma “gangolina” (p. 119), uma guerra. Costinha, já um cadete, e Reduzo deixam a lida campeira e se alistam. Na despedida, o casal de namorados troca juras de amor e uma senha – melancia, ela; coco verde, ele.
A ausência do Costinha oferece a Severo a oportunidade de casar a moça com o reinol (p. 122) sem criar desentendimentos com a família do cadete, os Lunanco.
Siá Talapa entra em desespero, chora e reza muito. É a ama quem a acompanha: “Uma negra que lhe havia dado de mamar era a única criatura que chorava com a moça … mas chorava escondido, a pobre, por medo do laço…” (p. 124).
A narração mostra que Blau, além de conhecer o afeto entre ama e siá, também sabia que a negra apanharia caso Severo soubesse que ela se compadecia frente à sorte da moça. Tratava-se de uma escrava.
O caracterizador “a pobre” identifica a solidariedade de Blau à mulher negra. Assim, Blau, a ama, o Reduzo e os enamorados discordam da iniciativa do estancieiro Severo.
Essa equação narrativa está em sintonia com o olhar de Blau Nunes, aliado aos que estão nos campos e na cozinha, amigo de índio e de contrabandista – todos eles guascas –. E, uma vez que a negra esteja solidária à moça, a mulher incorpora os mesmos valores que o velho paisano – a preferência pelo Costinha, homem do campo, da estância e das armas. Por esse motivo, Blau lhe devota simpatia.
A narração segue, apresentando uma situação que, certamente, uma das duas relatou: “De noite, fechadas no quarto, as duas abraçavam-se, rezavam” (p.124), e a ama pedia “Nossa Senhora! … manda nhô Costinha aparecer!…” (p. 124).
Considerando a posição de Blau no universo representado nos contos, ele deve ter tido acesso a esses fatos por meio da mulher negra. Blau, antes de narrar a aflição das mulheres, tecera amplos comentários sobre as comidas dos gaúchos, elogiando a cozinha campeira e aquela em que atuavam as mulheres negras ao fazerem beijus e canjica, por exemplo. Ele menciona: “[…] uma paleta de ovelha; e mogango e canjica e coalhada… e uns beijus e umas manapanças… e um trago de canha e um chimarrão…[…] isso, que é do bom e do melhor, para o ilhéu não valia nem um sabugo” (p. 121).
Blau Nunes opõe a cozinha da pampa àquela preferida pelo açoriano. Ele mesmo fica desgostoso, vê com revolta o casamento da bela gauchinha com o comedor de “sopa de verdura” (p. 121). E a valorização das comidas feitas na estância é um dos meios para valorizar Costinha e Talapa e a vida campeira em detrimento do comerciante português.
O auxílio do Reduzo é fundamental para o desfecho da história, o casamento do cadete e da gauchinha, os filhos da estância. Quando o índio chega à festa do Severo vindo da guerra – sob ordem do Costinha, a fim de impedir a união –, ainda é a ama quem sofre com siá Talapa: “A noiva estava como um defunto: branca, esverdeada, de olhos fundos […]; a negra, a ama, atrás dela, muito retinta, só mexia o branco dos olhos, parecia uma alma penada, do purgatório” (p. 128).
A maneira de narrar destaca o sofrimento das duas mulheres, colocando-as lado a lado, embora a ama esteja parada atrás da moça, segundo a posição que a mulher negra ocupava na casa, naquela época.
O vaqueano finaliza a história falando do destino do Reduzo. Após o casamento de Costinha e Talapa, o índio acaba por tornar-se “confiança da casa” (p. 131) dos dois jovens. Primeiro, toma “conta dum posto” (p. 131), ou seja, fica estabelecido em um local distante da casa da estância para fazer a guarda da propriedade. Depois acaba “promovido a capataz” (p. 131). Esse final retoma a estima por um “conhecido do outro tempo” (p. 118).
Os três contos [viii] aqui analisados demonstram a relevância de homens e mulheres negros na vida comezinha do RS do final do século XIX.
Todos os personagens apresentados pelo velho paisano desempenham papéis enfatizados pelo ponto de vista do narrador, quer porque encarnam as qualidades do gaúcho, quer porque preparam as comidas da estância, quer porque estabelecem um laço de cumplicidade com brancos desvalidos ou fragilizados.
Mãe Tanásia e a ama negra cuidam das sinhazinhas e são as contadoras dos casos, ajudam a alinhavar o acontecido. Os negros campeiros trabalham na lida do campo, com liberdade para ir e vir. O negro Bonifácio reúne em si todas as características que o narrador atribui a um gaúcho daquelas terras, ainda que em excesso.
Flávio Loureiro Chaves, em Simões Lopes Neto (2001) [ix], alerta para a construção literária de um protagonista, ou herói, no qual se encontram as contradições vivas do mundo apresentado nos contos.
E cita Ensaios sobre literatura, de George Lukacs (1965), para demonstrar que Blau Nunes constitui-se a figura em cujo destino se cruzam “os extremos essenciais do mundo representado, aquela figura em torno da qual se pode construir todo um mundo na totalidade de suas vivas contradições” (LUKACS, 1965, p. 30, apud CHAVES, 200, p. 20).
Leia a PARTE II deste artigo na próxima edição.
Notas:
i Em 2007, na UNISINOS, sob minha orientação, Paula Letícia Esmeris dos Santos apresentou o TCC Sob a capa dos regionalismos. Ela levantou termos de origem africana nos contos O negro Bonifácio, No manatial, O mate do João Cardoso e Melancia Coco-verde. Em pesquisa realizada na ocasião, tratava-se do primeiro trabalho a fazer esse estudo.
ii O pesquisador faz um trocadilho para enfatizar a intenção autoral em registrar “a força dos elementos naturais, dos animais e das pessoas, mas não um ‘naturalismo da sociedade’, ou ao menos da sociedade moderna, urbana, submetida à lógica do mercado” (P. 72).
iii Como o texto a ser contemplado é narrativo, não foram apresentados outros autores, tais como Oliveira Silveira, Luís Gama, Jorge de Lima, Vinicius de Morais, Antônio Callado e Domício Proença Filho.
iv Em textos como “Palestra sobre lírica e sociedade” e “Crítica cultural e sociedade”, por exemplo, Adorno traz essa ideia à tona. Ele aponta para a perspectiva de que as fragilidades em uma forma literária sinalizam impasses históricos que necessitam de interpretação.
v Fischer aborda o artigo de Antonio Candido, “A literatura e a formação do homem”, que compõe o livro Textos de intervenção. Candido coteja a literatura produzida por Coelho Neto e por Simões Lopes Neto.
vi As citações da obra Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto, apresentadas a partir de agora, estão na edição Contos gauchescos – Edição de Luís Augusto Fischer, 1998, da editora Artes e Ofícios.
vii Fischer comenta a anotação feita por Aurélio Buarque de Hollanda: “quase todos os elementos básicos deste conto se acham em Melancia e Coco Mole, narrativa que Sílvio Romero colheu em Sergipe” (p. 118). A criação simoniana faz do conto uma narrativa gauchesca.
viii Outros contos indicam a presença do negro, quer em locais de festa, quer no trabalho, tais como “O mate do João Cardoso” e “Jogo do osso”, por exemplo.
ix Em seu livro, Chaves utiliza a biografia do escritor apresentada por Carlos Reverbel e aporte teórico referente ao regionalismo e à literatura.