Arte: Histori-se

Análise da letra da canção Aquarela

A análise da canção Aquarela (Acquarello-originalmente escrita pelo italiano Guido Moura e gravada por Toquinho na Itália em 1983), se dará através da interpretação das metáforas e dos símbolos apresentados ao longo da canção.

Os símbolos podem ser universais, presentes no nosso inconsciente coletivo ao longo da História. Obviamente, estão situados no nosso tempo/espaço histórico.
Exemplo: o símbolo do avião não teria sentido no mundo antigo, antes da sua invenção…

Foto de Elizete Lacerda

 Dois tempos na canção

A letra da canção Aquarela se divide em dois tempos:

a infância, fase lúdica da vida do indivíduo, em que há uma organização e compreensão da realidade através da imaginação e elaborada no desenho da aquarela, ou seja, o lúdico formado por imagens e símbolos da infância.

E a fase adulta marcada pela realidade construída no processo desde a infância.
A imagética da elaboração da realidade pelo eu-lírico, se dá através da aquarela, tinta especial que se dilui em água…

Na primeira parte, o eu-lírico desenha um sol amarelo, imagem que remete à vida, à felicidade e à energia.

E com cinco ou seis retas, ele faz um castelo;
corre o lápis em torno da mão e obtém uma luva;
se faz chover, com dois riscos faz um guarda-chuva.

Todos esses substantivos: o castelo, a luva e o guarda-chuva remetem a símbolos universais de proteção.
A criança se sente “protegida” através da elaboração da realidade que ela crê que construiu em sua aquarela: a sua percepção da realidade.

Ainda outro poder fantástico da imagética infantil é a capacidade de transcender no tempo/espaço, o que lhe confere o poder imaginário da liberdade e da independência, que pode ser notado pela metáfora romântica da gaivota e do barco à vela:

“Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu…
vai voando, contornando a imensa curva, norte, sul
vou com ela, viajando Havaí, Pequim ou Istambul
Pinto um barco à vela, branco navegando[…].”

Em nossa cultura e tempo histórico, outro símbolo de viagem ou destino é o avião.

O eu-lírico infantil imagina um avião colorido a piscar, surgindo entre as nuvens; imagina a sua partida serena; entretanto, no seu imaginário, o avião (meio de transporte veloz) poderá partir ou pousar…

Na imagética do seu universo lúdico, o eu-lírico acredita que tem o poder de transcender ao tempo/espaço, através da imaginação e criatividade representada na sua aquarela.

 A fase adulta

Na segunda parte da canção, há a representação da fase adulta do eu-lírico, enunciada pela imagem de “bons amigos bebendo de bem com a vida” em um navio de partida.

É interessante que na fase adulta, o eu-lírico represente um meio de transporte onde são representados muitos pessoas ou amigos…

É a consciência da maturidade que envolve Outros na mesma condição de viajante.
Ele ainda consegue viajar através do recurso da imaginação
(de uma América a outra, eu consigo passar num segundo, giro um simples compasso, e num círculo, eu faço o mundo);
entretanto, os versos seguintes mostram que o poeta não tem mais o “controle”, o poder transcendental, antes conferido pela imaginação:

 “Um menino caminha e caminhando chega no muro
E ali logo em frente, a esperar pela gente, o futuro está
E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar, não tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar
Sem pedir licença, muda nossa vida, e depois convida a rir ou chorar”[…].

O muro surge como símbolo do limite, do obstáculo, mas não tão intransponível, pois ali logo em frente o futuro está…
No entanto, o futuro é denominado como uma astronave incontrolável, impiedosa e imprevisível.
Nos versos seguintes, o eu-lírico nos remete a uma estrada e a passarela:

“Nessa estrada, não nos cabe conhecer ou ver, o que virá
o fim dela, ninguém sabe bem ao certo onde vai dar”
vamos todos juntos numa linda passarela de uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá”.

Tanto os substantivos estrada como passarela remetem ao sentido de travessia, sendo um senso comum que representam a nossa vida ou destino.
Aqui, na fase adulta, o eu-lírico percebe que já não possui o controle do tempo, da sua vida ou do seu destino.

As dificuldades e imprevisibilidades da realidade da vida adulta se impõe ao eu-lírico como a representação de uma astronave que não pode ser pilotada.
Ou seja, estamos todos à mercê de um futuro, de um destino desconhecido.
Aqui, a astronave surge como metáfora rumo a um espaço desconhecido, ou seja, ao futuro ou à morte…

Arte: editora de Histori-se
Por fim, o eu-lírico toma consciência dos limites que a vida lhe impõe: que tudo, absolutamente tudo, é finito.

O poeta percebe a finitude da vida, que como uma aquarela, um dia, enfim, descolorirá.
Porém, ao descolorir, e retornar à página em branco, há a possibilidade de recriar uma nova aquarela:

o mundo representado poderá continuar a ser aquarela na imaginação e nas mãos de outras crianças e adultos.

marca Histori-se

A  Autora

Elizete
Elizete Lacerda é licenciada em Letras, revisora de textos, escritora. Algumas de suas áreas de interesse e atuação: cinema e análise literária (especialmente análise de canções)
Nota:
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