CARMEN, ALICE E HELENA – RETRATOS DO FEMININO EM SOLBERG

Imagem editada por Histori-se.
Vera Haas apresenta uma cinesta que 'escreve com a câmera uma história sobre o feminino'. Estamos falando da brasileira Helena Solberg. Aproveitem este delicioso texto.

DIADORIM
CINEMA  & LITERATURA

CARMEN, ALICE E HELENA – RETRATOS DO FEMININO EM SOLBERG

Em minha opinião, Helena Solberg é, essencialmente, documentarista: uma diretora que se debruça reflexivamente sobre os recursos discursivos que estruturam esse tipo de audiovisual. No entanto, conheci sua obra quando assisti ao encantador Vida de menina (2004). Não se trata de um documentário, mas de uma ficção biografia[i], ou cinebiografia, adaptada a partir do livro publicado sob o pseudônimo Helena Morley. O filme motivou minha busca por outras obras da mesma realizadora.

Solberg conquistou um cinema autoral com documentários em que apresenta o olhar das mulheres sobre si mesmas[ii]. A cineasta constrói a narração com a voz de entrevistadas/os, com manchetes ou legendas de jornais, com fotos de época, seja de particulares, seja da mídia, enfim, com discursos provenientes de diversas fontes e que possam compor as reflexões que apresentam o tema e o ponto de vista do documentário.

Também encontramos estratégias resultantes da alternância de discursos do audiovisual, como a voz da entrevistada em off[iii] e um cenário que contrasta com o que ouvimos no áudio; ou, ainda, a dramatização – recriação – de cenas da vida de uma figura famosa entre depoimentos de entrevistados, de modo a misturar recursos comuns a relatos ficcionais àqueles frequentes em documentários, realização que caracteriza o docudrama (2001, p. 73).

Solberg coloca em xeque a presença de um ponto de vista definitivo, de uma verdade que encerre aqueles acontecimentos a outra perspectiva. Em suas produções, o/a narrador/a assume identidade de gênero e de classe social[iv].

Helena Solberg (fotografia_autoria desconhecida)

Assistir a obras como o curta A entrevista (1966) e a trilogia iniciada com The Emporing Woman e finalizada com Simplesmente Jenni, em que a condição feminina em diferentes classes sociais é o foco da diretora; ou ao inteligente From the ashes… Nicarágua Today (Das Cinzas… Nicarágua Hoje) –, trabalho pelo qual recebe, em 1983, o prêmio National Emmy Award devido à produção de um retrato reflexivo da condição feminina através de entrevistas realizadas com uma família nicaraguense, acompanhada pela câmera; ou ainda ao Palavra (en) cantada (2008), cujo foco muda de direção a fim de refletir sobre a música popular brasileira, enfim, assistir a esse conjunto é também fazer um estudo sobre História, Cinema e Narração.

Karla Hollanda, em Mulheres atrás das câmeras – as cineastas brasileiras de 1930 a 2018 (2019), organizado por Luíza Lusvarghi e Camila Vieira da Siva, situa o curta com o qual Solberg inicia seu cinema autoral:

“[…] pode-se dizer que A entrevista é fundante do cinema moderno brasileiro de autoria feminina – e não só entre os documentários” (2019, p. 69)

Essa importância da película está calcada em depoimentos “ambíguos, inseguros e não assertivos” (2019, p. 69), em declarações que a diretora não realinha sob a voz de quem dirige, como se fossem possíveis respostas definitivas, mas às quais garante “o que deveria mesmo lhes ser inalienável: todo o direito do mundo ao titubeio” (2019, p.69). A hesitação ante o redemoinho da vida e as certezas categorizantes da sociedade parece muito mais honesta e próxima de uma face da verdade do que as vozes em off dos documentários tradicionais, a conduzir narrativas lineares em nome deste ou daquele discurso hegemônico. Desde o início de sua trajetória, a cineasta opta por construir audiovisuais com ponto de vista, com lugar dentro da História, com pertencimento. Do conjunto de realizações de Solberg (atualmente com 83 anos), chamam minha atenção dois filmes.

CARMEM MIRANDA – BANANAS IS MY BUSSINES  e VIDA DE MENINA

Carmen Miranda – Bananas is my bussines (1994) é um docudrama ou documentário dramatizado (CASCAIS, 2001, p.73) acolhido com entusiasmo e premiado: Prêmio de Melhor Documentário Dramático no Festival de Chicago (1995), Melhor Filme pelo Júri Popular, Prêmio Especial do Júri e Prêmio da Crítica no Festival de Brasília (1994), Melhor Documentário no Festival de Cinema Novo Latino-americano de Havana (1995) e Melhor Filme no Festival de Montevideo (1996).

Cartaz do docudrama Carmen Miranda – Bananas is my bussines (Autoria desconhecida)

Vida de menina (2004), baseado no Diário de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrrel Caldeira Brandt (1880-1970), conquista o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cinema de Gramado (2004), arrebatando ainda prêmios nas categorias Melhor Roteiro, Fotografia, Direção de Arte, Música e Júri Popular. Primeiro longa-metragem de caráter ficcional, Vida de menina repete o sucesso de Gramado e obtém o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular no Festival do Rio de Janeiro (2009).

Cartaz de Vida de Menina (autoria desconhecida)

Mariana Tavares (2019) comenta que o docudrama procura compreender a causa da caricaturização da imagem de Carmen Miranda nos EUA. Quanto ao lugar que ocupa na história do cinema brasileiro, a pesquisadora afirma que a utilização da ficção, o extenso trabalho de pesquisa e as dezesseis entrevistas com pessoas que conheceram Carmen transformaram o filme em “um dos mais relevantes documentários da década de 1990, período da retomada do cinema nacional” (2019, p. 173).

Carmen Miranda – Bananas is my bussines coloca em cena duas figuras complementares: Carmen Miranda e Helena Solberg.

A diferença entre ambas? Carmen nasceu portuguesa e residiu desde muito novinha no Rio de Janeiro. Era filha de um barbeiro, moça carinhosa e atenciosa, como revelam declarações e cartas. Trabalhadora, ela gostava de cantar, dançar e fazer chapéus. A habilidade com os chapéus estendia-se ao cuidado com o próprio figurino.

Helena – nascida na classe média do Rio de Janeiro, filha de pai norueguês e de mãe brasileira –, cursa a Faculdade de Línguas Neolatinas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ocasião em que conheceu o Cinema Novo com Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Nelson Pompéia, Celso Guimarães, entre outros. No docudrama, é a memória da jovem Helena, impedida de ir ao enterro de Carmen Miranda por determinação dos pais, o ponto de partida da narração.

Vida de menina apresenta parte da juventude de Helena Morley, menina moça espevitada, que corre por campos e sobe em árvores, escuta histórias e escreve as suas próprias.

A cineasta concede a palavra à jovem mineira em estilo que Tavares (2019) observa com acerto: a narração é conduzida pela voz over, como se a menina “estivesse lendo em voz alta seus escritos” (2019, p.173). No filme em que ficção, biografia e documentário estão imbricados, a poesia narrativa cresce se considerarmos seus filmes anteriores.

Cenas com muita luminosidade desvelam uma Helena Morley capaz de refletir e chegar a conclusões próprias, por vezes muito maduras e de análise contundente no que se refere à Diamantina de 1893. De descendência inglesa por parte de pai e portuguesa por parte de mãe, dona de um tipo físico que a distancia de outras meninas da localidade, a protagonista apresenta situações vividas em uma época em que o olhar afetuoso e crítico da jovem incide sobre o mundo adulto e os costumes da sociedade local com lucidez. A atitude de deixar falar a Helena de Alice Brandt funciona como expressão da voz de Helena Solberg, que, se mais uma vez escreve com a câmera uma história sobre o feminino, filma também uma história sobre meninas que crescem para produzir seus próprios discursos, sejam literários ou audiovisuais. 

Em Carmen Miranda – Bananas is my bussines, a personagem título sai do Brasil para conquistar a si mesma – como brasileira – e ao Brasil. Carmen dança bem, canta bem, tem um gingado que encanta mundo a fora. As bananas, os balangandãs, o exotismo do figurino e o brilho dos olhos levam Carmen Miranda a produto de exportação do Brasil – o país vendia uma imagem. No entanto, a classe média brasileira – e os jornais – a recusavam. Carmen quer ser aceita, quer ser reconhecida pelos brasileiros e pelo Brasil, ela quer a aceitação da classe que a recusa, ela deseja um passaporte brasileiro – que nunca receberá.

Em Vida de menina, o cotidiano em Diamantina molda a menina, apesar das enaltecidas linhagens de além mar: a inglesa e a portuguesa. Helena é brasileira e não é brasileira porque deve fazer como as moças inglesas. De espírito vívido, tem na avó materna a proteção de que necessita para todas as travessuras e teimosias – incluam-se, aqui, ideias e atitudes nem sempre adequadas às meninas daquela época e daquele lugar. Frequenta as aulas de etiqueta da tia Madge e corre por campos e riachos com Arinda, a amiga negra, e os irmãos, Renato e Luisinha. Helena está à frente de sua época. Ela reconhece os movimentos da sociedade a que pertence, tem consciência do lugar que ocupa por ser menina e pobre e testa os limites de sua própria ousadia em relação à comunidade em que está inserida como resistência ao menosprezo que sua singularidade lhe granjeia, provocando estranhamentos sem perder de vista o que é comum ou familiar. As histórias e reflexões que experimenta têm no diário o espaço para o amadurecimento da personalidade da menina moça e a realização do que viria a ser uma obra literária canônica. A jovem tem o vigor das meninas que recusam os papéis sociais pré-definidos e das mulheres contadoras de histórias Das mãos buliçosas de Helena, surge o retrato de uma sociedade patriarcal, machista, opressora e escravocrata, e de algumas mulheres que resistem enquanto amorosamente se apóiam.

Os filmes permitem que acompanhemos o olhar da diretora sobre essas duas figuras femininas, ambas descendentes de famílias em que o estrangeiro e o nacional se misturam.

O docudrama sublinha o não pertencimento de Carmen: enquanto os balangandãs e as roupas desenham o exotismo e a sensualidade a que a artista acaba reduzida nos EUA[v], as reportagens que pouco valorizam a cantora sinalizam, para a classe leitora dos jornais brasileiros, o estranhamento e a negação de tudo o que a figura de Carmen Miranda poderia representar para o Brasil. Cenas do filme como o plano detalhe[vi] que oferece ao/à espectador/a os tamancos da cantora em uma das primeiras dramatizações do filme, ou a escolha de cenas retiradas dos filmes em que Carmen atuou, contrastam com o plano detalhe da mão pequena na calçada das estrelas em Holywood, com a figura da moça que faz chapéus e com a voz da jovem Carmen cantando um tango[vii]. Paralelamente, as declarações dos entrevistados – referentes à doçura da jovem ou à sua firmeza quanto aos músicos que a acompanhariam no exterior – e as reflexões da narradora sobre si própria e o desejo que tinha de compreender a cantora constroem uma ponte entre Carmen, Solberg e nós, os espectadores brasileiros. Essa narração com vários tipos de discursos produz espanto em quem assiste ao docudrama porque percebe, inexoravelmente, a diferença entre a “Pequena Notável” que deixou o Rio de Janeiro e a Carmen que morre na Califórnia, vítima da depressão e de um ataque cardíaco. Percebe, ainda, o quanto a figura de Carmen se modifica a cada olhar, re-significando nossa relação com a cantora e com nosso país. Acabamos por assumir dúvidas e hesitações da narradora – não há respostas para a maior parte das perguntas, afinal, nós, de uma ou outra forma, talvez também tenhamos perdido a “oportunidade de ver Carmen Miranda” (1994).

O filme mostra como a história de pertencimento forjada para Carmen e para o Brasil como parte da política de boa vizinhança entre as nações estadunidense e brasileira produziu estranhamento e distanciamento. Se por um lado, ao longo dos 15 anos em que morou nos EUA, Carmen fica cada vez mais kitsch, as canções que interpretou e o samba que promoveu fizeram-na um mito sempre associado ao Brasil. A recusa desse mito por parte da classe média brasileira e dos pais da narradora do docudrama, Helena Solberg, não impede que a curiosidade de uma mente jovem e aberta, proibida de despedir-se da cantora, revisite a história de Carmen e a sua própria. Não por acaso o filme encerra com imagens que remetem a um encontro entre a mãe e a “Pequena Notável”, e a voz da narradora Helena a declarar que vai tudo bem lá em casa. O docudrama oferece recursos para esse recordar que documenta, de modo a reatar momentos partilhados por uma sociedade e momentos relacionados à vida privada – dessa relação emerge o espanto, a percepção de um erro, de um mal, de um gesto que endossou uma figura latina sensual e abandonou a riqueza do samba e a originalidade dos figurinos[viii]. O Brasil esqueceu-se de si; a moça que não pode ir ao enterro de Carmen nunca esqueceu o Brasil e Carmen. No exterior, reencontrou-se com a cantora, trouxe-a para casa, apresentou-a a sua mãe e a todos nós.

A ficção biografia enfatiza os mundos entre os quais a menina se debate – as ideias e os hábitos ingleses em contraste com a tradição portuguesa muito alicerçada na figura do tio e, ainda, o contraste dessas culturas com aquela que se formava na vida comezinha, entre ex-escravos, colegas e vizinhança. No diário, Helena Morley converte sua narração em olhar que enxerga o familiar com estranhamento: o afeto que perpassa as memórias tem a força para denunciar o que é cruel, o que é falso, o que é discriminação de etnia ou de classe. A narração de seu próprio ponto de vista permite à personagem encontrar-se com valores que considera importantes e recusar o que lhe é “repugnante” ou “falso”, termos que a menina usa com certa frequência. No caderno que usa para escrever suas histórias, essa Helena mineira confessa seu juízo de valor sobre si mesma, a família e os vizinhos.

A narrativa fílmica abre com fotos em preto e branco e o som de gorjeios e de sinos como pontuação que secunda a narração visual. Esse início apresenta uma narração por meio de texto escrito, a qual situa o espectador quanto ao tema – “uma menina começa a escrever seu diário” (2004) –, o momento político – “O Brasil acabara de abolir a escravatura e de proclamar-se República” (2004) –, a situação econômica e decadente de Diamantina e a permanência de alguns estrangeiros que ali chegaram em busca de fortuna. As imagens fotográficas apresentam grupos, provavelmente de familiares ou amigos. Homens e mulheres brancos, de todas as idades, mulheres negras, cachorro e uma paisagem rural dão lugar a um enquadramento em plano geral: vemos a torre vermelha da igreja e uma paisagem ampla, esverdeada. Em seguida, conhecemos Helena Morley no dia de sua crisma: a câmera em enquadra o rosto sardento, dois olhos azuis muito abertos e cabelos ruivos parcialmente cobertos por um véu branco em um primeiro plano: a menina não perde uma única palavra da história contada pelo padre. E, quando o pároco conta a história da menina que morreu e do capeta que viera pegar “por detrás do altar o corpo da pobre desgraçadinha” (2004), Helena, em close, inclina a cabeça, e a diretora revela as pernas da “desgraçadinha” arrastadas em meio a chamas, atrás do altar. Assim é Helena Morley – sensível, imaginativa, apreciadora de histórias. Assim é Helena Solberg, sensível às narrativas de mulheres e apreciadora de histórias.

Ao longo do filme, vários momentos enfatizam o gosto da menina pela contação de histórias, seja oral ou escrita. A sequência de cenas em que vemos, em plongée[ix], no primeiro plano da tela, a menina triste, sentada em um galho no alto da árvore, e, em segundo plano, a avó que, sob a árvore, vem saber das tristezas da neta, essa sequência revelará ao espectador uma menina sensível e imaginativa e uma avó contadora de histórias que alegram e surpreendem. A conversa entre o professor negro Teodomiro e a aluna leitora de Viagem ao centro da terra quando o mestre descobre que ela não prestava atenção à aula para escrever suas próprias histórias no livro de Júlio Verne dimensionam a importância daquele momento para as histórias que Helena precisaria escrever e ler para a classe, a qual se tornaria sua plateia cativa. As cenas de plano conjunto em que uma Helena aflita lê suas composições para a vovó amada, então com a saúde já fragilizada, promovem a reunião de duas figuras femininas empenhadas em um afeto profundo e recíproco cujo ponto de articulação é o desejo de escrever da menina e a admiração pela história escrita por parte da avó.

Outras cenas envolverão figuras femininas admiráveis, como a vizinha mal-vista, única a socorrer Helena e a mãe quando esta adoeceu. O gesto solidário da mulher a quem antes a menina devotava todos os pré-conceitos que já ouvira desmancha a animosidade da criança. O reconhecimento produz em Helena reflexões sobre esquisitices, coisas que todo mundo diz e aquilo que ela, Helena, passa a conhecer sobre a pessoa. As mulheres negras que trabalham e moram no sítio da vovó, como Generosa, que participa das conversas entre neta e avó, e as crianças negras que moram no sítio, como a menina Arinda, parceira de folguedos, sonhos e alegrias, fazem parte das memórias da infância que vão do bolo de fubá às brincadeiras no riacho. Helena gostava de estar na casa de vovó, de conviver com a gente negra, era um mundo mais alegre sob o ponto de vista da jovem. Sem a dona da casa, a cena em que a carroça se distancia, levando Arinda para outro lugar, o sítio da tia Chiquinha, e separando-a de Generosa, revela uma Helena entristecida, mais madura e só, e uma escravidão que não fora de fato abolida.

As figuras masculinas são atingidas por classificações impiedosas quando caem no desagrado da pequena escritora. No plano conjunto em que o tio senta ao lado da sobrinha e tenta pegar-lhe a mão, o enquadramento em plano detalhe mostra ao espectador a agonia da menina que, com um movimento brusco retira a mão de dentro da mão do tio Geraldo. Aliás, a menina classifica como fingidos aqueles em que percebe a representação de um sentimento movida por interesses particulares, sempre em benefício do fingido. As cenas em que uma Helena desolada vai em busca do pai após uma forte reprimenda materna, por outro lado, trazem enquadramentos que valorizam o ambiente rural e o cabelo avermelhado da menina[x], particularmente quando esta olha para o pai, dentro da água, na busca vã pelo tesouro há tanto acalentado. Helena consegue tirá-lo dali e levá-lo para casa.

A narração conduzida por Helena Solberg aproxima-se da literatura de Helena Morley: ambas colocam-se no limiar entre a narração autobiográfica e a ficcional.

Esses limites levam ao espectador uma sensação de espanto e de verdade – de espanto porque nos parece incrível que uma menina olhe a si mesma, a família e a sociedade com tal lucidez, assumindo seus malfeitos, mostrando-se reativa às ofensas e carinhosa e extremada em situações que lhe exigem atitudes mais adultas; de verdade porque enxergamos a arrogância dos ricos e a soberba de alguns estrangeiros, a crueldade da pobreza e da escravidão e a não valorização de meninas e mulheres, ao passo que, paralelamente, vemos o amor familiar, a amizade entre colegas de colégio e amigas de infância, a cumplicidade na difícil etapa da adolescência para a vida adulta, a solidariedade entre moradores e comerciantes da localidade, os rituais religiosos que requerem a participação da comunidade. Há muito realismo no relato das duas Helenas e ênfase naquilo que importa para uma menina de 14 anos, entre 1893 e 1895. Assim a Diamantina que colore o pano de fundo da narração assemelha-se a um documento de época. E a complexa rede de relações que as Helenas nos apresentam ganha as cores da História e da vida.

O docudrama revela uma Carmen que amava o Brasil e a cultura nascida na Lapa, mas transforma-se num ícone, perde a complexidade do mundo de onde veio, fica kitsch nos EUA.

Os símbolos que carrega a levam para longe do país que ama, o que lhe foi familiar a torna estrangeira novamente tanto porque submetida a uma indústria americana quanto porque a classe média brasileira continuava de olhos postos na Europa. A voz da narradora endossa esse movimento de evadir-se da pátria, de ficar só e estrangeira e recorda a Carmen que a Helena Solberg de 1994, cineasta reconhecida por sua obra, pode trazer para si e para nós.

A ficção biografia mostra o frescor da juventude e de uma inteligência ousada, que não se submete ao que lhe determinam.

Helena Morley quer escrever e escreve. Pensa e questiona o mundo em que está; resiste negociando, gritando, abraçando. O olhar de criança desvela a formação de uma personalidade que traz como herança, muito mais que as culturas de Portugal ou Inglaterra, o sentimento de pertencimento à Diamantina e à infância ali vivida. Como a Helena que dirige audiovisuais reencontrou Carmen e o Brasil em um docudrama, a Helena de Alice Brandt escreve e reencontrou Diamantina e seus personagens em uma ficção biografia. E a Helena cineasta de 2004 estende as mãos à Helena escritora, ambas contadoras de histórias que falam de pertencimento. A narração permite constituir os fios da pertença. Os dois textos, o fílmico e o literário presente na voz over, assumem posições e não ocultam hesitações, medos, afetos interrompidos – só assim é possível recordar e dar as mãos.

Recordar significa trazer de novo ao coração, fazer passar novamente pelo coração. Do latim, apresenta o sufixo re- e o substantivo cordis, que quer dizer coração. “Forte coisa”, como diriam dona Teodora e Helena Morley.

Que as Carmens, Alices e Helenas nos ajudem a dar as mãos e reencontrar o Brasil!

A AUTORA
VERA HAAS
Doutora em Literatura. Professora EBTT. Jornalista.

NOTAS
[i]Nessas notas, bateremos um papo à parte,certo? Os dois substantivos são propositais, lembram que biografia e ficção têm algumas intersecções que interessam ao documentário…
[ii]Inclusive e inicialmente, mulheres da classe média brasileira, recorte na contramão do Cinema Novo e do cinema preocupado com a voz do povo brasileiro.
[iii]Todas as menções à linguagem do audiovisual podem ser esclarecidas em um dos dois endereços eletrônicos oferecidos nas referências. Super indico o site e o livro primeiro Filme, do Carlos Gerbase, mas indiquei também o material de Lucia Lonso porque estudei cinema com o professor Francisco Araújo, no Curso de Jornalismo da Unisinos, e aprendi a linguagem que Lonso descreve: menos moderna, mas também eficiente.
[iv]O que, a mim, encanta. Afinal, narrativas com ponto de vista exigem reflexão, riqueza de vocabulário e de estratégias, pertencimento…
[v]A caricaturização da cantora brasileira – sim, para mim, ela foi uma artista brasileira – servia aos interesses estadunidenses de rebaixamento do Brasil e da América Latina – tudo o que fosse gostoso e prazeroso poderia satisfazer os apetites do homem branco norte-americano. Há estudos sobre os filmes em que Carmen atuou e sobre as canções que interpretou, os quais analisam o papel designado a Carmen enquanto trabalhou nos EUA. E outra fonte seria a biografia da cantora escrita por Ruy Castro.
[vi]Idem ao exposto acima, na nota 3.
[vii]O tango e o samba bebem nas raízes africanas, na música feita nas periferias, na Argentina e no Brasil. Na verdade, tudo se conecta…
[viii]Recordo o maravilhoso Secos e Molhados e um Ney Matogrosso que finca o pé no Brasil. O cantor recusa um convite similar ao de Carmen Miranda, como declara à Revista Rolling Stone.
[ix]Idem ao já exposto sobre a linguagem – ou sintaxe – do audiovisual. Neste caso, plongée refere-se ao ângulo em que a personagem está – focalizada de cima,ângulo acima dos olhos, fica pequena, como se houvesse algo maior acima dela.
[x]Uma metáfora para o ouro, criando um paralelo e uma oposição – Helena é um tesouro, vale mais, portanto, que as pedras que o pai tanto procura. E ele se ausenta da família constantemente, ocupado com os tesouros da mineração. Essa cena e o diálogo entre pai e filha trazem um insight precioso sobre a expressão amorosa juvenil.

Dados para citar este texto:
HAAS,Vera. Carmen, Alice e Helena – retratos do feminino em Solberg. HISTORI-SE, 1ª edição, Porto Alegre, março 2021, disponível [on-line] em <  CARMEN, ALICE E HELENA – RETRATOS DO FEMININO EM SOLBERG >.

REFERÊNCIAS
CASCAIS, Fernando. Dicionário de Jornalismo – as palavras dos media. São Paulo/Lisboa: Editorial Verbo Lisboa, 2001.
GERBSE, Carlos. IN: <  primeiro filme_enquadramentos >. Acesso em 06.03.21.
HOLLANDA, Karla. “Documentário [e afins] feitos por elas – um painel”. IN: LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila Vieira da. Mulheres atrás das câmeras – as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
LONSO, Lucia. Tipos de planos e sua importância para a narrativa visual. IN: <planos_narrativa visual  >.  Acesso em 06.03.21.
SOLBERG, Helena. Carmen Miranda – Bananas is my business. 1994, docudrama, longa-metragem, 35mm, colorido, 92 min. IN: <  carmen-miranda-bananas-is-my-business > (filme completo).
SOLBERG, Helena. Vida de menina. 2004, ficção, longa-metragem, 35mm, colorido, 101 min. DVD.
TAVARES, Mariana. Helena Solberg: trajetória singular de uma cineasta brasileira. IN: LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila Vieira da. Mulheres atrás das câmeras – as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.

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