Bonecas feitas em tecido. Artesão Júlio. Marca: Feito com amor.
Úrsula,
Mulheres que escrevem

MARIA FLOR

Era um dia claro, contudo, não muito quente. Maria Flor desceu do carro.
Observou a estrada de terra que, à medida em que se aproximava do seu destino, ficava cada vez mais estreita, com saliências e ganhava a presença de estreitas e curtas pontes sobre riachos chamadas de “mata burros”.

Tomou um pouco de água e ficou por ali, cismando um pouco.
A memória trouxe uma pequena Maria Flor para lhe acompanhar.

Parte de suas lembranças eram narrativas de sua mãe e de sua avó, que diziam do seu nascimento e dos planos de sua mãe para o seu destino.

Um desses planos/sonhos, ela cumprira e, agora, retornava advogada ou, como diria sua avó, “doutora nas leis” para a comunidade quilombola onde nascera.

No último telefonema de sua mãe, ela entendera que a Maria Flor advogada chegaria em boa hora ao quilombo. A comunidade aguardava a concessão do título de propriedade de seu território: um título de propriedade coletiva feito em nome da Associação dos moradores. Precisava de acesso a várias políticas públicas.

Nasce Flor

Simplícia contava nas rodas de conversa da família, mas especialmente e com mais detalhes nos momentos em que se detinha a trançar sem pressa os cabelos da filha: um misto de arte e de carinho.

A Comunidade Café dos Livres, no cerrado mineiro, tinha as suas origens nos tempos em que a escravidão era, ainda, legalizada no Brasil. Seus fundadores eram pessoas escravizadas que conseguiam fugir do destino que parecia estar traçado.

Aos poucos, libertos foram se juntando à comunidade. Também chegaram algumas pessoas livres que por diferentes motivos deixavam as cidades e iam viver nesse lugar que conseguia ser, naquele tempo, ainda, mais longe.

Viviam do que plantavam, criavam, pescavam e coletavam e dos produtos resultantes das trocas de suas produções nas vendas das vilas e povoados próximos. E assim foi por muito tempo, até mesmo, depois da Lei Áurea.

Com o tempo, o quilombo não conseguiu produzir o suficiente para o sustento de sua população. De início, algumas mulheres saíam das comunidades para trabalhar nas fazendas e cidades das redondezas. Depois, grande parte das mulheres jovens e quase todos os homens passaram a trabalhar nas colheitas, em especial, da cana-de-açúcar e do café plantados em fazendas de particulares ou em terras de empresas agrícolas nos períodos de safra.

Nessas épocas, o quilombo ficava com a população formada por alguns homens que não tinham condições de seguir para o trabalho em outras terras, crianças e mulheres. Então, a gente via a liderança feminina forte da comunidade.
Duas dessas líderes eram a avó e a mãe de Maria Flor.

Imagem: autoria não conhecida.

Simplícia, filha de Maria, gostava de flores. A flor que mais apreciava era a gerada pelo pé de café. Quando os cafezais do quilombo floresciam em miúdas flores brancas e perfumadas, ela se encantava. Cultivava camélias, rosas, margaridas e outras espécies de flores com muito capricho. Fazia belos buquês e vendia tudinho nas feiras próximas.

E, por querer homenagear a mãe e amar as flores, entendeu que seu parto na época do cafezal florido, em uma noite estrelada, sinalizava o nome de sua filha: Maria Flor.

Com a paciência de quem cultiva jardins, educou a filha e, desde cedo, de tudo fez para que Maria Flor estudasse: ela seria doutora nas leis que tanto precisava entender.

Bonecas feitas em tecido. Marca: Feito com amor.

Flores, café, arroz e doces

As flores de Simplícia deram sorte ao quilombo. Eram tantos os pedidos que muitas outras mulheres passaram a cultivar flores para enfeitar casas, templos, dias festivos e, também, alguns dias tristes.

Além das flores, o quilombo tinha um café especial. Cultivo tradicional, sustentável: uma pequena produção. Produzia, também, um arroz avermelhado diferente do arroz que a gente conhece. Fazia doces de frutas das estações: gostosuras muito procuradas. E ali estava um sinal de que, na comunidade, havia grande potencial para gerar renda para sua população.

A Comunidade Café dos Livres

O cafezal que produzia as lindas flores que encantavam Simplícia, como já disse, dava origem a um café muito apreciado e produzido em pequena quantidade. Era este produto que, quando vendido nas feiras e vendas da região, o povo chamava de ‘café dos livres’ e assim, ninguém explica como e quando, o quilombo passou a ser conhecido como Comunidade café dos Livres’.

Novos desafios, novos tempos

Maria Flor chegava trazendo conhecimentos para somar aos saberes da comunidade. Muitos foram os desafios ao longo da história do quilombo. Mas, ainda, havia muito para ser pensado, criado e resolvido naquela comunidade.

A menina que pulava amarelinha, que brincava de roda, que ouvia histórias sobre os seus antepassados: agora retornava ao lar.

Notas:
As personagens são fictícias.
A Comunidade Café dos Livres, assim como sua história, é fictícia.
Qualquer semelhança com histórias pessoais ou de comunidades é mera coincidência.

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