HISTÓRIA E SUAS MANAS
MATERNIDADES
Pode parecer uma ideia absurda, mas a exaltação e a ‘romantização’ do amor materno é um fenômeno, historicamente, recente. Muito do atribuído à maternidade é uma construção social. Não estou dizendo que é falsa a existência de amor das mães por seus filhos e filhas. Digo da normatização e da idealização da maternidade e do considerar o amor materno como algo da natureza feminina (um instinto). Do derivar da possibilidade biológica de gestar, parir e amamentar para um lócus sócio-cultural que transforma essa potência em determinação natural com implicações nas esferas econômicas, políticas, assim como, nas relações de poder.
A maternagem (práticas e ideias sobre) variou (e varia) pelos espaços/tempos.
Historicamente, na civilização ocidental, a maternidade e a maternagem, enquanto condições e/ou necessidades instintivas das mulheres, é percebida em discursos médicos, políticos e em tratados filosóficos datados a partir de meados do século XVIII. Por exemplo, ao longo – do que se convencionou identificar na História da Europa como – Idade Média, tanto o entendimento de infância, assim como, o de maternagem diferia do propagado nos discursos a partir do século do Iluminismo.
Pensando sobre as ideias amor materno, maternidade como destino de mulheres e maternagem como uma função instintiva feminina, é interessante considerar que, somente após a segunda metade do século XVIII, observamos uma grande divulgação desses pensamentos. Podemos muito refletir sobre esse processo que, entre outros aspectos, moldou mentalidades, leis e políticas públicas ao longo dos séculos XIX, XX e, ainda influencia, no XXI. Nesse espaço, dedicaremos a atenção ao imaginário da maternidade como realização e função feminina no Brasil: a mulher-mãe brasileira.
E aqui cabe um esclarecimento: a mulher-mãe brasileira é a que está presente nos discursos médicos, jurídicos, políticos e filosóficos. As mulheres brasileiras, essas tão diversas como reais, são as que vivenciam a vida cotidiana nos diferentes tempos e espaços.
Todo um tratado de funções, agir e modo de ser mãe, aos poucos, foi constituído. E, concomitantemente, também, um modelo idealizado de figura paterna. Mas, se o homem não assume esse papel? Há as instituições do Estado e/ou os seus braços filantrópicos. Como? Suficientes? Há as mulheres como arrimo familiar.
Voltando ao tratado da maternidade ideal, um dos seus princípios diz caber à mulher-mãe nutrir, o que, inicialmente, nos primeiros tempos do bebê, é dedicar-se ao amamentar.
E se amamentar é algo natural para as mulheres, regrado por mil discursos médicos e higienistas, algo vai mal com as mulheres que não conseguem desempenhar essa missão a contento. O que fazer? Primeiro incentive-as. Depois, lhes diga que todas o fazem e que todos os sacrifícios são poucos para cumprir tão nobre missão. E, enquanto isso… Chora o bebê. E se ela não consegue desempenhar tão elevada missão… Seguem os julgamentos alheios sobre ela, a ‘culpa materna’.
A narrativa, presente no parágrafo anterior, pode parecer exagero. Mas não era e não o é para muitas mulheres que vivenciam puerpério. O modelo e a idealização do amor materno e do instinto maternal possuem efeitos colaterais.
Em especial, no segundo reinado, a sonhada modernização da sociedade brasileira enxergou as mulheres como possíveis aliadas na disseminação de seus valores. Eram elas, as educadoras naturais. Retornando à amamentação, o aleitamento materno foi propagado como essencial e tarefa exclusiva e natural da mãe. Negar-se a amamentar, não ter condições de amamentar, contratar amas-de-leite entraram na lista das ações/fatos fora da ordem da natureza feminina. E imbuída dessa tarefa de aleitamento, cuidados com a prole, cuidados e gerenciamento da casa – cada vez mais – a vida feminina foi atrelada à esfera privada.
Os anos finais do século XIX e o século XX tiveram forte marca da busca de mulheres pela emancipação feminina: a partir do pleito ao direito a uma educação igualitária à oferecida para o sexo masculino, pelo direito ao voto e à participação na vida política do país e, ainda, por direitos civis. Muitas foram as mudanças na sociedade brasileira e nas condições de vida das mulheres, entretanto, permanecem resquícios do ideário da Rainha do Lar e é, ainda, forte o ideário da maternidade como algo intrínseco à mulher.
O papel das mulheres nas famílias, na economia e na sociedade sofreu alterações ao longo do século XX. Uma consequência foi o aceite de não ser a maternidade o único destino para as mulheres e o reforço do pensamento de que a maternidade deve ser uma livre escolha de cada mulher. Entretanto, ainda, é senso comum que o desejo da maternidade, mais cedo ou mais tarde, desabrochará em cada uma das pertencentes à categoria do sexo feminino (e poderá ser atendido ou não).
Mas se nossa sociedade idealiza a maternidade, podemos dizer que ela não é acolhedora com as mães. A maternidade, desde a fase de gestação, significa uma odisséia para grande parte das brasileiras. A ausência de políticas públicas eficazes e capazes de atender a todas as mães em suas diversidades é um dos grandes problemas enfrentados pelas que adentram ao mundo da maternidade.
Pelo álbum das maternidades no Brasil, enxergamos os diversos Brasis marcados pelas desigualdades que perpassam nossa sociedade. Percebemos preconceitos e barreiras que mulheres grávidas e/ou mães, em geral, enfrentam no mundo do trabalho (e não apenas). Adentramos no contexto da saúde pública brasileira que não alcança a todas as mães a possibilidade de um pré-natal adequado.
Entender a maternidade para as mulheres que desejam ser mães como uma seara dos direitos humanos é algo que, na prática, parece distante. E isso é complicado de entender, posto que os diretos das mulheres, em geral, são convergentes com os direitos das crianças e dos adolescentes. Ao negar suportes sócio-econômicos e culturais às mães, concomitantemente, nega-se condições básicas à infância e à juventude. Portanto, uma sociedade que não é amorosa com suas mães, também, não gosta de suas crianças.
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