Sustentadas por Fios Invisíveis
Embora muita coisa tenha mudado, ainda é comum ouvirmos de alguém, ao se referir à avó, à mãe ou à companheira:
“ela não trabalha,
é dona de casa”.
Essa mulher, via de regra, trabalha desde que acorda até a hora de dormir.
Cuida da casa, dos filhos.
Mantém o companheiro alimentado e satisfeito, inclusive sexualmente.
Se for um homem, não será dono de casa;
será preguiçoso, alguém que não gosta de trabalhar.
Existem muitos homens que hoje, ao lado de mulheres que realizam trabalho remunerado, têm assumido o cuidado dos filhos e da casa.
Nada que inverta a regra geral de que são as mulheres, ainda, as mais sobrecarregadas com tarefas de cuidado.
Só chamo a atenção para o julgamento moral que também recai sobre os homens, para que a gente possa perceber a profundidade dessa questão social.
Vivemos em uma sociedade, na qual trabalhar não é escolha.
Se não vendemos força de trabalho, não temos acesso a alimentos, remédios, roupas ou moradia.
Não temos, portanto, condições materiais para existir.
Essa venda de força de trabalho não pode acontecer sem que haja uma estrutura de cuidado a sustentá-la.
Esses são os fios invisíveis:
quem prepara a comida, arruma a cama, lava a louça, limpa o banheiro, educa, ampara os mais velhos, satisfaz sexualmente.
As atividades de cuidado são muitas vezes realizadas sem remuneração direta.
Isso não significa que elas estejam fora da lógica do assalariamento.
Viver trocando trabalho por capital é uma escolha social e política que nos vincula à necessidade de trabalhar por salário, durante a maior parte do tempo, mas que também vincula as pessoas, em sua maioria mulheres, que realizam atividades para as quais não há salário.
Todos os trabalhos que antes descrevi (e tantos outros nos quais podemos pensar) são condição de possibilidade da troca de trabalho por capital.
Tem uma autora, Silvia Federici, que no seu livro O Calibã e a Bruxa sustenta a hipótese de que o capitalismo foi resultado
de uma contrarrevolução conservadora, feita a partir da dominação dos corpos femininos.
Ela mostra como as mulheres, perseguidas como bruxas, foram destituídas de seus saberes.
As bruxas eram as parteiras, as mulheres que viviam em comunidade, aquelas que dominavam ervas medicinais e abortivas.
Mulheres que tinham liberdade sexual e que eram críticas à imposição do modelo patriarcal de família.
Eliminar a maior parte delas era necessário dentro do processo de conformação a uma nova forma de viver em sociedade.
Era preciso adaptar as mulheres à condição de moradoras de um lar, que passaria a ser sua responsabilidade.
A hipótese, portanto, é de que houve um processo histórico profundamente violento de imposição de um discurso que cria e naturaliza a ideia de que cuidar é função feminina.
O capitalismo pressupõe que tudo, inclusive a água, o alimento e a nossa força física e mental, sejam considerados como mercadorias passíveis de troca.
Isso, porém, nada tem de racional ou intuitivo.
Ao contrário, intuitivo seria produzir e compartilhar alimentos, por exemplo.
Convencer as pessoas de que trabalhar não é mais uma necessidade que decorre da servidão, mas sim uma forma de exercer liberdade, não foi tarefa fácil.
A questão aqui é que parte desse processo de naturalização da violência do trabalho obrigatório passa pela utilização da força de trabalho feminina sem qualquer remuneração, no âmbito doméstico.
Passa pelo controle dos corpos femininos.
Fazer com que as mulheres permanecessem em casa, cuidando do marido e dos filhos, não era útil apenas para viabilizar a reprodução da força de trabalho produtiva.
Era também uma forma bastante eficiente de controle da circulação da propriedade.
Muitas autoras mostram, com dados históricos, a relação direta entre o capitalismo e a ideia de família formada por um homem e uma mulher,
que devem relacionar-se de forma monogâmica, afinal os filhos herdam os bens.
Essa monogamia é exclusivamente feminina.
Afinal, para os homens, a rede de prostituição de corpos femininos e feminilizados sempre garantiu a possibilidade de satisfação sexual.
E sempre contou com um silêncio cúmplice.
Ao casamento e à monogamia feminina alia-se uma diferença bem marcada entre o espaço privado (da casa) e o espaço público.
Daí porque por tanto tempo mulheres brancas não puderam trocar trabalho por salário.
Dentro de casa, essas mulheres podiam ser duplamente dominadas:
pela dependência do trabalho de seus maridos e companheiros e
pela invisibilidade do trabalho de cuidado.
Dona de Casa
Dizer que alguém é “dona de casa” implica, para o senso comum, dizer que essa pessoa não realiza trabalho capaz de gerar renda,
o que teve implicações (e ainda tem) na possibilidade de separar-se, no direito ao patrimônio do casal, na guarda dos filhos, etc.
A dependência do salário do homem, por sua vez, aprofunda a dinâmica de violência doméstica.
Esses homens, sobre os quais recai a necessidade de prover o sustento da família, se sentem autorizados a extravasar toda a frustração do dia a dia,
através do exercício do que Rita Segato chama de um mandato de violação.
Afinal, eles são criados para serem violentos.
Desde as brincadeiras até o imperativo de enfrentamento físico de quem porventura os desafiar, nossos meninos aprendem muito cedo que ser homem é relacionar-se através da violência.
É preciso muita reflexão e resistência, para que um homem – nesse modelo de sociedade – não utilize a violência em suas relações sociais e afetivas.
O elemento que falta nessa história é a racialização dos corpos negros e indígenas, fruto do processo de invasão europeia nas Américas.
Mulheres negras e indígenas não eram “donas de casa”.
Assim como seus homens, foram alvo da exploração do trabalho sem qualquer remuneração, de forma escravizada.
Por isso, quando as mulheres brancas conquistaram o “privilégio da servidão”
(expressão que tomo emprestada de Ricardo Antunes – que se caracteriza pela possibilidade de vender trabalho em troca de salário),
foram as mulheres racializadas e pobres que elas contrataram para realizar as tarefas de cuidado em suas casas.
Empregadas Domésticas
No caso do Brasil, o fio que une historicamente a escrava do lar, a mucama, e a empregada doméstica, é demonstrado com clareza nos textos de Lélia Gonzalez.
Eis porque até hoje são as mulheres negras a maioria das trabalhadoras em atividades de cuidado remuneradas, tanto no âmbito doméstico quanto nas empresas e serviços públicos, contratadas através do artifício perverso da terceirização.
O cinismo escravista permitiu, inclusive, que durante a pandemia essas atividades fossem consideradas essenciais, para o efeito de fazer com que essas trabalhadoras seguissem em atividade, expondo seus corpos ao vírus.
Ainda assim, continuaram mal remuneradas e com proteção jurídica inferior àquela que se confere às demais trabalhadoras.
É importante não esquecer: a primeira pessoa que perdeu a vida com COVID-19 no Brasil foi uma trabalhadora em âmbito doméstico.
Uma mulher negra.
Há um longo caminho a seguir, na reparação histórica devida às mulheres e, em especial, às mulheres racializadas.
Passa pela problematização da moralidade hipócrita sobre a sexualidade feminina; pelo repensar das formas de união e, por consequência, de circulação de bens.
E passa pela compreensão do caráter coletivo do que chamamos cuidado.
Esse é um tema para o qual o espaço de um artigo torna-se curto demais.
Cuidar de crianças e idosos, satisfazer necessidades sexuais ou alimentares, não é tarefa de mulheres.
Nenhuma de nós tem aptidão para isso.
Também não é algo de que a família precise dar conta sozinha.
Coletivizar o cuidado pode ser um caminho importante para criar fissuras nesse modelo de convívio social tão profundamente racista e sexista.
Problematizar verdades aparentemente incontestáveis, sobre o que é uma boa mulher, uma boa mãe, uma boa esposa, uma boa filha, também é importante.
Para finalizar, quero apenas registrar que o direito do trabalho – área com a qual atuo – tem tudo a ver com essa história.
Reduzir jornada, garantir estabilidade no emprego e direitos trabalhistas básicos, como a carteira assinada e, portanto, o acesso ao sistema de seguridade social, é também indispensável.
Quem trabalha doze horas por dia, ganha pouco e vive sob a ameaça constante da despedida ou mesmo sem ter a carteira assinada, dificilmente terá condições de pensar e de realizar mudanças nas práticas que nos fazem reproduzir e reforçar as diferentes formas de opressão sobre as quais falei aqui.