ÚRSULA
MULHERES QUE ESCREVEM
Tem sido tudo estranho. Tem sido tudo muito, muito sombrio.
Eu tenho desesperançado tanto que quase não escrevo. Quero, mas não consigo.
Palavras não dão conta deste tempo. Parecem todas dispensáveis.
O jeito como o sol incide sobre o sofá, o reflexo das nuvens no tampo de vidro da mesa da sala, o contraste da maçã verde sobre a louça azul: tudo belo e tudo vão.
Vou percebendo essas coisas bem pequenas. Acho belas, sinto culpa.
Vim assim dois mil e vinte inteiro. Vinha assim neste início de um ano sobreposto a outro ano que ainda não acabou.
260 mil mortes, e eu pousando o olhar numa maçã.
Mas aí, aí veio um final de tarde. Eu andava com o Claudio, de carro. Foi numa curva. De repente. Numa curva da cidade.
A tarde ia acabando. No alto de um morro, por entre as árvores por uns instantes, o carro em movimento, deu pra ver o sol se jogando sobre o rio. Dourava tudo. Na playlist do carro, a voz do Arnaldo Antunes e a voz limpa da Carminho. E a voz da Carminho naquela canção era isto: era este tempo inteiro.
Depois, em casa, bem mais tarde, quando entrei no quarto pra dormir, era lua cheia. Prateou a cama. Iluminou tudo. De não precisar acender abajur. Meu livro sobre a cama, os óculos. Quase cem anos contados numa biografia.
Fiquei encantada. Acendi toda a esperança.
Quis escrever, não consegui. Ainda agora, eu não consigo.
Talvez seja mesmo isto: há um vilarejo ali onde areja um vento bom.
Talvez seja mesmo isto: é sombra mesmo quando há luz.
E é noite e é silêncio.
E seguimos.
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A AUTORA

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