Diadorim
Cinema & Literatura
Leitoras e leitores que me acompanham, entrego a vocês a última coluna de Diadorim do ano de 2021.
Trata-se de um texto bem diferente daqueles que já publiquei: nada de análises!
Afinal, quando chega o Natal, costumamos pensar em crianças e presentes. Já, no Ano Novo, temos o hábito de rememorar nossas ações, nosso ano, quiçá, recordar e repensar hábitos de vida.
Então, hoje, divido com vocês um presente de Natal que resultou em um hábito para a vida.
A MENINA E O VELHO
De uma viagem dessas que a mãe fizera, ela lhe trouxera aquele livro. A menina adorava o livro.
Carregava-o sempre consigo e, impreterivelmente, abria o livro de capa dura na página em que a pequena chinesinha olhava para um castelo inacessível, cercado por vasta cerca de rosas brancas, de onde se destacava apenas um tufo de rosas vermelhas.
Era sua figura predileta, e ela conseguia permanecer longos minutos imóvel, imersa, olhando para aquele desenho em preto-e-branco, no qual apenas os lábios da menina e as rosas tinham a cor escura do vermelho.
Pela manhã, Clara frequentava a aula, à tarde podia brincar, ler, enfim, divertir-se.
Seu passatempo predileto sempre foram os livros.
Aquele era desses poucos livros que ela relia.
Não a história inteira, mas os trechos de que mais gostava.
O início da história, na escola da Rosinha, a menina chinesa, não tinha muita graça.
Isso de meninas com vários nomes de flores, hum, era difícil de acreditar.
Na sua sala de segundo ano, por exemplo, não tinha um monte de meninas com nomes de flores. Aliás, nenhuma. Isabel, Margarete, Elizabeth (a Lisa), Ana Cristina, Paula, Rosaura (quase, mas não era), Carolina, Margit, Vera Lúcia, Estela (quase uma estrela!)…
Fizera uma lista.
Não, decididamente, não havia nenhum nome de flor.
Não, essa história era mal inventada, que graça tem juntar meninas com nomes como Margarida, Violeta, Hortênsia, Líria e…o que mais, mesmo?
Mas Clara amava, profundamente, a história do castelo.
E sentia uma grande afeição por aquele velho chinês que contara a história para a Rosinha e para ela.
A chinesinha fora surpreendida pelo estranho no meio da floresta, perto do castelo que adorava contemplar. Apesar do susto da menina chinesa, as duas ficaram encantadas com as palavras do velho.
Há muito tempo, moravam naquele castelo um poderoso rei e sua família. A filha desse rei deveria se casar.
O pai determinara provas para os pretendentes à mão de sua filha. Assim saberia quem realmente amava a jovem. A princesa só casaria com o homem que vencesse a cerca criada pelas rosas – e pelas ordens do rei ao seu jardineiro.
Um príncipe, vindo de muito longe, senhor de antigos reinos, abriu caminho entre a sebe de rosas com as próprias mãos.
Seu sangue tingiu de vermelho um grande tufo de rosas que, desde então, nascem dessa cor como a lembrar a prova de amor do jovem.
Por esse motivo, segundo o velho, Rosinha deveria orgulhar-se de seu nome.
Difusamente, Clara percebia a relação entre o nome da protagonista e o esforço do jovem príncipe.
Mas a encantava sobremaneira o encontro inesperado na floresta, a história que desvendava a cerca de rosas e um castelo que guardava, atrás de paredes grossas (era o que ela imaginava), uma história tão linda!
E o velho parecia dizer a Clara que essas pessoas de cabelos brancos (ou de tranças muito longas…) e curvadas sabem tanta coisa…
Ela queria muito saber essas histórias todas!
Por essa época, Clara ganhou novos vizinhos.
Tratava-se de uma senhora loira, muito bonita, sempre vestida com trajes vistosos (era essa a palavra que a mãe usava), uma menina mais ou menos da sua idade e um menino menor.
O pátio entre as duas casas era dividido por uma cerca de arame farpado.
Sobre a cerca, estendiam-se os galhos de uma laranjeira que nunca dera laranja alguma.
E esses galhos ficavam acima da cerca, já sobre o pátio vizinho.
Clara adorava subir naquela árvore e foi dali que iniciou o diálogo com os vizinhos. Com o tempo, a cerca de arame farpado foi facilmente vencida por ela, seus irmãos e os filhos da senhora vistosa.
Além das brincadeiras, todos eles assistiam aos filmes que passavam na televisão durante a tarde. Fãs de Perdidos no espaço, imaginavam que os galhos da laranjeira eram uma espaçonave.
A forma de forquilha aumentava a semelhança dos dois galhos estendidos sobre a cerca com a espaçonave da família de Penny.
Nada mais natural do que transformarem aqueles galhos em sala de pilotos.
Certo dia, já cansados da brincadeira, Lúcia (assim se chamava a menina) expressou o desejo de ouvir histórias.
Depois de alguma hesitação, Clara cedeu.
Era a primeira vez (de muitas outras vezes, ela saberia depois) que contava histórias. Ainda assim, resolveu inovar: misturou histórias e inventou mais um pouco.
O problema, depois, foi encontrar um final, teve que espichar uns acontecimentos para criar um desfecho.
Clara passou alguns dias refletindo sobre a experiência recente.
Chegou à conclusão de que encompridara muito a história, história curta era melhor.
Apesar de tudo, eles haviam pedido mais um conto, ela ficara de pensar, afinal usara quase todo o seu estoque de uma só vez.
Poderia contar a eles uma aventura da Emília. Ou, então, da Penny. Da Rosinha?…
Não. Aquela era a sua história, não tinha vontade de dividir com outras crianças.
Tinha que pensar.
Talvez a história do Pinheiro de Natal!
Sim, essa, com certeza, essa eles não conheciam. E logo seria Natal.
Ou contaria a da Acendedora de fósforos?
Não, era muito triste.
Só de pensar, Clara entristeceu-se
(e sentiria esse peso toda vez que lembrasse a pequena acendedora e sua pobreza).
A história do Pinheiro era melhor, ninguém ficaria triste.
A menina meneou a cabeça ruiva para afastar aquela inoportuna melancolia.
Sim, o Pinheiro, estava decidido.
Clara foi até a pequena coleção de discos infantis e retirou dali um livro que trazia, na capa, a imagem do Pinheiro de Natal.
Colocou o disco na eletrola e sentou no chão, sobre as pernas cruzadas.
Abriu o livro, estava absorta.
Seria bom ler de novo, afinal, não queria esquecer as partes importantes da história.
Na noite daquele dia, Clara sonhou com o velho chinês.
Sonhou que se encontravam, e ela lhe contava uma história.
E o velho, risonho, a escutava.
Nota: as imagens sem identificação de autoria fazem parte do acervo da autora.