APRENDIZAGENS INTERCULTURAIS: MULHERES QUE CONTAM HISTÓRIAS

Uma casa de reza desenhada po um estudante Mbyá Guarani.
Márcia Luísa Tomazzoni , educadora da rede estadual do Rio Grande do Sul desde 2014, atuante na escola de uma aldeia do povo Mbyá Guarani desde 2019, traz um relato de suas aprendizagens interculturais como docente na Tekoá (aldeia) Guajayvi, que se localiza em Charqueadas (RS) e compartilha uma história tradicional guarani: uma narrativa carregada da cosmologia e da história milenar dos Mbyá. Confira!

Sou educadora da rede estadual do Rio Grande do Sul desde 2014 e atuo numa aldeia do povo Mbyá Guarani desde 2019, contexto a partir do qual vou relatar um pouco das minhas aprendizagens interculturais como docente na Tekoá (aldeia) Guajayvi, que se localiza em Charqueadas (RS).

Conheci a Tekoá Guajayvi – que na língua portuguesa significa “guajuvira”, árvore nativa dos estados do sul e do sudeste do Brasil -, procurando uma escola indígena para atuar como docente, pelo desejo despertado a partir de uma convivência intercultural que vivenciei com estudantes em 2017 numa outra Tekoá, a Pindó Mirim, aldeia que fica em Viamão, também no Rio Grande do Sul.

Tekoá Pindó Mirim

Pela minha iniciativa como docente da Escola Estadual Normal 1º de Maio, vivenciei com duas turmas de estudantes não indígenas uma experiência que marcou profundamente a minha vida e a minha formação como educadora, que despertou sentidos, sensibilidades e pensamentos, questionamentos adormecidos pela invisibilidade a que são submetidos os povos indígenas em nosso país e que é plasmada em nosso modelo educacional.

A Tekoá Pindó Mirim fica num espaço próximo à mata e possui uma escola estadual. Neste dia, conversamos, compartilhamos alimentos, brincadeiras, uma trilha e nos envolvemos num diálogo de saberes sobre a cultura indígena vivida pelas famílias desse coletivo. A atmosfera era propícia para o diálogo e a reflexão, num espaço silencioso e calmo, rodeado de árvores, casinhas de madeira e muita terra.

Tekoá [1] é o nome dado ao espaço que a comunidade guarani habita, conforme Ladeira:

Os lugares onde os Guarani formam seus assentamentos familiares são identificados como tekoa. Conforme tradução de Montoya (1640), Tekoa significa ‘modo de ser, de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, costumes’. Tekoa seria, pois o lugar onde existem as condições de se exercer o ‘modo de ser’ guarani. Podemos qualificar o tekoa como o lugar que reúne condições físicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas que permitem compor, a partir de uma família extensa com chefia espiritual própria, um espaço político-social fundamentado na religião e na agricultura de subsistência. (LADEIRA, 1992, p. 97)

Enquanto me movia na terra da Tekoá Pindó Mirim, um turbilhão de perguntas me provocava: como eu ainda não conhecia o povo Mbyá Guarani, nosso vizinho ao longo de quase todo o país e por diversos outros países da América Latina? Os Mbyá Guarani estão presentes em, pelo menos, oito estados brasileiros – ES, PA, PR, RJ, RS, SC, SP, TO –, Argentina, Uruguai e tem sua maior população no Paraguai [2].

Como pude pensar que existia “o índio” – esse estereótipo generalizante –, ignorando as existências das centenas de diferentes povos indígenas (são mais de 305 apenas no Brasil, conforme o Instituto Socioambiental [3]), suas línguas e seus saberes, seus costumes e seus fazeres, suas vidas?

Onde estavam esses conhecimentos ao longo da minha formação educacional? Ao longo dos anos escolares, aprendi que existiam “índios” no Brasil, que eles se caracterizavam por usar pouca roupa, acessórios feitos de penas, como o cocar e arco e flecha. Poucas páginas dos livros didáticos, já no ensino médio, eram reservadas para falar sobre a população indígena na época da colonização e da exploração do pau-brasil – e dos indígenas. Nenhuma informação sobre o pensamento, o modo de ver e de viver dos indígenas, seus costumes e conhecimentos.

Já no ensino superior, no curso de Filosofia, com uma perspectiva especificamente eurocentrada, a questão indígena não ganhou espaço sequer como pauta de discussão, pela sua relevância na formação da população e da sociedade brasileira, na história do país. Só tive contato com a questão indígena como educadora, ao trabalhar matérias de humanidades no ensino médio. E, então, na oportunidade dessa visita a uma aldeia Mbyá Guarani, através de um projeto de interação escola-aldeia realizado pelo museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

As descobertas na Tekoá Pindó Mirim foram tão intensas que levei a narrativa e as imagens registradas dessa experiência para a sala de aula, para trabalhar o “Dia do índio”, comemorado no dia 19 de abril no Brasil. Decidi que, a partir dessa experiência, iria levar, todo ano, meus estudantes a uma aldeia para conhecer a cultura indígena; sairíamos dos limites das migalhas de matéria que os livros didáticos contêm sobre essa temática, sobre essas vidas. Importante dizer que fundamento minhas práticas na lei 11.645/2008 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)[4] , que institui a obrigatoriedade do estudo da cultura e história afro-brasileira e indígena na educação básica.

Como educadores, devemos ter o comprometimento ético de construir uma relação de conhecimento e de convivência – na medida do possível – com os povos do nosso entorno, no caso do estado do Rio Grande do Sul, os povos Mbyá Guarani, Kaingang [5] e, em registros mais atuais, o povo Xokleng [6].

O conhecimento se constrói pela experiência, pelo vivenciar, pelo sentir, portanto, nossos limites devem estar além dos livros que foram elaborados a partir de uma perspectiva eurocêntrica, que exclui a importância das existências e dos saberes dos povos ameríndios.

O que é a interculturalidade?

Há alguns parágrafos, eu falei sobre uma “convivência intercultural”. Mas o que é a interculturalidade? Seu conceito é amplamente estudado na contemporaneidade, especialmente por alguns movimentos de pensamento, os quais buscam dar alguma indicação no sentido de definir e de delimitar seu significado, o qual trarei aqui de forma breve.

A interculturalidade é uma relação entre, pelo menos, duas culturas, em que ambas são consideradas em termos de igualdade, em que são, ambas, reconhecidas nos seus valores, seu modo de pensar e de viver, numa relação de construção mútua, de diálogo e de aprendizado mútuo. Mas a interculturalidade é mais, segundo Walsh:

La interculturalidad entendida críticamente aún no existe, es algo por construir. Por eso, se entiende como una estrategia, acción y proceso permanentes de relación y negociación entre, en condiciones de respeto, legitimidad, simetría, equidad e igualdad. Pero aún más importante es su entendimiento, construcción y posicionamiento como proyecto político, social, ético y epistémico – de saberes y conocimientos-, que afirma la necesidad de cambiar no sólo las relaciones, sino también las estructuras, condiciones y dispositivos de poder que mantienen la desigualdad, inferiorización, racialización y discriminación (WALSH, 2009, s. p.).[7]

Como fala a autora, a interculturalidade, compreendida de forma crítica, é um espaço em construção, uma intenção, um fazer que se coloca em desenvolvimento quando intentamos posicionar as diferentes culturas em status de igualdade. Devido ao longo e complexo processo histórico de desigualdade estabelecido a partir da colonização que foi imposto aos povos indígenas, o processo de “descolonização” de nossas formas de compreender nossa relação e de nos relacionarmos com eles é tarefa árdua, porém urgente. Por isso, a preocupação de educar para uma sociedade intercultural a partir da experiência de vida, da construção de um diálogo:

El desafío del diálogo intercultural radica precisamente en que el reconocimiento de la diversidad y de las tradiciones indígenas no se convierta simplemente en un asunto del pasado sino en que tengan la posibilidad y el derecho de autodeterminación en el futuro. Lo cual significa participación política en todos los niveles de la organización del mundo de hoy. El interculturalismo plantea el problema no exclusivamente de reconocer la diversidad en un nivel retórico sino el derecho a hacer el mundo de otra manera (FORNET-BETANCOURT, 2007, p. 47).[8]

Um diálogo que se move na direção do reconhecimento da diferença, da diversidade que possa se realizar no presente e no futuro, como direito dos povos indígenas. Diferentemente da visão estereotipada de que os povos indígenas são “povos do passado”, a interculturalidade busca estabelecer o reconhecimento da existência e dos modos de viver desses povos na contemporaneidade.

A convivência intercultural a que me referi foi uma experiência poderosa em minha vida, e posso afirmar que, para as estudantes que me acompanhavam também (todas estudantes do curso de magistério da Escola Estadual Normal 1º de Maio), sacudindo crenças e impressões construídas ao longo de toda uma formação educacional e autoformação de vida. E sustento que tivemos uma experiência de cunho intercultural, pois, no tempo em que estivemos na Tekoá, nos despimos de nossos preconceitos e estereótipos, nos soltamos de nossas certezas, já solidificadas pela educação eurocentrada, tratando com respeito, atenção e sensibilidade o modo de pensar e o modo de viver das pessoas Mbyá Guarani. Nos envolvemos, nos interrelacionamos com curiosidade, com a dedicação de quem estava vislumbrando um novo horizonte sendo descortinado à sua frente.

APRENDIZAGENS INTERCULTURAIS NA ESCOLA INDÍGENA MBYÁ GUARANI

Em 2019, ingressei na escola indígena como docente, em virtude desse acontecimento provocador, que iniciou em 2017, numa construção do meu ser como educadora e como pessoa que passou a admirar e desejar saber cada vez mais sobre o modo de pensar e de viver dos Mbyá Guarani.

A Tekoá Guajayvi se localiza na ERS401, na via de acesso à Charqueadas, num espaço que era reservado ao plantio de eucalipto. Hoje, pelo esforço da comunidade, que está no local desde 2014, a mata nativa começa a ressurgir. Atualmente, são mais de 20 famílias na aldeia, tendo mais de 50 estudantes matriculados na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Guajayvi, do jardim ao 9º ano.

Conhecer a Guajayvi representou uma transformação profunda na minha vida, troquei de cidade (da escola de Porto Alegre para Charqueadas), troquei de escola, troquei de currículo (o currículo no ensino indígena tem suas especificidades), tive que reinventar minhas práticas pedagógicas e repensar os conhecimentos trabalhados em sala de aula.

A interculturalidade me exigia a não reproduzir o conhecimento eurocentrado que aprendi ao longo da minha formação escolar, a não me colocar no papel de “colonizadora” como quem detém os conhecimentos verdadeiros e absolutos, a não excluir a língua guarani das nossas atividades de aula.

Iniciando numa escola bilíngue, em que os estudantes e a comunidade falam duas línguas, o português e – predominantemente – o guarani, me vi, muitas vezes, navegando sem bússola, à deriva, e tive que buscar muitos referenciais pedagógicos, didáticos, filosóficos, sociológicos e culturais para tentar acompanhar a profundidade do desafio que se colocava à minha frente.

Tive que me situar e me repensar como educadora para poder construir um trabalho pedagógico com intenção intercultural – e falo intenção, pois são muitos os desafios para realizar um trabalho de fato intercultural, uma vez que carregamos inúmeros preconceitos que formam nosso modo de realizar o trabalho educativo; às vezes, tão sutis que não percebemos.

Nesse caminho, tentando trilhar o caminho da interculturalidade, construímos um alfabeto bilíngue, elaboramos diversos quadros de palavras nas nossas línguas, trocamos histórias de família. Não tenho dúvidas de que parte da “bússola” que encontrei para me guiar está envolta em afeto e muita dedicação ao querer aprender, ao querer compreender o outro. E, para isso, é necessário ouvir.

Ouvi muitas conversas sem entender – não falo guarani, estou aprendendo palavras e significados aos poucos, no embalo e ritmo das nossas aulas – e senti os silêncios do amanhecer, compartilhando o chimarrão em volta do fogo. Me deixei atravessar por outra epistemologia, outro modo de produzir conhecimento, outro modo de troca, de transmissão de valores – e isto é interculturalidade também. É convivência profunda e sentida nos mínimos gestos.

Numa dessas manhãs de aula em que eu buscava um rumo aos nossos trabalhos, estava com o planejamento pronto para propor que contássemos, oralmente e por escrito, nossas histórias de vida, começando pelo nosso cotidiano. A atividade foi realizada, cada um contou um pouco do seu dia-a-dia, mas a contação do cotidiano veio com uma ideia dos estudantes mais velhos (dos anos finais do ensino fundamental), que propuseram que a avó, Dona Marta, contasse uma história tradicional para todos os estudantes. Uma história tradicional que eles me disseram chamar-se kaxo” em guarani: uma história contada de geração em geração pelos mais velhos aos mais jovens, carregada da cosmologia e da história milenar dos Mbyá.

Como me disse Adriana Flores, uma das estudantes que é neta de Dona Marta, “qualquer um que sabe uma história pode contar”, mas é muito comum que as avós façam isso, que elas tenham muitas histórias para contar. E, no nosso caso, foi isso que ocorreu: momento organizado pelos estudantes mais velhos, a forte presença de Dona Marta conseguiu reunir todos os estudantes da escola ao seu redor para contar um kaxo.

Enquanto estávamos em roda, e o kaxo a ser contado, percebi as crianças silenciosas e atentas à fala de Dona Marta.

Figura 1 – Dona Marta (de frente, com blusa azul claro), contando a história. Fonte: arquivo pessoal da autora.

No mesmo dia, após Dona Marta contar o kaxo em guarani para os estudantes (ela é falante apenas de guarani), Adriana, sua neta, me contou a história em português, tecendo o esforço de traduzir muitas ideias que são próprias do mundo Mbyá Guarani e, por isso, a tradução dessas ideias é uma aproximação do que foi contado. Um trabalho de registro foi elaborado de forma ilustrada por Adriana e outros estudantes menores, que, com seus desenhos, deram vida às formas e acontecimentos do kaxo contado pela avó.

Esse é um traço característico do modo de ensino-aprendizagem que desenvolvemos na escola indígena: o trabalho em coletivo, multisseriado, sendo guiado e orientado pelos mais velhos. Os estudantes mais velhos têm um papel fundamental nesse processo, educando os mais jovens, seja pelo exemplo, seja pela orientação dada em guarani, muitas vezes, traduzindo o que é dito pela professora, para facilitar a compreensão dos demais.

AVÓ E NETA  – DONA MARTA E ADRIANA – NARRAM O KAXO 

Trago o kaxo (história) aqui para contar um pouco do que ouvi e aprendi, com uma intenção de registro mais subjetivo do que documental. O kaxo contado por Dona Marta e Adriana – duas mulheres, avó e neta -, inicia falando do cotidiano de uma aldeia indígena, de uma comunidade liderada por um cacique, que tinha dois filhos. Conta da sua vida na natureza, em meio à mata e a presença de um rio, suas brincadeiras, a pesca, o compartilhamento de alimentos pela comunidade.

Até que um dia, na volta da mata, surpreenderam-se sendo atacados por homens brancos. Mesmo com a resistência e a luta dos indígenas, os brancos mataram quase todos eles com as suas armas de fogo. O cacique e os filhos lutaram bravamente e sobreviveram, até que o cacique, sendo atacado por um dos brancos, disse ao filho mais velho que salvasse a sua família. Um branco ouviu o indígena chamá-lo de pai e, ao perceber a ligação entre eles, matou o pai na frente dos filhos. Nesse embate, os brancos acabaram levando os filhos do cacique e as suas famílias para a cidade, as mulheres para vender e, os homens, para matar. (TOMAZZONI, 2020, pág. 82)

O filho mais novo foi morto, até que, quando chegou a vez do filho mais velho morrer, ocorreu um fenômeno estranho: a noite chegou abruptamente e a escuridão se fez. E então, apavorado com a escuridão repentina, o branco que mandava nos outros pediu que soltassem os indígenas. Na fuga, os brancos ainda tentaram acertá-los, mas eles atravessaram a mata e conseguiram chegar de volta à aldeia.

Chegando na aldeia, o indígena, com sua esposa e filho, ficaram imensamente tristes, pois todos os que ficaram haviam sido mortos. Carregaram, então, seus corpos para a casa de reza, para pedir a Deus que os trouxesse de volta à vida. Imploraram a Deus para que fizesse algo que trouxesse seus irmãos e irmãs de volta, mas Deus disse que não era mais possível. Não como antes. Foi aí que Deus os transformou em formigas, os colocou em corpos de formigas.

Adriana falou que as formigas são como os guerreiros indígenas: unidos, protetores e aguerridos, capazes de morrerem para defender a sua família. As tay’i (formigas) representam não apenas as características da personalidade e da coletividade dos Mbyá Guarani, mas, também, a ideia de que esse povo, assim como outros povos indígenas, percebe seres não humanos como seres que podem ser ou virem a ser indígenas, divergindo radicalmente do antropocentrismo característico do pensamento ocidental. (TOMAZZONI, 2020, pág. 83)

Felizes eles ficaram por isso, pois puderam seguir a viver juntos, na mesma comunidade.

Essa história ressalta a importância e a força da casa de reza, da dimensão espiritual para os Mbyá Guarani, além de valores como a união e a perseverança. A casa de reza, chamada “Opy” para os Mbyá, aparece, frequentemente, nos desenhos feitos pelas crianças e jovens:

Figura 2 – Desenho de uma casa de reza dos Mbyá Guarani feito por um estudante. Fonte: arquivo pessoal da autora.

Além disso, a história retrata o desequilíbrio e a violência causados pelos não indígenas ao invadirem o local habitado pelos indígenas, nos levando a fazer conexões com o genocídio feito a esses povos quando da invasão das Américas pelos colonizadores. A força das imagens e das histórias orais demonstra uma consciência profunda do contraste entre a vida antes e depois da invasão europeia e a desordem de cunho existencial – metafísico – causada pela colonização. A escuridão que chega simboliza o fim do mundo, um fim que está relacionado à morte dos indígenas. Como podemos pensar esse  acontecimento relacionando aos nossos dias atuais, com a crise ambiental, por exemplo?

São muitas as provocações de pensamento a partir da força simbólica desses acontecimentos, nos convocando a repensar nossa própria cosmovisão, sobre como assimilamos e digerimos, enquanto sociedade, o processo de genocídio e escravização indígena e sobre a importância das suas existências. Além disso, é importante ressaltar que as histórias são factuais para os Guarani, uma oportunidade para que ultrapassemos os limites da nossa cosmovisão, da visão ocidental-moderna para expandir a compreensão a partir de outra cosmovisão. Eis uma questão própria do ponto de vista intercultural.

Sandra Benites, antropóloga, arte-educadora e artesã Guarani Nhandewa [9], em sua dissertação de mestrado (2018), fala sobre a força da oralidade a partir das vozes de mulheres e, também, sobre o valor de verdade das histórias para os Guarani:

Como é possível transmitir os conhecimentos através das narrativas que aprendi com minha avó e com as minhas tias e minha mãe? Meu objetivo ao contar essas histórias a partir da perspectiva delas, e, por isso, sempre as cito como principais autoras dessa narrativa. Depois, eu compreendi que é importante saber o segredo, o poder que essa história tem na vida dos Guarani. É “mito” para os juruá, mas para nós Guarani não é mito. (BENITES, 2018, p.64)

Benites (2018) faz referência à história de “Nhandesy ‘ete”, a qual ela nos conta em sua dissertação, que significa “nossa mãe verdadeira”, uma história que contém as regras sobre o modo de vida das mulheres Guarani – e do sistema de vida Guarani como um todo – e que é transmitida oralmente de geração em geração. As mulheres possuem um papel educativo fundamental na estruturação e na organização do modo de vida dos Guarani, atuando na preservação e na manutenção da sabedoria ancestral através da tradição da oralidade.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A partir das questões suscitadas por esse kaxo, podemos refletir sobre a nossa experiência e consciência da própria história como foi tecida, registrada e aprendida, como ela é retratada dentro dos nossos currículos e nos materiais didáticos no que tange à invasão e colonização, bem como seus desdobramentos sócio-históricos e culturais na contemporaneidade.

Os Mbyá Guarani, assim como outros povos indígenas, possuem seu próprio modo de pensar a respeito da sua história, de produzir e de transmitir conhecimentos para seus jovens e crianças, mantendo e atualizando a memória coletiva dos seus povos, uma epistemologia centrada na oralidade e nas representações imagéticas. Essa foi uma das minhas maiores aprendizagens como docente na escola indígena Mbyá Guarani, um momento de aprender descolonizando meu modo usual de conhecer, especificamente centrado na escrita Além disso, as mulheres possuem um forte protagonismo no que diz respeito à educação e à manutenção da cultura, com sua organização própria que é transmitida de geração em geração.

Com isso, não apenas trago um pouco da história da nossa escola, da construção diária da interculturalidade, mas um pouco da história das mulheres que ao contarem histórias transmitem valores éticos, como perseverança, a potência da união, da esperança e fé nas suas culturas. A oralidade, como instrumento de produção de conhecimento se mostra efetiva e em toda a sua potência através dos kaxo, onde mulheres que contam histórias desdobram-se no tempo, multiplicando-se e multiplicando a força das suas origens e das suas crenças.

 

A AUTORA

Márcia Luísa Tomazzoni – Nascida em Porto Alegre em 1983, é formada em Filosofia e mestra em Educação pela UFRGS, educadora apaixonada pela profissão, pelos estudos sobre educação, culturas e humanidades em geral. É educadora sindicalizada do Estado do Rio Grande do Sul desde 2014. Gosta de ler, escrever e de ver filmes/séries. Ama os animais, é vegana há aproximadamente 15 anos.

NOTAS:
[1] Utilizo a grafia das palavras em Mbyá Guarani conforme registrado no glossário da obra de Maria Aparecida Bergamaschi e Ana Luísa Teixeira de Menezes, Educação ameríndia: a dança e a escola guarani. 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2015.
[2] Site Povos Indígenas no Brasil do Instituto Socioambiental. Disponível em: <  pib.socioambiental.org/pt/Guarani_Mbya> . Acesso em: 15 jan. 2020.
[3] Segundo o Censo IBGE 2010, os mais de 305 povos indígenas somam 896.917 pessoas. Disponível em: < pib.socioambiental.org/pt/Quantos >. Acesso em: 15 jan. 2020.
[4] Disponível em  < planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645>   . Acesso em 10 fev. 2020.
[5] Disponível em < planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645 > . Acesso em 15 jan. 2020.
[6] Algumas reportagens interessantes sobre a retomada de terras pelo povo Xokleng em São Francisco de Paula, RS. Disponível em https://cimi.org.br/2021/01/seguiremos-lutando-pela-terra-afirmam-xokleng-da-retomadade-sao-francisco-de-paula/ . Acesso em 10 Fev. 2021. Um pouco da história dos Xokleng migrando do Rio Grande do Sul para Santa Catarina: disponível em < pib.socioambiental.org/pt/Onde >. Acesso em 10 Fev. 2021.
[7] A interculturalidade entendida criticamente ainda não existe, é algo por construir. Por isso, se entende como uma estratégia, ação e processo permanentes de relação e negociação entre, em condições de respeito, legitimidade, simetria, equidade e igualdade. Mas ainda mais importante é seu entendimento, construção e posicionamento como projeto político, social, ético e epistêmico – de saberes e conhecimentos-, que afirma a necessidade de modificar não somente as relações, mas também as estruturas, condições e dispositivos de poder que mantém a desigualdade, inferiorização, racialização e discriminação (tradução livre realizada pela autora).
[8] O desafio do diálogo intercultural radica precisamente em que o reconhecimento da diversidade e das tradições indígenas não se converta simplesmente em um assunto do passado, mas sim em que tenham a possibilidade e o direito de autodeterminação no futuro. O que significa participação política em todos os níveis da organização do mundo de hoje. O interculturalismo pensa o problema não exclusivamente de reconhecer a diversidade em um nível retórico, mas sim o direito a fazer o mundo de outra maneira (traduação livre realizada pela autora).
[9] Segundo LADEIRA (2007, p.30), “os índios Guarani contemporâneos que vivem no Brasil podem ser classificados em três grandes grupos – Kaiova, Nhandéva, Mbya -, conforme diferenças dialetais, de costumes e de práticas rituais. Embora em outros países – Paraguai, Argentina, Uruguai, Bolívia, existam outros subgrupos Guarani, no Brasil, dada a grande dispersão causada pelos movimentos migratórios em direção ao leste, algumas diferenças culturais e linguísticas foram atenuadas.”

REFERÊNCIAS

BENITES, Sandra. Viver na língua Guarani Nhandewa (mulher falando). 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
BERGAMASCHI, Maria Aparecida; MENEZES, Ana Luísa Teixeira de. Educação ameríndia: a dança e a escola guarani. 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2015.
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Sobre el concepto de interculturalidad. México: Consorcio Intercultural, 2007.
LADEIRA, Maria Inês. O caminhar sob a luz: o território mbya à beira do oceano. 1a Edição. Editoria UNESP. 2007.
TOMAZZONI, Márcia Luísa. Movimentos da Guajayvi: narrativas de descolonização desde a escola indígena Mbyá Guarani. 2020. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.
WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y Educación Intercultural. In: INTERCULTURALIDAD Y EDUCACIÓN INTERCULTURAL, 2009, La Paz, Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello. Artículo. La Paz: Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, 2009. Disponível em:< scielo.org.n69a11.pdf >. Acesso em: 01 jul. 2019.

 

 

 

 

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