HISTÓRIA E SUAS MANAS
NARRATIVAS DA HISTÓRIA
Não há história da humanidade sem homens e mulheres, contudo, as narrativas dessa história por muito tempo, e ainda, hoje, estão escritas com tintas androcêntricas. No caleidoscópio de processos culturais, políticos, sociais, econômicos, alguns tempos, locais, ângulos e pessoas são pouco arguidos e, também, pouco escutados, o que não os faz ausentes e, sim, não vistos, não ouvidos, esquecidos, silenciados, invisibilizados, descredenciados… é necessário fazermos novas indagações e aprender a ouvir o que as diversas vozes estão a nos dizer. Ouvir é um ato de respeito, de interesse e implica reconhecer um espaço de protagonismo, de alteridade, de presença e esta intenção deve estar explícita pela palavra (CARRA, Patrícia, 2020).
EDUCAÇÃO DE MULHERES NO BRASIL COLÔNIA
PARTE I (1500-1580)
O texto apresentado a seguir é um convite a pensarmos sobre a educação de mulheres brasileiras. Sei é um convite ousado, muito amplo… Que tal começarmos nos perguntando sobre como era lá no início da história que resultou no Brasil? Complicado escolher esse marco, mas, para início de nossa reflexão, partiremos da chegada da esquadra portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral ao litoral brasileiro (1500).
Desse evento até o ano de 1530, os portugueses não se empenharam na colonização das terras que julgavam suas no continente americano. A decisão de colonizar o Brasil foi tomada apenas em 1530 e a primeira ação para esse objetivo foi a Expedição de Martim Afonso de Sousa (Expedição Colonizadora), patrocinada por dom João III, rei de Portugal.
O INÍCIO DA ESCOLARIZAÇÃO NO BRASIL
A Expedição Colonizadora chegou ao Brasil no ano de 1532 e fundou a primeira vila, São Vicente. Outras pequenas vilas foram fundadas e engenhos de açúcar foram construídos. Os engenhos tinham duplo objetivo, auxiliar no povoamento da Colônia e desenvolver uma atividade que rendesse riqueza à metrópole.
A primeira tentativa de montar uma organização política-administrativa para o Brasil Colônia foi o sistema de Capitanias Hereditárias (1534), que não teve sucesso e impôs à Coroa a urgência de criar um sistema político-administrativo-militar centralizado para o Brasil: o Governo Geral, criado em 1548*. O primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, chegou ao atual Estado da Bahia, no ano de 1549.
Até o ano de 1549, não havia escolas no Brasil. O início da educação escolarizada e sistematizada no Brasil aconteceu no bojo do esforço de colonização e de domínio territorial português, com a implantação do Sistema de Governo Geral, que contou com a ação da Companhia de Jesus (ordem religiosa criada por Inácio de Loyola no ano de 1534, no contexto da Contra Reforma e aprovada por Bula Papal em 1540). As cartas escritas pelos jesuítas são exemplos de fontes que nos permitem refletir sobre este período.
UM PEDIDO ESTRANHO PARA O EUROPEU
Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil com o governador-geral Tomé de Souza (1549), chefiados pelo Padre Manoel de Nóbrega**. Ao questionamento sobre quem instruir, tinham resposta objetiva: oferecer o catecismo a meninos e meninas indígenas e descendentes de colonos e instruir meninos indígenas e filhos de colonos nas primeiras letras. Essa resposta, contudo, perdeu sua certeza quando, por volta de 1552, alguns dos indígenas, que tinham seus filhos instruídos pelos jesuítas, não compreendendo o porquê da exclusão das meninas do ensino da leitura e da escrita, solicitaram que fosse ofertado igual acesso à instrução aos dois sexos.
PADRE MANOEL DA NÓBREGA QUER ESCOLAS PARA MENINAS
O pedido que a instrução fosse igualmente facultada ao sexo feminino levou Padre Manoel da Nóbrega a refletir sobre esta iniciativa no contexto do projeto de colonização e cristianização dos povos que aqui viviam, a buscar o apoio de Tomé de Sousa para a ideia e a recorrer à Rainha Catarina na busca de autorização para ministrar, além da catequese, o ensino das primeiras letras, também, às meninas. D. João III e a Companhia de Jesus proibiram a realização de tal intento. Ocorre que a educação feminina não era valorizada na Corte Portuguesa***. Por que, aos olhos desta, seria importante na Colônia? (MATTOS, 1958, p.90 e RIBEIRO, 2000, p.80).
POR SER MULHER E NÃO SABER LER
Em carta a Diogo Láinez, Padre Geral da Companhia de Jesus, o Padre Manoel de Nóbrega escreveu (12/06/1561): “[…] Eu não teria por desacertado […] a casa de meninas dos gentios, de que tivessem cargo mulheres Virtuosas, com as quais depois casassem estes moços que doutrinássemos (LEITE, 1938, p. 111)”. Apesar dos lamentos do jesuíta, as mulheres, no Brasil Colônia, pouco acesso tiveram ao ensino formal: a maioria não sabia ler nem escrever.
Apenas uma pequena parcela de mulheres – em geral, da elite – aprendia a ler. Escrever era uma habilidade rara na população feminina. Segundo Tobias (1986. p.46), a investigação de 450 inventários da Vila de São Paulo, entre os anos de 1578 e 1700, identificou, entre as mulheres mencionadas, apenas duas que sabiam assinar o nome. O mesmo autor observa: “[…] significativa a forma por que nos documentos do tempo se declara o motivo de ser o ato assinado por outrem: a pedido da outorgante, por ser mulher e não saber ler”
AS MULHERES ALFABETIZADAS
Mas… e as mulheres que sabiam ler e escrever? Deixaram algum sinal? Muitas perguntas! Poucas respostas… Entre essas poucas respostas está a constatação de que algumas dessas mulheres deixaram pistas. Felipa de Souza e Madalena Caramuru são exemplos dessas históricas.
Felipa de Souza (c.1556 -?) foi uma das mulheres alfabetizadas que viveram no Brasil Colônia durante o século XVI. Sabemos de Felipa pelos registros do Tribunal do Santo Ofício. Os mesmos registros indicam que ela confessou usar cartas para fazer contato com mulheres por quem sentisse atração (SCHUMAHER e BRAZIL, 2000, p. 228). Felipa foi condenada pela Inquisição por lesbianismo. Atualmente, o seu nome, Felipa de Souza Award, designa prêmio internacional de Direitos Humanos dos Homossexuais.
Madalena Caramuru é considerada a primeira mulher brasileira alfabetizada. O professor teria sido o seu marido, o português, Afonso Rodrigues. É atribuída à Madalena uma carta, escrita no ano de 1561 e endereçada ao bispo de Salvador, rogando pelas crianças trazidas, como escravas, da África para o Brasil (SCHUMAHER e BRAZIL, 2000, p. 350).
A alfabetização de mulheres não era entendida como uma necessidade e, tampouco, os seus escritos eram considerados documentos a serem guardados. Por esse motivo, não temos acesso ao universo feminino da época através de sua produção escrita. Uma possível fonte de interrogação são as imagens produzidas no período alvo dessa reflexão. O que podem nos dizer as imagens femininas que circulavam pela Colônia? Que imagens são essas?
Gostaria de saber mais sobre este tema? Nossa história continua. Leia < Brasil Colônia_educação de mulheres_II >.
A AUTORA
NOTAS:
*O Governo Geral não colocou fim ao sistema de Capitanias Hereditárias. As atribuições públicas dos donatários como fazer justiça, cuidar dos assuntos da fazenda real e das questões militares foram absolvidas pelos governadores gerais. Enquanto patrimônio, as capitanias hereditárias existiram até o século XVIII, quando passaram a ser propriedade direta da Coroa (FAUSTO, 2006, p. 37).
**Vieram seis jesuítas na comitiva de Tomé de Sousa. Os jesuítas no período de 1540 a 1759 criaram escolas elementares e secundárias. Fundaram missões e instalaram seminários, visando à formação de sacerdotes que atuassem na catequese.
***Portugal, nessa época, não tinha um sistema de ensino sólido. As escolas portuguesas equivalentes às escolas brasileiras de ler, escrever e contar eram poucas e destinadas apenas ao público masculino. As escolas particulares atendiam aos filhos da nobreza e as de misericórdia, aos órfãos. Apenas no ano de 1815, é que foi permitida a criação de escolas femininas na cidade de Lisboa (TOBIAS, 1986, p.34 – 45).
Dados para citar este texto:
CARRA,Patrícia R. Augusto. Educação de Mulheres no Brasil Colônia -parte I. Histori-se, Porto Alegre, março 2021. Disponível [on-line] em< Educação de Mulheres no Brasil Colônia_I>.
REFERÊNCIAS:
ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, Livraria José Olympio, 1948.
LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Coimbra, 1954.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil: século XVI. 2.ed. Lisboa: Ed. Portugália, 1938. 2 v.
MATTOS, Luiz Alves de. Primórdios da educação no Brasil: o período heróico (1549 -1570). Rio de Janeiro: Gráfica Aurora, 1958.
NÓBREGA, Manuel. Cartas do Brasil (1549-1560). Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931.
RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Mulheres Educadas na Colônia. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO, Luciano Mendes de Faria; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 Anos de Educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2000, p. 79-94.
SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital (org.). Dicionário Mulheres do Brasil de 1500 até a atualidade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,2000.
TOBIAS, José Antônio. História da Educação Brasileira. 3 ed.. São Paulo: IBRASA, 1986.
IMAGENS:
IMAGEM NO CORPO DO TEXTO – Santana Guia (Santana e Maria Criança). Imagem MU0304.Museu de Sant’Ana. Tiradentes, Minas Gerais (Brasil). Imagem disponível [on-line] em < https://museudesantana.org.br/conheca/acervo/>.Tiradentes, Minas gerais>. Acesso: janeiro 2021.
IMAGEM DESTAQUE – Sant’Ana Mestra. Museu de Sant’Ana. Tiradentes, Minas Gerais (Brasil). Imagem disponível on-line em < https://museudesantana.org.br/conheca/acervo/>. Acesso: janeiro 2021.