Arte: editora de Histori-se
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de dor das Marias.

Introdução

O canto de dor das Marias é um post  que compõe a produção As dores das Marias, baseada na opereta de Tom Zé, Estudando o pagode- na opereta SegregaMulher e Amor.

As dores das Marias está sendo apresentada em formato de capítulos nesta revista/site.

Vide o capítulo anterior clicando no link a seguir: < As Dores das Medeias universais. >.

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O Canto de Dor das Marias

As personagens femininas, Nora-Madalena e Teresa-Medeia, apresentadas na edição anterior, evidenciaram perfis femininos duplicados, representantes da Mulher do séc. XX.

Se por um lado, a Mulher foi em busca da liberdade individual, acolhida pelo movimento feminista; por outro, os significados levantados pelos nomes das personagens literárias, históricas e os respectivos discursos contextualizados historicamente mostram que a Mulher ainda está presa à servidão do patriarcado, à dependência emocional do homem, à culpa religiosa pela realização de seus impulsos e desejos sexuais.

No entanto, a personagem Teresa mostrou o desejo de transcender o sentimento da culpa e gozar o prazer de ser Mulher, reivindicando o direito de tratar seu corpo e seu gozo como algo sagrado.

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Neste post, veremos que na Cena II, a “Cena do pesadelo”, as personagens da opereta Medeia, Ariadne e Electra xingam e acusam a crueldade do amor.

seta

O Amor é um Rock

Para a melhor compreensão de como esses perfis femininos se relacionam às personagens analisadas anteriormente, é necessário contextualizar a história em comum deles.

É necessário também considerar a relação das personagens com seus amantes para entendermos porque as personagens da opereta insultam tanto o amor, através da canção “O amor é um rock”:

“Sem alma, cruel, cretino,
Descarado, filho da mãe
O amor é um rock
E a personalidade dele é um pagode.”

É interessante que o músico Tom Zé faz uso da paródia do insulto ao amor pela via dos gêneros musicais, a saber, o Rock e o Pagode.

Do mesmo modo como ele usa o gênero Pagode para criticar uma segregação disfarçada de homenagem à mulher, no sentido de tomá-la como objeto de desejo e de propaganda massiva através de letras e danças vulgares, ele utiliza o Rock para denunciar o sexismo nesse meio musical que praticamente excluía a Mulher como protagonista, sendo mais uma vez colocada na posição objetificada (no máximo no coro da banda) por homens hostis ao gênero feminino.

Por exemplo, a cantora de rock Rita Lee vivenciou o machismo dentro do próprio grupo, Os Mutantes, onde era constantemente subestimada e desconsiderada profissionalmente por ser mulher.
No entanto, a cantora conquistou a liberdade para expressar seu protagonismo e voz, construindo sua própria carreira e se tornando um exemplo de mulher livre e contestadora no nosso tempo.

Cantora brasileira Rita Lee
Rita Lee
O rock como gênero era um espaço de representação de estereótipos femininos ofensivos, com temas violentos, degradantes e misóginos.

Eis um trecho da canção de Guns n’Roses:

I used to love her
(eu costumava amá-la)

But I had to Kill her
(mas eu tive que matá-la)

I had to put her, six feet under
(eu tive que colocar ela a sete palmos abaixo da terra)

And I can still hear complain
(eu ainda posso ouvir ela reclamar).

Na cena do Rock brasileiro também temos exemplos de objetivação da mulher, até mesmo de pedofilia, como na canção de Charlie Brown Jr:

Me fala a verdade…
Quantos anos você tem?
Eu acho que com a sua idade
Já dá para brincar de fazer neném.

Os exemplos acima citados servem para ilustrar que não apenas o Pagode (gênero escolhido por Tom Zé para enunciar a segregação da Mulher), mas também outros gêneros musicais já usavam a violência e a hiperssexualização feminina para se promoverem e degradarem a Mulher.

Então, a letra da canção o amor é um rock e a personalidade dele é um pagode” mostra uma “arte” como instrumento masculino que violenta e reduz a Mulher a um objeto.
O autor denuncia que esse fetiche e essa crueldade masculina pela via da paródia e mostra como é ridícula em qualquer gênero musical.

ARIADNE

Estátua de Ariadne
Ariadne – Escultura de Johann Heinrich von Dannecker.

A personagem grega Ariadne era filha do rei de Creta Minos, ela se apaixonou pelo herói Teseu que viera à Creta combater o Minotauro, monstro que devorava moças e rapazes.

A jovem prendeu um fio na extremidade do labirinto que permitiu que Teseu não se perdesse após matar o monstro.
Depois, Ariadne fugiu com Teseu; mas, segundo a tradição, a moça fora abandonada pelo herói na ilha de Naxo, uma das Cíclades.

A insensibilidade brutal do amante Teseu tornou-se um atributo da masculinidade na cultura ocidental.

O herói grego usou da força viril para realizar tarefas aparentemente impossíveis, mas precisou da inteligência feminina de Ariadne para encontrar o caminho pelo labirinto.
Entretanto, apesar da ajuda dela, o amante a despreza e a abandona. Mesmo após a brutalidade que comete com Ariadne, Teseu é coroado rei de Atenas.

O romancista francês André Gide viu Teseu como representante do macho capaz de se livrar das garras possessivas da astuciosa mulher.
Para Gide, o tratamento dispensado por Teseu à Ariadne se justifica por servir a uma finalidade maior: a proteção do estado.

ELECTRA

Electra, Orestes e Hermes no túmulo de Agamemnon.
Electra é a mulher representada na pintura.

Outra personagem da opereta que toma partido na acusação contra o amor é Electra.

A tragédia grega mostra esse significante como a filha ansiosa por vingar a morte do pai, o rei Agamêmnon.
No entanto, a jovem princesa era segregada pela própria mãe, Clitemnestra
(que despreza Electra em função da outra filha Ifigênia, que o rei ofereceu em sacrifício pela vitória na guerra de Tróia).

Sem marido, sem filhos e sem amigos para protegê-la, Electra vivia como uma serva no palácio do pai.

A única esperança era esperar pela volta do irmão Orestes, que agiria como o vingador do pai.
Despojada dos bens paternos, ela e a irmã Crisôtemis jamais poderiam ter um esposo e descendência.

Agamêmnon foi capaz de sacrificar sua filha em nome da vitória na guerra, colocando os interesses políticos acima do amor parental,
o que torna difícil entender por que a filha Electra mantinha essa idealização pelo pai.

Talvez a falta que ele lhe fazia justificasse essa fantasia.

Ela se tornou uma jovem obcecada pelo rancor e por sentimento de vingança para com a mãe e o padrasto.
Assim como a trágica Electra, muitas mulheres dirigem seu ódio e ressentimento contra aquelas que disputam a atenção e o mesmo amor masculino, apesar da infidelidade deles.
Outras simplesmente aceitam a violência por parte dos homens por submissão ou por temerem a solidão.

A escolha que Tom Zé fez pelo significante Electra evoca um tempo em que o destino da Mulher era ser cativa da vontade do homem.

A fala da sua irmã resume isso: não percebeste que és mulher e tua força é menor que a força deles?

Abandonada, a princesa prepara-se para a vingança.
A tragédia de Electra traz à tona uma sucessão de ações resultantes da vontade masculina: a morte da irmã Ifigênia, a guerra longa, a carência de um pai afetuoso e de uma referência masculina.

A ação trágica de Electra desdobra-se no tema da opereta de Tom Zé pela via da segregação da Mulher sempre pelas mãos do homem: primeiro do pai, depois do marido.

A enunciação subliminar do autor é que o homem é responsável por uma sucessão de erros históricos, que não só causaram muito sofrimento, solidão e ressentimento para as mulheres e para a relação entre os gêneros, mas, principalmente ele é o culpado pelo mal causador de guerras e disputas políticas de poder sem fim.

O mito de Electra tem sido utilizado pela Psicanálise para tratar dos enigmas da feminilidade.
Ele representa a problemática do desenvolvimento feminino mal sucedido, frequentemente marcado por ciúmes, rejeição e sexualidade freada.

Ariadne e Electra representam a Mulher ferida, carente da figura masculina e decepcionadas com o modo de o homem se relacionar com o feminino, por isso, xingam o amor que ele tem oferecido à Mulher.

OFÉLIA

A personagem Ofélia surge em cena separada das personagens mitológicas.

A entrada da personagem se dá mediante um canto sofrido.
Ela canta a dor do primeiro e breve amor, canta a solidão desse amor (a canção citada faz intertexto com a canção Meu primeiro amor, de Hermínio Gimenez):

Meu primeiro amor
tão cedo acabou
só a dor deixou
neste peito meu.

A personagem da opereta de Tom Zé evoca os mesmos sentimentos de dor da personagem feminina de Hamlet (1601), de Shakespeare.

A personagem dramática Ofélia é lembrada como mais um significante da figura feminina devotada à submissão paterna.
E representa o arquétipo da donzela frágil, indefesa e suplicante de amor.

Ofélia aparece no drama como uma moça cordata, mas que se transforma após o assassinato do pai, falando de modo enigmático e agindo como louca.
(outra vez aparece o significante da Mulher louca para designar o ser feminino na cultura ocidental).

Ofélia - personagem de Hamlet, peça de William Skakespeare
Ofélia – Pintura de Jan Frederik Pieter Portielje

Assim como as demais personagens analisadas foram enganadas e abandonadas, a Ofélia de Shakespeare também fora deflorada e abandonada pelo seu amor Hamlet, após ter-lhe sido útil politicamente.

Ele prometeu casar-se com ela: “antes de me derrubar, tu prometeste comigo casar”; mas a abandonou e matou seu pai.

O comportamento errático de Hamlet leva Ofélia à loucura e ao “suicídio acidente”.
Ele atribui vícios e defeitos a todas as mulheres; inclusive, a ela.

Hamlet diz que não deveria haver casamento e que todas as mulheres deveriam ir para um convento.
Por muitos séculos, o arranjo do casamento era um mero acordo político, onde não havia espaço para os sentimentos e desejos femininos.

Medeia
Imagem de Medeia – Paul Cézanne

Apesar de a personagem Ofélia não estar unida em acusações ao amor, as demais personagens da opereta, Medeia, Ariadne e Electra, todas convergem pela história de mulheres segregadas socialmente e oprimidas pelos homens.

Todas as personas envolvidas têm em comum o abandono desleal dos amantes e o terrível sofrimento causado pela desilusão e pela decepção com o primeiro amor.

Será que as mulheres ainda veem hoje os homens como traidores em potencial?
Será que esse sentimento feminino de abandono e ressentimentos ainda se faz presente?

Embora a canção O amor é um rock não cite explicitamente os motivos que levaram as personagens da opereta a insultarem o amor, podemos inferir pelos significados levantados a partir dos significantes e dos contextos analisados que as personagens tiveram experiências de vida e de amor dolorosas.

Igualmente, a experiência da brutalidade e da deslealdade dos respectivos amantes levou as personas da opereta a se ressentirem contra o amor e a se tornarem desconfiadas de suas propostas.

O canto de dor das personagens é um lamento de decepção e  solidão.

A  AUTORA

Elizete
Elizete Lacerda é licenciada em Letras, revisora de textos, escritora. Algumas de suas áreas de interesse e atuação: cinema e análise literária (especialmente análise de canções)
No próximo post, continuaremos no Ato II, nas cenas que dizem respeito às personagens do tema da segregação.

As personagens femininas já apresentadas, Teresa e Bete-Calla-os-Mares, ressurgem para nos representar na ONU e denunciar questões relativas à segregação da Mulher e às micro violências que todas nós sofremos no cotidiano.

Outra personagem que reaparece na opereta é Rebeca do Mato. Ela ressurge para defender o prazer carnal.

Vamos ouvir o que Rebeca tem a nos dizer sobre as complexidades do sexo?

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  • Clique no link e leia o próximo capítulo: As Marias e o banquete
  • As dores das Marias é uma produção que, baseado na opereta de Tom Zé, Estudando o pagode- na opereta SegregaMulher e Amor, pretende refletir acerca da segregação da Mulher no tempo histórico e sobre questões que envolvem a liberdade sexual e o patriarcado. Vide as edições anteriores.
Notas e referências relativas a este texto:
  • André Gide (citado por MANGUEL, 2001; p.211,212).
  • HAMLET: Teatro, William Shakespeare [tradutor Carlos Alberto Nunes].Rio de Janeiro: Editora Ediouro.
  • MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras,2001.
  • SCHMIDT, Joel. Dicionário de Mitologia grega e romana.[ tradutor João Domingos, rev. de trad. José Ribeiro Ferreira]. Lisboa: Edições 70, 1985.
  • SÓFOCLES, Electra; As troianas.2.Edição.[tradução poética do grego].Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. S/A.
  • Fotografia original da mulher que compõe a imagem destacada de: Alesia Kozik in Canva/Pexels.
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